8. Liminares contra o Poder Público
A concessão de medidas cautelares e liminares contra o Poder Público há muito vem sofrendo constantes censuras legislativas calcadas em uma ideologia política ostensiva de reduzir gastos e evitar prejuízos. As normas básicas que regulam a matéria são praticamente a Lei 8.437 de 30 de junho de 1.992, a Lei 9.494 de 10 de setembro de 1997, e a atual Medida Provisória 1798-1 de 11 de fevereiro de 1999, que alterou os dispositivos das duas leis citadas.
Em síntese pode-se afirmar que tanto a Lei 8.437/92 quanto a Lei 9.494/97 dirigem-se no sentido de vedar, seja por força de ação cautelar seja por força de tutela antecipada, respectivamente, a liberação de recursos, inclusão em folha de pagamento, reclassificação, equiparação, concessão de aumento ou extensão de vantagem a servidores da União, dos Estados e do Distrito Federal, e dos Municípios, inclusive de suas autarquias e fundações. O artigo 2º da MP 1798-1 salienta claramente que, nestes casos, somente será executada a medida após o seu trânsito em julgado.Com isso, tem-se que não caberia, em tese, nenhum tipo de provimento antecipatório contra o Poder Público.
No entanto, isto não é bem assim. A norma jurídica restritiva não pode ter uma aplicação indiscriminada, sob pena de causar em determinados casos uma injustiça tal capaz de menosprezar todo o Estado de Direito e violar a própria Constituição Federal. Aliás, não são poucos os que julgam estas normas completamente inconstitucionais por vedarem, em última análise, o útil e eficiente acesso à Justiça. A propósito preconiza Marinoni que "o direito de acesso à Justiça, albergado no art. 5º, XXXV, da CF, não quer dizer apenas que todos têm direito a recorrer ao Poder Judiciário, mas também quer significar que todos têm direito à tutela jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva (...) Quer isto dizer que, "se o legislador infra constitucional está obrigado, em nome do direito constitucional à adequada tutela jurisdicional, a prever tutelas que, atuando internamente no procedimento, permitam uma efetiva e tempestiva tutela jurisdicional, ele não pode decidir, em contradição com o próprio princípio da efetividade, que o cidadão somente tem direito à tutela efetiva e tempestiva contra o particular. Dizer que não há direito à tutela antecipatória contra a Fazenda Pública em caso de `fundado receio de dano´ é o mesmo que afirmar que o direito do cidadão pode ser lesado quando a Fazenda Pública é ré" 42
Da mesma forma Carreira Alvim 43 firma sua convicção a respeito do tema: "Dispondo o art. 5º, XXXV, da Constituição que à lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito´, essa norma de superdireito impede que a lei ordinária (ou medida provisória) imponha restrições ao exercício da jurisdição, quando a proibição de liminares possa comprometer a integridade dos direitos subjetivos, expondo seus titulares ao perigo de lesão grave, ou de difícil, ou incerta reparação. A garantia constitucional desdobra-se em duas espécies de tutela: a definitiva e a provisória (ou temporária), cada qual fundada em pressupostos próprios, sem o que o acesso à Justiça não seria completo. O preceito constitucional não alcança apenas a proibição de acesso à Justiça, em termos absolutos, mas toda restrição que relativa, que limite esse acesso, tornando-o insuficiente para garantir, na prática, ao jurisdicionado, a necessária proteção ao seu direito. Assim, qualquer limitação ao exercício do direito de ação, pelo particular, e ao dever de (prestar) jurisdição, pelo Estado, deve ser afastada, in concreto, sempre que importe transgressão ao sistema de defesa dos direitos, agasalhado pela Constituição. A função da lei ordinária, no campo processual, é a de disciplinar esse sistema, não dispondo de eficácia jurídica para, sob o pretexto de fazê-lo, neutralizá-lo na sua essência".
No que concerne a aplicabilidade e constitucionalidade das normas restritivas sob exame, cumpre relembrar que o próprio Supremo Tribunal Federal, já decidiu que a limitação de "tutelas antecipadas" é matéria que merece ser encaradas com certa distância e deve ser interpretada, conforme o caso e sobre o prisma da justiça e razoabilidade a ponto de não se tornar fator impeditivo ao direito constitucional de acesso à Justiça, considerado em sentido lato. Quando proposta a Ação Direta de Inconstitucionalidade de tal Lei 8.437/92 perante o Supremo, este rejeitou-a, no entanto, salientou ‘que tal rejeição "não prejudica o exame judicial em cada caso concreto de constitucionalidade, incluída a razoabilidade, da aplicação da norma proibitiva da liminar" (ADIN 233-DF, Liminar, Pleno, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, ac. 05.04.90, RTJ, 132/572). Vale dizer: se, nas particularidades do caso concreto a falta da cautelar in limine representar denegação de justiça ou inutilização da tutela jurisdicional definitiva, caberá ao juiz, malgrado a L. 8.437, tomar a medida liminar indispensável.’ 44
Neste diapasão, então, inúmeras decisões estão sendo proferidas no sentido de antecipar a tutela ou conceder liminar contra o Poder Público, e isto nada de novo apresenta nem sequer causa perplexidade, na medida que para não aplicar-se uma norma, não é preciso que ela seja inconstitucional, bastando, tão somente, que existam outras normas, princípios ou valores superiores que a ela se sobreponham, não sendo razoável, então, aplicá-la em prejuízo destes. Um belo exemplo disto é o julgado a seguir transcrito:
"MEDIDA CAUTELAR – LIMINAR – DEFERIMENTO INAUDITA ALTERA PARS – ADMISSIBILIDADE – PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO – EXCEPCIONALIDADE – Justifica-se a concessão da medida liminar sem audiência da parte contrária sempre que, a par de prova inequívoca, aliada à plausibilidade jurídica do alegado na inicial, houver perigo de dano irreversível para o requerente caso a medida não seja deferida de imediato. As restrições legais ao poder cautelar do Juiz, dentre as quais sobreleva a vedação de liminares contra atos do Poder Público (art. 1º da Lei nº 8.437/92), consoante orientação do STF (RTJ – 132/571), devem ser interpretadas mediante um controle de razoabilidade da proibição imposta, a ser efetuado em cada caso concreto, evitando-se o abuso das limitações e a conseqüente afronta à plenitude da jurisdição do poder judiciário. Agravo de Instrumento – Cautelar Inominada – Liminar determinando ao estado o fornecimento de medicamentos a paciente de AIDS – Imprescindibilidade da medida – Recurso desprovido. O fato de necessitar o agravado, pessoa pobre e doente de AIDS, de tratamento inadiável, disponível no mercado e que se revela essencial à preservação de sua própria vida, aliado ao impostergável dever do estado de assegurar a todos os cidadãos, indistintamente, o direito à saúde (art. 6º e 196, da cf/88), justifica a concessão de liminar impondo ao ente público a obrigação de fornecer os medicamentos capazes de evitar-lhe a morte.
(TJSC – AI 97.002945-4 – 3ª C.C. – Rel. Des. Eder Graf – j. 10.06.1997)
Da mesma maneira, não conhecendo as disposições restritivas porque gerariam situações bisonhas 45, os tribunais vem decidindo reiteradamente, como por exemplo:
"Agravo de Instrumento interposto contra decisão que deferiu tutela jurisdicional antecipada em ação ordinária visando ao cômputo do tempo de serviço público prestado sob o pálio da legislação consolidada para fins de percepção da gratificação de anuênios. Presença dos pressupostos do art. 273. do CPC: prova inequívoca do receio de dano de difícil reparação consubstanciado na situação crítica por que passa o funcionalismo público e pelo caráter alimentar dos valores reclamados. Declaração incidental de inconstitucionalidade pelo Tribunal pleno do art. 7º, I, da Lei 8.162/91 (AL 25.061-RN)" 46
O direito é um conjunto de valores e por mais que os Poderes Executivo e Legislativo insistam em dispor vedações a antecipações de tutela, por qualquer via que seja, jamais estará o Poder Judiciário adstrito a tais normas se vislumbrar valores, normas ou princípios outros que a ela se sobreponham. A própria Carta Federal dá respaldo a este tipo de concepção na medida que estipulou a independência dos Poderes. Com um Poder Judiciário desvinculado e a-político, adstrito apenas aos interesses da Justiça e a manutenção de um Estado Democrático de Direito, sempre visualizando as garantias Constitucionais positivadas, não se pode aplicar indiscriminadamente este tipo de vedação à tutelas jurisdicionais, eis que, em determinados situações, somente com essas se completa a prestação jurisdicional e permite-se o efetivo acesso à Justiça.
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