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Distinção entre os casos de tutela cautelar e os de antecipação de tutela

01/12/1999 às 01:00
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Ao estudarmos os pressupostos básicos e fundamentais que balizam a aplicação desses dois remedium juris, é comum verificarmos que em alguns julgados estar-se adotando, dentre alguns julgadores, a tendência de adotar-se um excessivo tecnicismo para separar em compartimentos estanques e inflexíveis as hipóteses de tutela cautelar e as de antecipação de tutela, quando a lei não vislumbrou isso, tanto assim que não balizou tais compartimentos.

Faz-se necessário, urgentemente, que o operador do direito tenha muita prudência no tratamento de matéria tão delicada, como é o caso da prevenção em qualquer de suas modalidades, já que o rigor tecnicista pode, sem qualquer dúvida, anular a conquista instrumental, trazendo com isso irreparáveis males à efetividade da prestação jurisdicional, bem maiores do que os que causava a falta do remédio inovador.

Convém seja lembrado que a antecipação de tutela, no direito brasileiro, não foi adotada com a intenção de diminuir ou enfraquecer a tutela cautelar. Ela foi inspirada, pelo contrário, na necessidade de suprir deficiências que o sistema preventivo apresentava. Veio, assim, para somar e não para subtrair, daí ser conveniente ponderar que, se resta bem claro no direito brasileiro atual, a diferença técnica ou teórica entre a tutela cautelar e a tutela antecipatória, o mesmo nem sempre ocorre nas situações práticas postas nas mãos do julgador para solução judicial.

A vida de cada um de nós, seres humanos, nem sempre se amolda docilmente às previsões do legislador, como, do mesmo modo, não aceita a rigidez de suas normas como fórmulas infalíveis de compreensão e solução da complexa e multifacetária convivência humana numa sociedade cuja característica dominante é o conflito acima de tudo e não a singela e espontânea busca de comportamento individual pautado segundo o programa do direito positivo.

Registre-se, por oportuno, que a pretensão de separar em campos diametralmente diversos e bem delineados, as medidas cautelares e as de antecipação de tutela, é tarefa que apenas o direito brasileiro, ambiciosamente, almejou. No direito europeu – onde primeiro se sentiu e exaltou a necessidade de incluir nos poderes do órgão judicial o de, em caso de urgência, permitir não só a prevenção, mas também a satisfação provisória da pretensão cuja realização se busca na tutela definitiva de mérito –, o que se fez não foi criar uma nova modalidade de prestação jurisdicional a par da cautelar. Entendeu-se, simplesmente, que a lei poderia perfeitamente ampliar a tutela cautelar para incluir, dentre as medidas de eliminação do periculum in mora, em certos casos, providências que satisfizessem antecipadamente o direito material do litigante, desde que isso fosse indispensável ao atingimento da plena efetividade da prestação jurisdicional, ficando resguardada a possibilidade de reversão, na hipótese de eventual resultado adverso para o beneficiário na sentença definitiva da lide.

Não podemos esquecer como é importante que conheçamos os antecedentes históricos do art. 273 do nosso CPC, com a nova redação que lhe deu a Lei nº 8.952/94, a fim de evitarmos atitudes de rigidez conceitual que não condizem, de maneira alguma, com os objetivos que a ampliação da tutela preventiva visou alcançar, dentro da perspectiva de uma prestação jurisdicional que se afastasse do plano meramente formal para atingir o da realidade material e do da plena efetividade da Justiça.

Verificamos que no direito europeu, onde se forjaram esses antecedentes históricos e culturais, tudo se fez, em matéria de tutela antecipatória, dentro do próprio conceito de poder geral de cautela, sem que a tradição da ciência processual se sentisse compelida a entrever uma repugnância entre a noção de prevenção cautelar e a de antecipação provisória emergencial, quando ambas fossem geradas pela conjuntura comum do periculum in mora.

A propósito, convém ressaltar que o direito comparado contemporâneo admite tranqüila e maciçamente que o perigo obstaculável pela tutela cautelar (periculum in mora) tanto pode afetar o processo pendente como o direito material subjetivo do litigante. Daí que a medida cautelar tanto pode impedir a simples frustração da sentença como ato processual definitivo como pode antecipar provisoriamente a mesma sentença para evitar a inutilização irremediável do próprio direito material da parte que demanda a tutela jurisdicional.

Andrea Proto Pisani (in "La Nuova Disciplina del Processo Civile", Napoli, Jovene Ed., 1991, p. 308), ancorando-se na constatação da existência dessas duas espécies de periculum in mora, assegura que é possível distinguir os provimentos cautelares em duas grandes categorias:

"a) provvedimenti cautelari conservativi della situazione di fatto o di diritto su cui dovrà incidere la futura sentenza; e

b) provvedimenti cautelari anticipatori della soddisfazione del diritto"

Ferrucio Tommaseo, do mesmo modo, registra que o poder cautelar do juiz não se restringe a evitar o risco dos fatos prejudiciais derivados da demora do processo (atacados pelas medidas cautelares conservativas), mas alcança, também, "il danno che può derivare dal verificarsi, durante le more del processo, di fatti lesivi del diritto controverso". Nessa hipótese, deve atuar a medida cautelar como "tecnica della anticipazione della soddisfazione", para o fim de "impedire il pregiudizio che il perdurare di una situazione antigiuridica provoca al titolare del diritto" (Tommaseo in "I Provvedimenti D´Urgenza", Padova, Cedam, 1983, pp. 134-135; também Proto Pisani, ob. cit., p. 308).

O direito comparado, particularmente nas fontes européias, aonde os processualistas brasileiros mais buscam inspiração, como se verifica pelas citações retro, não aponta nem se fixa no rumo de uma  diversidade essencial entre tutela cautelar e tutela antecipatória. Pelo contrário, as reúne como simples espécies de um mesmo gênero de tutela jurisdicional. A distinção entre "provvedimenti cautelari conservativi i provvedimenti cautelari antecipatori" é feita no plano eminentemente teórico para justificar as dimensões e os fundamentos da tutela em questão e, sobretudo, para "consentire una prima distizione fra i variegati fenomeni che rientrano nella tutela cautelare complessivamente intesa" (Proto Pisani, ob. cit., p. 308).

Como se verifica, longe de assinalar uma barreira intransponível entre as medidas conservativas e as antecipatórias, o que se intenta no direito europeu de hoje é harmonizá-las como integradas ambas dentro da sistemática e do escopo geral da tutela cautelar.

O operador do direito, segundo entendimento da grande maioria da doutrina, mui particularmente, entre nós, do mestre Humberto Theodoro, pois, não deve indeferir o pedido de tutela antecipada simplesmente porque a providência preventiva postulada se confundiria com medida cautelar, ou, rigorosamente, não se incluiria, de forma direta, no âmbito do mérito da causa. Havendo evidente risco de dano grave e de difícil reparação, que possa, realmente, comprometer a efetividade da futura prestação jurisdicional, não cometerá pecado algum o decisório que admitir, na liminar do art. 273 do CPC, providências preventivas que, com maior rigor, deveriam ser tratadas como cautelares.

O que não é possível tolerar é a manobra inversa, ou seja, transmudar medida antecipatória em medida cautelar, para alcançar a tutela preventiva sem observar os rigores dos pressupostos específicos da antecipação de providências satisfativas do direito subjetivo em litígio. Sem dúvida, em assim acontecendo, estaríamos diante de um error in procedendo, com inegável prejuízo à parte.

Não se deve censurar o legislador por ter ampliado os poderes cautelares do juiz permitindo-lhe, inclusive, conceder a antecipação da tutela de mérito, e isto pelo medo de que tais faculdades possam gerar abusos e arbitrariedades.  A verdade, porém, é que, universalmente, registra-se uma evolução nas leis processuais civis exatamente na direção de agilizar a prestação jurisdicional e de contornar as crises dos procedimentos clássicos mediante expedientes expeditos, mais eficazes e comprometidos muito mais com a garantia de justiça do que simplesmente com os ritos e sociedades que sempre representaram, na ordem prática, mais embaraço do que incentivo à real tutela aos direitos subjetivos violados ou ameaçados.

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O nosso legislador, sem dúvida, tomou conhecimento da dura verdade de que o processo, tal como concebido em seu rito comum ou ordinário, não estava suficientemente aparelhado para enfrentar os problemas de emergência. Do mesmo modo como a medicina tem aperfeiçoado, cada vez mais, as técnicas cirúrgicas de emergência, exatamente na busca incessante de meios e técnicas mais ágeis para salvar pacientes em risco de vida, também o direito processual tem de conceber expedientes capazes de tutelar, em caráter de urgência, os direitos subjetivos que não podem deixar de ser prontamente exercitados, sob pena de perecerem e de conduzir os respectivos titulares a um profundo descrédito no processo judicial como um todo, o que, infelizmente, muitos juízes teimam em não querer entender, como se fossem os únicos senhores da verdade e do direito, postados até acima da lei.

Face à semelhança, bom lembrar Pajardi quando diz que as medidas de tutela provisória, no campo processual, devem ser encaradas da mesma forma com que se cuida, em medicina, das cirurgias de urgência, que não permitem ao médico observar todas as cautelas e precauções de ordinário prescritas para os tratamentos de rotina. Explica que o paciente em condições normais é colocado em observação por tempo técnico, sob acurada análise e cuidadosa avaliação, inclusive com opção de experiência de eventual alternativa clínica farmacológica. Mas aquele que se apresenta em condições críticas, configuradoras de um estado de emergência, reclama uma intervenção cirúrgica imediata, sob pena de a futura cirurgia tornar-se inútil, diante do risco iminente do advento da morte do paciente. Há técnicas e cirurgiões para pacientes normais e técnicas e cirurgiões de urgência, tal a especificidade desse último tipo de cirurgia.

Sem nenhuma dúvida, o mesmo ocorre com a tutela jurisdicional, onde há o processo normal, naturalmente lento e demorado, e há o processo de emergência, para as situações de urgência. Em todos os casos de risco de dano iminente e grave, o processo normal se apresenta como inútil, porquanto a parte não dispõe de tempo para utilizá-lo de forma a impedir a consumação do grave prejuízo que se avizinha (Piero Pajardi, "La Ideologia Ispiratrice dei Provvedimenti D´Urgenza in Generale", in Tarzia, ob. cit., p. 296).

Um juiz que não esteja provido de preparo técnico e de equilíbrio pode – é verdade –, no uso do poder de criar medidas de urgência, provocar danos incalculáveis e comprometer até mesmo o direito em litígio, ainda que isto se concerte por meio de remédios de retificação e de recursos também eficazes e rápidos, e não pela simples eliminação do remédio processual de urgência, com sérios prejuízos ao jurisdicionado pela só demora na obtenção do remedium juris que afaste os danos causados por esse despreparo e falta de equilíbrio.

Digamos que do mesmo modo como não se recusa o bisturi ao cirurgião de urgência, por simples temor de vir a ser por ele mal utilizado, também não se pode negar ao juiz um amplo poder de antecipar providências e de tomar medidas preventivas, por temor ao despreparo técnico ou à falta de sensibilidade do julgador. Por fim, valendo-nos, ainda, das lições do atualizadíssimo doutrinador italiano, convém lembrar o que ele destaca, quando afirma que "a linha de tendência do movimento de reforma do processo civil é acima de tudo favorável à idéia do processo urgente" (Pajardi, ob. cit., p. 298), arrematando com singeleza: "não se pode refrear o movimento de progresso que perpassa o processo civil pela ótica paralisante do medo" (idem, ibidem).

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Sobre o autor
Ismael Marinho Falcão

advogado e jornalista em João Pessoa (PB), professor de Direito no Centro Universitário de João Pessoa

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FALCÃO, Ismael Marinho. Distinção entre os casos de tutela cautelar e os de antecipação de tutela. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 37, 1 dez. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/872. Acesso em: 22 nov. 2024.

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