Capa da publicação Era digital e diminuição do controle estatal: nova distribuição do poder
Capa: geralt @pixabay

A diminuição do controle estatal no século XXI.

Uma nova distribuição do poder na era digital

Exibindo página 2 de 3
08/11/2020 às 22:08
Leia nesta página:

4. A REVOLUÇÃO DA TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO: IMPACTOS PARA A SOCIEDADE

O que surgiu a partir de uma tentativa de sucesso de estabelecer um maior controle e segurança para o Estado transcendeu o alcance deste e revolucionou toda a tecnologia da informação transformando inclusive o que entendemos como espaço e ampliando a capacidade de ação dos que começaram a utilizar estas redes. Hoje, a computação e a internet mudaram a forma como as pessoas se comunicam e se relacionam, como fazem compras, como fiscalizam o Estado e como são fiscalizadas, entre vários outras aspectos. 

A principal característica da popularização da internet foi o acesso a grandes quantidades de informação para o público em geral. As informações que antes estavam restritas às grandes bibliotecas, meios acadêmicos ou empresariais passaram rapidamente ao domínio do grande público, o que por si só traz o potencial para reduzir significativamente a disparidade de conhecimento entre os membros da sociedade.

Além disso, a rede mundial de computadores permitiu a manifestação de ideias de uma forma antes impossível. Se em outras épocas apenas os detentores de meios de comunicação impressa, canais de rádio ou televisão podiam disseminar suas ideias e ideais, de uma forma bastante concentrada e muito pouco democrática, já que poucos falam para muitos, a internet se tornou uma plataforma onde todos falam para todos. Apesar de ser, de fato, um meio mais democrático de manifestação do pensamento, não faltam críticas ao fato de haver disseminação de informações falsas ou de opiniões baseadas nessas informações inverídicas. Parte desse fenômeno ocorre em virtude de natural despreparo de parte dos criadores de conteúdo na rede. Outra parte se origina a partir de uma vontade de manipular o ideário coletivo – e a esse ponto voltaremos a tratar logo à frente.

Com respeito às interações entre o Estado brasileiro e seus cidadãos, a internet serviu como plataforma para uma relação de maior transparência fiscal. Foram criados dispositivos legais tais como a Lei da Transparência (Lei Complementar 131/2009) e a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011). Essas leis permitem a fiscalização do próprio Estado pelos cidadãos de uma forma que não seria possível antes do advento da internet.


5. ESTADO, PODER E DOMINAÇÃO: A INTERNET COMO FERRAMENTA PARA A IMPLANTAÇÃO DE UM ESTADO POLICIAL 

Um dos elementos principais para entender de que forma se constrói o controle do aparato estatal sobre os indivíduos é o conceito de poder. De acordo com o filósofo Michel Foucault (1978, pg. 182 apud FERREIRINHA, RAITZ, pg. 369) o poder não está localizado em uma instituição, e nem tampouco como algo que se cede, por contratos jurídicos ou políticos:

“Trata-se (...) de captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações (...) captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam (...) Em outras palavras, captar o poder na extremidade cada vez menos jurídica de seu exercício.”

Segundo Max Weber o conceito de poder é definido enquanto probabilidade de um ator impor sua vontade, mesmo contra a resistência deste enquanto a dominação pode ser definida pela probabilidade que tem o senhor de contar com a obediência dos que, em teoria, deve obedecê-lo. A diferença entre poder e dominação está em que, no primeiro caso, o comando não é necessariamente legítimo, nem a obediência forçosamente um dever; no segundo, a obediência se fundamenta no reconhecimento por aqueles que obedecem, das ordens que lhes são dadas. As motivações da obediência permitirão construir uma tipologia da dominação. 

Com o advento da Era da Internet surgiram fenômenos que trás novas reflexões sobre as relações de poder e dominação. Como falaremos a seguir, a internet que é uma rede mundial de computadores foi desenvolvida de forma colaborativa e só atingiu o alcance que tem hoje graças à cooperação científica, iniciativa tecnológica e movimento de contracultura de jovens engajados com a possibilidade de difusão da informação. O seu desenvolvimento foi possível em virtude da maneira que foi criada: de forma colaborativa, descentralizada e aberta. 

A difusão do conhecimento e da informação, que inicialmente foi idealizada como algo positivo tem mostrado sua face perversa: os usuários muitas vezes são bombardeados com informações falsas, tem seus dados explorados de forma descontrolada ficando completamente vulneráveis à que tipo de conteúdo será disponibilizado, dado que as grandes empresas que atuam nesta área tem grande capacidade de controle do que está sendo compartilhado. Mesmo com todos os esforços dos estados para regular os “comportamentos” deste novo mercado, com criação de legislação especializada tem se mostrado muito complexo estabelecer os limites e ainda fazer com que eles sejam respeitados. 

Como citado acima, vemos que o poder é algo que transcende a esfera da atuação estatal e diz respeito à capacidade de exercer influência e domínio. Percebe-se que esta capacidade de controle sobre os usuários tem sido realizada de forma muito mais sofisticada, pois o acesso a tantas informações e a capacidade de traçar um perfil sobre cada pessoa acaba influenciando as opiniões, direcionando o consumo e minando a capacidade de escolha que muitas vezes estão limitadas pelas empresas que monopolizam as principais informações.


6. REVOLUÇÃO, INTERNET E TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO

A partir da criação de uma rede mundial de computadores o mundo passa por uma revolução nas dinâmicas da comunicação, esta que é um dos elementos fundamentais que possibilitou o desenvolvimento humano. Segundo RECUERO a primeira grande revolução na comunicação aconteceu quando o homem desenvolveu a linguagem. A partir do progresso da linguagem escrita foi possível o desenvolvimento científico, a possibilidade do conhecimento ultrapassar a barreira do tempo inclusive a noção de espaço foi reconfigurada. Estamos diante de uma mudança que traz com ela a necessidade da criação de conceitos que consigam abarcar e explicar os novos fenômenos. Ainda segundo a autora:

“O paradigma do pensamento linear está sendo superado por um novo. A informação passa a constituir a matéria-prima de nossa sociedade, fonte não apenas de capital, mas também de poder. E um espaço inteiramente constituído de informação, como a Internet, passa a ter um papel central nessa nova sociedade, tanto em termos de circulação de capital, como em termos de reconfiguração do espaço e das relações sociais. Este espaço, denominado por muitos como ciberespaço, ou espaço virtual é o cerne da revolução desta virada de século. O ciberespaço é um não-lugar. Não concreto, não físico, mas real.”

Para CASTELL o cerne da transformação que estamos vivendo na revolução atual refere-se às tecnologias da informação, processamento e comunicação. A tecnologia da informação é para a revolução o que as novas fontes de energia foram para as revoluções industriais sucessivas, do motor à eletricidade. Quanto ao surgimento da economia informacional global o autor destaca que: 

“se caracteriza pelo desenvolvimento de uma nova lógica organizacional que está relacionada com o processo atual de transformação tecnológica, mas não depende dele. São a convergência e a interação entre um novo paradigma tecnológico e uma nova lógica organizacional que constituem o fundamento histórico da economia informacional”.

A internet modifica a relação do homem com o tempo e o espaço. Uma comunicação imediata, massificada e interativa que possibilita o compartilhamento de informação em tempo real, o desenvolvimento de plataformas que modificam inclusive o funcionamento dos mercados que passam a fazer parte de uma economia extremamente globalizada onde a capacidade de regulação se torna cada vez mais complexa tem sido um fator importante nas mudanças das relações sociais e econômicas.

A popularização da computação pessoal e da internet tornou possível um maior controle do Estado sobre a vida dos cidadãos. No Brasil, por exemplo, são utilizadas urnas eletrônicas para coleta de votos nas eleições desde 1996 e o envio da Declaração de Renda para a Receita Federal é obrigatoriamente feito pela internet. A partir de 2017, foi iniciada a emissão de Carteira Nacional de Habilitação virtual. Esses exemplos ilustram algumas das formas que o Estado se utiliza da Tecnologia da Informação para aumentar seu poder de fiscalização sobre as pessoas com objetivos diversos, desde o provimento de eleições com apuração mais baratas, evitar fraudes em pagamentos de impostos ou facilitar a vida dos motoristas. 

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Além deste controle exercido pelo Estado o contrário também acontece. Com a aprovação da Lei nº 12.527 de 18 de novembro de 2011 o congresso nacional dispôs sobre a regulação do acesso à informação, direito constitucionalmente garantido pela CF de 88 em seu artigo 5º, inciso XXXIII possibilitando maior transparência e acesso por parte do cidadão. No artigo 3º, inciso III consta que os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes: III- utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação. 

Esta legislação contribuiu para que as instituições criassem mecanismos por meio de páginas da Internet como Facebook, Twitter e sites próprios que comunicassem seus suas atividades e fornecessem inclusive informações sobre utilização do dinheiro público, desenvolvimento de políticas e possibilitou aos usuários cobrar maior transparência dos atos da administração pública e cobrar mais transparência de forma que assegure uma relação mais aberta. 


7. INTERNET: UMA PLATAFORMA DE LIBERTAÇÃO DA SOCIEDADE

Com o desenvolvimento da Internet marcada por uma rede horizontal de comunicação interativa os usuários começaram a perceber sua capacidade de autonomia e um local para poder exercer a própria individualidade. 

A revolução contracultural que chega com a Era Digital só foi possível pelo seu processo de criação ao se tratar de uma rede mundial de computadores desenvolvida de forma colaborativa e descentralizada partindo do entusiasmo de vários atores sociais pertencentes e não pertencentes ao aparato estatal que viam o potencial de um espaço de compartilhamento de informação e conhecimento e que transmitia os anseios daqueles que participam e não apenas de um grupo pequeno de pessoas. 

Vários movimentos libertários surgiram a partir da proposta de “recuperação” do controle e do poder com a filosofia de resgate e da autonomia como uma espécie de anarquismo da era digital. O ciberativismo segundo VEGH (2003, pg. 71 apud SANTOS, pg. 3) compreende a utilização da Internet por movimentos politicamente motivados com o com o intuito de alcançar suas tradicionais metas ou lutar contra injustiças que ocorrem na própria rede (GURAK, LOGIE, 2003; MCCAUGHEY, AYERS, 2003 apud SANTOS). Surge em 1980 quase que paralelamente ao surgimento da Internet, a primeira comunidade de ciberativistas quando um grupo de ativistas ao redor do mundo, fazendo parte da Peacenet utilizavam listas de e-mail para distribuir informações sobre direitos e conciliar discussões internacionais. Quando a internet passa a se popularizar, a partir da segunda metade da década de 1990 é que de fato ela passa a ser uma grande rede de compartilhamento e troca de informações mais acessível ao público em geral. Inicialmente no Japão e logo após nos Estados Unidos surgem sites e bate-papos temáticos onde os usuários podiam trocar imagens e mensagens sobre algum assunto, conhecido como imageboards (uma das características destes imageboards é que os usuários tinham a possibilidade de colocar ou não seus nomes nas postagens, no entanto quando não colocado o site preenchia automaticamente com o nome anonymous). 

A partir desta maior interatividade e da mobilização de grupos formados por pessoas com ideologias e propósitos iguais surge uma organização conhecida como “Anonymous”. Em 2006, vários usuários se articulam em torno de uma coletividade que se posicionava e agia com determinados objetivos como, por exemplo, a identificação de pedófilos. Com o passar do tempo, assumiram objetivos mais globais que colocaram em xeque os sistemas de segurança de vários países ao compartilhar informações sigilosas dos governos. Outro exemplo de um grupo que compartilhava informações de suma importância sobre assuntos sensíveis tanto de governos quanto de empresas foi o Wikileaks, uma organização transnacional sem fins lucrativos, com sede na Suécia que publica em sua página documentos, fotos e informações confidenciais de fontes anônimas.

Uma das inovações tecnológicas que permitiu a maior autonomia dos usuários são as criptomoedas. Elas são um meio de troca que utiliza a criptografia para assegurar transações e criação das novas unidades de moedas. Em 2009 em um Fórum de criptografia, um usuário que se identificou com o pseudônimo Satoshi Nakamoto lançou a rede bitcoin que revolucionou as transações monetárias por não ser necessário intermediários, como os Bancos. O Bitcoin “é uma nova moeda digital experimental que permite pagamento instantâneo para qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo que utiliza tecnologia peerto-peer (P2P) para operar sem autoridade central: a gerência de transações e a emissão de dinheiro é executada coletivamente pela rede. Bitcoin Core é o nome do software open source que habilita o uso desta moeda."

Esta autonomia e maior liberdade em alguns aspectos trouxeram muitos benefícios e facilidades para o cotidiano das pessoas, mas não foram apenas vantagens. No ciberespaço pode ser encontrado todo tipo de informação, desde fóruns de pessoas dispostas a cometerem atentados como os “blackmarkets”, que comercializam vários produtos considerados ilegais em muitos países, como drogas, armas e até mesmo órgãos. Falaremos a seguir sobre a internet como plataforma de práticas criminosas e as dificuldades do Estado em conter tais práticas na rede. 

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos