A Lei nº 8.112/90, o chamado Regime Jurídico Único da esfera federal, com a pretensão de dar o tom para os demais estatutos, refere-se à tipificação da falta disciplinar no art. 161, in verbis:
"Tipificada a infração disciplinar, será formulada a indiciação do servidor, com a especificação dos fatos a ele imputados e das respectivas provas."
O legislador foi infeliz na redação desse artigo, tanto quanto foi impreciso em outros dispositivos da mesma Lei, construída sob o improviso, como as palafitas dos mangues. E pode-se dizer que acabou, por efeito em cascata, estendendo a confusão – e instabilidade - a Estados e Municípios.
O regime disciplinar federal, que deu o tom aos estatutos nos Estados e Municípios, é de singular imprecisão técnica. Por efeito em cascata, estendeu a todos a confusão e a insegurança.
Na linguagem técnico-jurídico, todavia, como em outros ramos da ciência, as palavras ganham sentido específico. Assim, por exemplo, se para o leigo denunciar é o mesmo que queixa-se de alguém ou apontar um culpado, para o Direito a denúncia é a peça inauguratória da ação penal. O verbo tipificar significa tornar típico, ou seja, caracterizar determinada coisa ou ação como um tipo, estabelecendo uma relação com um modelo pré-existente. No campo jurídico-penal, por essa linha semântica, surgiu a figura da tipicidade, que, no dizer do clássico mestre Aurélio Buarque de Holanda Pereira, é "a qualidade de um fato que abrange todos os elementos da definição legal de um delito."
A tipificação, portanto, está relacionada à caracterização de uma conduta de acordo com o tipo (modelo, espécie) delineado na lei penal. Veja-se, por exemplo, o tipo penal retratado no art. 216 do Código Penal (atentado violento ao pudor):
"Induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ou permitir que com ela se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:"(grifamos)
Note-se que o tipo traz especialmente três comandos: a mulher tem que ser honesta. O agente age mediante fraude e o ato praticado é diferente da conjunção carnal. Se a mulher não for honesta, já não se caracteriza o tipo; também não haverá o crime se inexistente a fraude ou se o ato confundir-se com a conjunção carnal. A tipificação, portanto, é o perfeito ajuste da conduta ao modelo traçado pela lei.
Em que pese a relação estreita do processo penal com o processo disciplinar, não há que se falar em tipificação de faltas disciplinares. Isso porque o rol de condutas marginais no serviço público é de tal ordem amplo que nenhum exercício de criatividade esgotaria o campo da previsão. Os fatos seriam sempre mais ricos que a produção legislativa. Por isso, os servidores públicos estão vinculados a regras gerais de conduta, exemplificativas, suscetíveis de enquadramento a partir do confronto com princípios gerais do direito, com os princípios inerentes ao processo disciplinar e, especialmente, os princípios traçados como fundamentais ao exercício da função pública, postos com relevo no art. 37, caput, da Carta Política.
Basta observar-se a diferença de redação entre tipos penais e as normas disciplinares. Enquanto na lei penal o tipo vem descrito de forma minudente, fechada, terminativa, nos estatutos disciplinares a referência é aberta, abrangente. Por exemplo, ao servidor é proibido (art. 117 da Lei nº 8.112/90):
"XV – proceder de forma desidiosa".
Não há qualquer detalhe para aferimento. É uma redação genérica.
Nas normas disciplinares nas Casas do Congresso Nacional não existe qualquer previsão de que perderá o mandato o parlamentar que tiver relações com pistoleiro de aluguel. Isso, todavia, não impediu a cassação de deputado, sob o enquadramento genérico da falta de decoro parlamentar.
Certo estatuto da Polícia Civil considera falta disciplinar a negligência na revista de presos, mas não se refere a negligência na guarda de presos. Em ocorrendo fuga de encarcerados, por visível ausência de cautela do agente, advogou-se o entendimento de que este estaria à margem da responsabilidade por falta de previsão legal específica. Não é, data vênia, a melhor interpretação. A leitura do texto é sempre o começo, nunca o fim da tarefa de interpretar. De acordo com o eminente Carlos Maximiliano, nome maior da hermenêutica pátria, a lei deve ser interpretada inteligentemente, de forma a não conduzir ao absurdo ou não inviabilizar a sua aplicação. Por isso, a negligência do agente público, em sentido amplo, será enquadrada por aproximação nas previsões gerais do estatuto. Um estudo da natureza do seu ofício, das obrigações gerais do cargo e um confronto com os deveres inerentes ao exercício da atividade pública, como o dever de agir, de que tão bem trata Diogenes Gasparin no seu clássico "Direito Administrativo" (Ed. Saraiva) viabilizará à Administração, no cumprimento da obrigação de controle, a promoção da responsabilidade funcional do servidor.
As faltas disciplinares não são objeto de tipificação. Elas são enquadradas, ajustadas, aproximadas do plano geral traçado nos estatutos.
Uma coisa é o mau uso do poder pela autoridade, a liberalidade, a ação arbitrária e irresponsável. Outra coisa é o ajuste das regras gerais aos casos concretos. Isso é feito com critérios, à luz da técnica de interpretação jurídica. A análise dos compromissos do Estado, o exame das características do serviço público e a valoração da conduta do agente no contexto do seu trabalho são balizas que devem ser consideradas.
Conclusivamente, as faltas disciplinares não são objeto de tipificação. Elas são enquadradas, ajustadas, aproximadas do plano geral traçado nos estatutos. A motivação, por ser princípio do processo administrativo, deve acompanhar esse enquadramento, como garantia ao imputado e como segurança à própria Administração, que não poderá ter confundida a sua atividade de controle com o patrocínio do arbítrio.