I – O FATO
João Alberto Silveira Freitas, negro, de 40 anos, foi agredido até a morte, na noite do dia 19 de novembro de 2020, em uma loja de uma rede de supermercado. Um dos agressores era segurança do local e o outro, um policial militar temporário. Ambos brancos. O crime ocorreu na véspera do Dia da Consciência Negra, celebrado no dia 20.
Segundo se noticia a morte se deu por asfixia gerada pelas agressões sofridas pela vítima.
De acordo com informações da Polícia Civil, João Alberto Silveira Freitas tinha antecedentes criminais. A informação foi confirmada pela TV Globo, que afirmou que o homem tinha antecedentes por violência doméstica, ameaça e porte ilegal de arma.
Consoante a Brigada Militar, o espancamento começou após um desentendimento entre João Alberto e uma funcionária do Carrefour na noite de quinta-feira (19). A vítima teria ameaçado bater na funcionária, que acionou a segurança da loja.
Freitas era aposentado por invalidez após fraturar dois dedos e o fêmur enquanto trabalhava no Aeroporto Salgado Filho.
A acusação poderá defender a tese de que houve um homicídio triplamente qualificado(por motivo fútil, asfixia e recurso que impossibilitou a defesa da vítima), agindo os autores do delito com dolo eventual. Poderá dizer que houve hipótese de racismo na agressão a vítima.
A defesa, de início, vai pedir a revogação da prisão preventiva por falta dos pressupostos do artigo 312 do CPP.
A defesa poderá tentar desclassificar a tipificação de homicídio doloso para homicídio culposo, por conduta pautada na imperícia, ou até por imprudência dos agentes e utilizará os antecedentes da vítima para desqualificar a acusação. Se houver acusação por racismo, poderá aduzir que a conduta dos vigilantes não se deu por isso, mas para defender os interesses da empresa para quem trabalhavam de velar pela segurança do local.
II – OS LIMITES ENTRE O DOLO EVENTUAL E A CULPA
Prevê o artigo 121, § 4º, do anteprojeto do Código Penal, que se o crime é culposo a pena é de prisão de um a quatro anos. Aumenta-se a pena máxima in abstrato, que hoje é prevista em três anos de detenção.
Como tal é possível, nos termos do artigo 89 da Lei 9.099/95, a possibilidade de oferta do benefício de suspensão condicional do processo, o sursis processual.
O crime de homicídio culposo foi inserido nas Ordenações Filipinas que dispunham: ¨Se a morte for por algum caso, sem malícia ou vontade de matar, será(o agente) punido ou relevado, segundo sua culpa ou inocência que no caso tiver¨ (Liv. I, tít. 350).
O Código Penal do Império não tratou do homicídio culposo, mas a Lei nº 2.033, de 29 de setembro de 1871, em seu artigo 19, punia como homicídio involuntário o praticado por imprudência, imperícia ou falta de observação de algum regulamento.
Da mesma forma, o primeiro Código Penal da República, de 1890, artigo 297, reconhecia a culpa na inobservância de uma disposição regulamentar, fórmula que foi considerada pela doutrina abandonada pelo Código Penal de 1940, e que, para estudiosos como Costa e Silva, constituía uma repugnante presunção.
Nos mesmos termos do Código Penal de 1940, em sua parte especial, observa-se que há o homicídio culposo quando o agente causa a morte de alguém, por ter omitido a cautela, a atenção ou diligência dita ordinária a que estava obrigado, em face das circunstâncias, sendo-lhe exigível na atuação concreta um comportamento atento e cauteloso.
Trata-se de um crime de dever, pois se caracteriza por uma violação do dever de cuidado.
Como tal não se admite coautoria ou autoria mediata nem atuação dolosamente distinta e ainda participação.
Como disse Heleno Cláudio Fragoso(Lições de direito penal, Forense, Rio de Janeiro, parte especial (artigos 121 a 212, 7ª edição, pág. 62) , a lei não prevê a conduta típica de homicídio culposo, em termos de ação ou omissão, punido apenas a causação do resultado morte, qualquer que seja o comportamento adotado pelo agente.
Da mesma forma o tipo adotado no Anteprojeto do Código Penal é aberto, registrando-se que se está diante de uma ação que denota desatenção a cuidado e a diligência, ordinária ou especial, a que o agente estava adstrito, causando o resultado.
Pode haver concorrência de culpa entre a do agente e da vítima de forma a atenuar a reprovabilidade da ação, a influenciar na aplicação da pena. Diga-se que a culpa recíproca não exclui a responsabilidade (RT 480/384).
De toda sorte se diz que a culpa do agente não se compensa com a da vítima, que só exclui o nexo causal quando por si só produziu o resultado.
Disse bem Aníbal Bruno (Direito Penal, parte geral, Tomo II, 1967, pág. 83) que o que é essencial na culpa é o momento consciente inicial, é a posição contrária ao dever que aí assume o agente. Constrói-se, pois, a culpa na vontade e sobre a previsibilidade. É o fato de o agente dever e poder prever o resultado e de não o ter feito, que estende até ele a sua responsabilidade.
Caracteriza-se a culpa por uma conduta contrária ao dever, que se exprime na imprudência, negligência ou imperícia do ato voluntário inicial e, por uma relação entre o agente o resultado, que consiste na falta de previsão do previsível.
Assim temos na decomposição do processo culposo: um ato inicial voluntário, praticado com imperícia, negligência ou imperícia; um resultado de dano ou de perigo definido na lei como crime; ausência de vontade e mesmo previsão desse resultado; possibilidade de prevê-lo.
É certo que esse dever de cuidado e atenção deve ser julgado de acordo com as circunstâncias do caso concreto. A falta do dever de diligência, de que provém o resultado punível pode ser expressa seja em imprudência, negligência ou imperícia.
Consiste a imprudência na prática de um ato perigoso, sem os cuidados que o caso requer. Dela se distancia a negligência, que é a falta de observância de deveres exigidos pelas circunstâncias. Numa há o fato da comissão e noutra o fato da omissão, em geral.
Diga-se isso, em atenção à lição de Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, volume V/186) para quem ¨o médico não tem carta branca, mas não pode comprimir a sua atividade dentro de dogmas intratáveis. Não é ele infalível, e desde que agiu racionalmente, obediente aos preceitos fundamentais da ciência, ou ainda que desviando-se delas, mas por motivos plausíveis, não deve ser chamado à contas pela Justiça, se vem a ocorrer um acidente funesto.¨
O resultado é um elemento integrante do tipo culposo, pois não pode haver homicídio culposo sem o resultado morte como não há lesão corporal culposa sem violação da integridade corporal de alguém.
Há ainda uma culpa sem previsão, que a doutrina chama de culpa inconsciente. Tal é diverso da culpa consciente quando o agente prevê o resultado, mas espera, sinceramente, que este não ocorrerá. Ainda difere do dolo eventual porque neste o agente prevê o resultado e não se importa se venha a ocorrer. O dolo eventual se junta ao dolo direto, ou ainda determinado, quando o agente prevê um resultado, dirigindo a sua conduta na busca de realizá-lo. Repito: no dolo eventual, que tem espaço de fronteira e proximidade com a culpa consciente, a intenção do agente se dirige a um resultado, aceitando, porém, outro também previsto e consequente possível de sua conduta. (O artigo 19, II, do Anteprojeto prevê que o tipo é culposo, quando o agente, em razão da inobservância de deveres de cuidado exigíveis nas circunstâncias, realizou o fato típico)
Assim configura-se a culpa criminalmente punível na violação de deveres de diligências realmente reprovável de dano ou de perigo.
Há um limite tortuoso entre a culpa e o dolo eventual.
No dolo direto ou determinado, o agente prevê o resultado (consciência) e quer o resultado (vontade). No dolo eventual o agente prevê o resultado(consciência), não quer, mas assume o risco (vontade). O dolo eventual, espécie de dolo indireto ou indeterminado(dolo alternativo ou dolo eventual) distingue-se da culpa consciente, quando o agente não prevê o resultado (que era previsível) e não quer, não assume risco e pensa poder evitar.
Afasta-se o dolo eventual da imprudência ou desídia.
Na culpa, o agente não quer praticar o ilícito nem assume os riscos de produzi-lo.
III – A QUESTÃO DO IMPACTO DA MÍDIA E O COMPORTAMENTO DO JUDICIÁRIO
A matéria hoje é tratada sob o impacto da mídia e com a devida prudência o Judiciário, a seu tempo, deverá fazer a devida instrução, objetivando investigar em todas as suas circunstâncias, a autoria e materialidade do delito, obedecido o devido processo legal, à vista do contraditório.
Todas as vezes que determinado caso repercutir nos meios de comunicação, e estes buscarem auxílio a população para influenciar o judiciário, faz com que surja novas leis, aumentando penas e criando crimes.
A proteção da imparcialidade do juiz é de suma importância.
A postura que se espera do Poder Judiciário é de agir sem formalismo, excesso de burocracia, distância, isolamento e uma cultura jurídica positivista.
Para isso, trago a lição de Isidoro Álvarez Sacristán(La justicia y su eficácia, Colex, 1999, pág. 187), no sentido de que se traga uma diretriz sociológica para a norma, que não é outra coisa que a interpretação sociológica que traduz a realidade social do tempo em que deve ser aplicada.
Com isso trago a ideia de que se deve ter cuidado com os chamados pré-julgamentos mediáticos.
A veiculação midiática referente a qualquer fato contribui para a formação da opinião das pessoas em detrimento de certo assunto; tendo sido este assunto objeto ou não de julgamento no poder judiciário.
Até onde vai a liberdade de expressão?
A liberdade de expressão, entendida como liberdade da imprensa, está assegurada pelos preceitos constitucionais.
Contudo, percebe-se que o interesse da imprensa atualmente não é só o de veicular informações, mas também noticiar eventos que ofereçam maiores índices de audiência, geralmente relacionados aos casos de grandes repercussões na seara criminal, onde os fatos são narrados de forma parcial e sensacionalista, onde os suspeitos já encontram-se pré-condenados na TV, nos jornais e na internet, antes mesmo do julgamento.
Necessário cautela com pré-julgamentos que principalmente surgem diante de crimes dolosos contra a vida de competência constitucional do Tribunal do Júri.
Daí a necessária independência do Poder Judiciário
Disse bem o ministro Celso de Mello, em mais uma de suas memoráveis lições, como no julgamento dos embargos infringentes na APN 470:
“O dever de proteção das liberdades fundamentais dos réus, de qualquer réu, representa encargo constitucional de que este Supremo Tribunal Federal não pode demitir-se, mesmo que o clamor popular se manifeste contrariamente, sob pena de frustração de conquistas históricas que culminaram, após séculos de lutas e reivindicações do próprio povo, na consagração de que o processo penal traduz instrumento garantidor que a reação do Estado à prática criminosa jamais poderá constituir reação instintiva, arbitrária, injusta ou irracional.”
Fica aí a lição.