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Tutela antecipada contra a Administração Pública e dispensa de precatório

19/01/1997 às 00:00
Leia nesta página:
"O tempo exerce uma forte influência na sua configuração, pois ele há de sempre atuar
como um fator positivo para que a norma formal alcance o seu objetivo
que é a entrega rápida da prestação jurisdicional"
(´Eficácia da Medida Cautelar´, de lavra do Ministro do Superior Tribunal de Justiça,
José Augusto Delgado,
in Teia Jurídica n° 40 - Internet)


A gênese desta problemática vem à lume quando se admite a tutela antecipatória contra a Administração Pública, fato este, a nosso ver, que deveria raiar-se pela impossibilidade (*) (Prática Processual Previdenciária, Ed. LTr, 1996, pp. 165-69).

Mas, se for a dita antecipação concedida, e, demais disso, tratar-se de verba de caráter alimentar, não somente a inexigibilidade do precatório se impõe, como, igualmente despiciendo torna-se a prestação de caução, sob pena de malferimento ao sistema processual e equivocada interpretação constitucional.

Neste prisma instrumentalista é que se desenvolverá o tema suso mencionado, com vistas a que se abram novas perspectivas de seu estudo, na dinâmica dos casos concretos, que, sabidamente, o sistema jurídico-positivo haverá de dar, senão a melhor, pelo menos a mais plausível das respostas.


DA ORDEM CONSTITUCIONAL COMO INFORMADORA DA EXEGESE JURÍDICA

As normas jurídicas do mais alto grau encontram-se lançadas na Constituição Federal, mas, ainda assim, a relevância delas é diferenciada, tendo em vista que umas veiculam regras, enquanto que outras, por sua vez, consagram princípios, como magnificamente apregoado por ROQUE ANTÔNIO CARRAZA (Curso de Direito Constitucional Tributário, 6ª ed., Malheiros Editores, p. 27).

Desta feita, e é por isso que sempre digo, sem a dimensão de uma exegese principiológica, o operador do direito passaria a tratar todas as normas como se iguais fossem, sem dar-se conta de que uma regra, mesmo que constitucional, pode ter conteúdo de dignidade dissemelhada (Cf. o nosso `Devido Processo Legal na Administração Pública (enfoques previdenciários)’, no prelo da Ed. LTr).

Se somente os princípios darão os parâmetros de uma escorreita exegese, já que deles poderá se ter idéia exata do querido pelo regime jurídico positivo, mister observar que, em algumas situações, existem verdadeiras ‘colisões de direitos fundamentais’. Ou seja, podem ocorrer situações em que ter-se-ão dois direitos garantidos constitucionalmente, mas, ainda assim, a moldura fática virá exigir que um deles seja sacrificado. Como proceder em tais hipóteses? Não se deslembrando que, uma vez mais, o plano das normas constitucionais e, sobretudo, o altiplano dos princípios jurídicos devem ser o norte almejado.


DA COLISÃO ENTRE DIREITOS ASSEGURADOS CONSTITUCIONALMENTE

A presença de tensões entre dois ou mais direitos protegidos, todos eles, no plano constitucional, não é nova e nem tampouco trata-se de invenção deste modesto escritor, isto, aliás, pode ser conferido na matéria escrita pelo jurista TEORI ALBINO ZAVASCHI (Antecipação da Tutela e Colisão de Direitos Fundamentais, in Reforma do Código de Processo Civil, Cord. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Ed. Saraiva, 1996).

E, no caso em comento, não se pode negar que há a presença de dois direitos fundamentais, quais sejam: o direito de o Estado condenado a pagar seus credores, fazê-lo via precatório (art. 100 da Lei Mater) e, por outro lado, o direito de o administrado ter acesso a uma jurisdição justa e eficaz (art. 5º, incisos XXXV e LIV, também da Carta da República Federativa do Brasil).


DOS PRINCÍPIOS CARDEAIS FRENTE ÀS TENSÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

O remédio para choques de direitos, que se confrontem no momento de sua aplicabilidade, encontra prescrição na lira de J. J. GOMES CANOTILHO, assim vazada: "a solução do conflito há de ser estabelecida mediante a devida ponderação dos bens e valores concretamente colidentes, de modo a que se identifique uma relação específica de prevalência de um deles" (Direito Constitucional, 5ª ed., Ed. Almedina, 1992, p. 657).

Em síntese, pode-se dar como cânones para a temática da controposição de direitos fundamentais, os abaixo catalogados:

a) princípio da necessidade — resumido na senda de que o conflito reinante haverá de ser real e não passível de solucionamento via convivência harmônica dos direitos em oposição (Antecipação da Tutela, cit.);

b) princípio da restrição minimizada — a limitação hermenêutica, em sede de direitos fundamentais, haverá de pautar-se no limite estrito do atendimento à colmatação dos direitos em choque;

c) princípio da proporcionalidade — explicável na sanação de interpretações que conduzam ao excesso, deixando entrever que a relatividade é perceptível, também, no campo jurídico, e, por conseqüência, a melhor argumentação é aquela que pondere os valores em jogo. O Professor Paulo Bonavides, em seu Curso de Direito Constitucional, 4ª ed., Malheiros Editores, 1993, p. 344 e seguintes, averba que: "Uma das aplicações mais proveitosas contidas potencialmente no princípio da proporcionalidade é aquela que o faz instrumento de interpretação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos fundamentais e se busca desde aí solução conciliatória, para a qual o princípio é indubitavelmente apropriado. As Cortes constitucionais européias, nomeadamente o Tribunal de Justiça da Comunidade Européia já fizeram uso freqüente do princípio para diminuir ou eliminar a colisão de tais direitos";

d) princípio da salvaguarda do núcleo essencial dos direitos fundamentais — para pacificar o embate entre direitos fundamentais não se pode eliminar a substância elementar de um deles (Direito Constitucional cit, de J. J. Canotilho, p. 630).


DA PREVALÊNCIA DA DECISÃO CONCESSIVA DE TUTELA ANTECIPADA, COMO MEIO DE EXEQÜIBILIDADE IMEDIATA, FRENTE AO INSTITUTO DO PRECATÓRIO, SE PARA ATENDER O PROVIMENTO JUDICIAL HOUVER RECURSO MONETÁRIO

Sabidamente, o precatório é a forma normal de solvimento de débitos do Estado, oriundos de ordem judicial trânsita em julgado. E que, por isso mesmo, o requisitório obedece todo um plano cronológico precedente ao desembolso do numerário, como meio de se assegurar a devida previsão orçamentária. Todavia, se a administração possuir dotação para tal fim, nada impede que ela efetue o pagamento, porque, do contrário, seria uma injusticável protelação.

De outro lado, todavia, a decisão que concede a tutela antecipada é de plano exeqüível, até porque o predito provimento de urgência tem como norte "a utilidade da prestação jurisdicional e a busca da celerização de tal tutela" (Cf. Emerson Odilon Sandim, in Prática Processual cit., p. 166).

Então, in casu, tem-se dois institutos jurídicos onde o fator tempo é tido diferentemente para cada um deles, isto é, para o precatório, a demora é mesmo da sua essência e, ao contrário, para a tutela antecipada, o vetor temporal é de ser vencido a todo custo, sob pena de malogro de tal meio procedimental.

Ora, se a Administração Pública possuir numerário para solver uma quantia e, por outro lado, se a ordem judicial haverá de ser cumprida a nível de tutela de urgência, a principiologia acima mencionada recomenda que é proporcional, razoável e jurídico, que o desembolso, em caso que tal, seja levado a efeito fora dos parâmetros do requisitório.

Pensar-se de forma diversa, a par de malferir o direito a uma jurisdição justa, seria deixar que motivos caprichosos pudessem adentrar ao âmago da Administração Pública, fazendo com que o precatório deixasse de ser a via do respeito à ordem orçamentária para transmudar-se em modalidade de procrastinação de solvimentos de débitos do Estado. Ora, a própria moralidade, insculpida no art. 37, caput, da Constituição Federal já poria, terra abaixo, um entendimento de tal jaez, que, por um certo vezo, ainda é, de certa forma, preconizado pela Administração Pública.

Tem-se, ademais, outro argumento que bem reforça a inexigibilidade do precatório para a espécie em testilha, qual seja: o art. 100 da Carta da República, fala em "sentença judiciária" como pontecializadora do mesmo. Entrementes, o provimento judicial que não transitou em julgado é despido de possibilidade de gerar ofício requisitório a teor do que se extrai da letra do art. 730, do Código de Processo Civil, guindado na índole de uma execução específica, que, por isso mesmo, pressupõe um título judicial timbrado pela definitividade. E, obviamente, o ato judicial que concede a tutela antecipatória é um meio anômalo de engendrar atos de executividade, por tratar-se de mera decisão interlocutória, uma vez que o diploma processual civil exige, para a configuração de título executivo, a existência de uma sentença condenatória (art. 584, inciso I, do diploma processual civil).

Disso sobressai uma indagação: para excutir uma tutela antecipada mister que se instaure, a título de execução provisória, um novo processo, com vistas a implementar a pretensão insatisfeita? Ou, ao contrário, o art. 273, § 3º, do Código de Processo Civil, é de ser interpretado com um norte diferenciado, vendo que a ‘execução provisória’, ali existente, é apenas informadora de como se procedimentalizar a execução da tutela de urgência?

Parece que neste último rumo é o escólio doutrinário de J. J. CALMON DE PASSOS, ao prelecionar que: "O § 3º do art. 273 prescreve que a execução da tutela antecipada observará, no que couber, o disposto nos incisos II e III do art. 588. Os referidos dispositivos dizem respeito à execução provisória e preceituam que ela não abrangerá atos que importem em alienação do domínio (...) O § 2º do mesmo art. 273 já estabelecera não ser possível a concessão da antecipação havendo perigo de irreversibilidade do provimento antecipado. Esses dispositivos reforçam, decisivamente, o entendimento de que a antecipação outra coisa não é senão emprestar eficácia executória, de caráter provisório, à decisão de mérito que dela seria desprovida.

Cuida-se, em verdade, de uma hipótese de execução provisória, acrescida ao que prevê o art. 587 do Código e com os temperamentos postos na lei" (Da Antecipação da Tutela, in Reforma do Código de Processo Civil cit., p. 209).

Seria, com certeza, um contra-senso pensar na abertura de uma execução, como processo autônomo, na postulação do cumprimento de uma tutela antecipatória de feitio condenatório, no mínimo, por estes pontos:

a) Se se entender como processo de execução provisória o cumprimento de decisório que deferiu tutela de jaez condenativo, abrir-se-ia prazo para o réu embargá-la e, assim sendo, restaria suspenso o feito da referida execução provisória. Onde se teria a razão de ser da tutela emergencial?

b) possibilitando-se embargos, como acima alinhado, seriam eles tidos na conta de cabíveis na hipótese do art. 741 do diploma processual civil, que contém os permissivos de forma taxativa. Muito bem: todos os incisos ali referentes têm por hipótese de incidência situações posteriores ao término do processo de conhecimento, exceto a do inciso I. Como tornar factível uma fundamentação qualquer do art. 741 se nem sequer, em muitos dos casos da concessão da tutela antecipada, houve ainda a citação do réu ou fora apresentada a contestação? De maneira que tudo indica pela inexistência de processo de execução provisória, sob pena de se cogitar que haja uma ‘execução sem possibilidade, ainda que diferida, de contraditório’.

Bem por isso, que colhe-se a lição de DONALDO ARMELIN, onde giza que: "Do sistema implantado pelo art. 273 conclui-se que mister não se fará, para tanto, a incoação de um processo novo, implicando a aceitação da decisão interlocutória, que autorizar a antecipação, com efeitos de título executivo judicial..." (`O Processo de Execução e a Reforma do Código de Processo Civil’, in Reforma do Código de Processo Civil cit., p. 685).

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Como cogitar-se de precatório, que vem seguido de uma execução definitiva, tal como estabelecido no art. 730, do Código de Processo Civil, se a ‘execução provisória’ de tutela antecipada de feitio condenatório sequer demanda o aforamento de processo específico? Quem requisitaria o precatório? O próprio juiz da tutela emergencial? Após transcorrido que lapso temporal?

De efeito, a tutela antecipada, como é curial, se voltada contra a Administração Pública, há de ser cumprida incontinente, sob pena de desvirtuamento de sua ratio essendi que é, justamente, vencendo o tempo, precipitar o atendimento do direito material do autor, ou, na brilhante linguagem de ARRUDA ALVIM: "A decisão proferida dentro de um sistema mais célere, em que se prescinde de audiência, sem lesão às partes" (`Tutela Antecipatória (Algumas noções - contrastes e coincidências em relação às medidas cautelares satisfativas’, publicada na Revista Programa de Pós-graduação em Direito da PUC-SP, nº 2, Max Limonad, p. 189).


DO LEVANTAMENTO DE DINHEIRO DEPOSITADO, FACE À DECISÃO DE TUTELA ANTECIPADA QUE COMPELE AO SOLVIMENTO DE VERBA DE ÍNDOLE ALIMENTAR, PRESCINDIBILIDADE DE OFERTAMENTO DE GARANTIA

Já que a conclusão que se chegou no item anterior é de que o precatório torna-se dispensável, soa oportuno inquirir: pode o beneficiado, com a prefalada tutela antecipada, levantar numerário, em que Administração Pública fora constrangida a depositar, sem prestar qualquer tipo de garantia?

O § 3º do art. 273 do Código de Processo Civil informa que a executividade da tutela antecipada, no que couber, segue os preceitos da execução provisória. Ou seja, todas as vezes que a antecipação estribar-se em levantamento de dinheiro, mister que seja prestada garantia, como exsurge do art. 588, inciso II , do mesmo diploma legal.

Poder-se-ia objetar:

1º) O art. 588, inciso I, do Código de Processo Civil, que exige a prestação de caução não é aplicável à tutela antecipada, ex vi legis: § 3º do art. 273, do mesmo codex. Como, então pretender-se que haja ofertamento de garantia para o levantamento de um numerário?

2º) Ainda mais, se se tratar de lide de caráter alimentar. Porque preconiza a jurisprudência pátria que, em execução provisória de verba alimentária, não se há de prestar caução (cf. RJTJESP 107/246). Destarte, e por analogia, não é de se dispensar, também, da garantia exigida pelo inciso II, do art. 588, do Código de Processo Civil? Enfim, os institutos da caução e o da garantia, previstos nos incisos I e II, do citado texto normativo, não têm ambos a mesma finalidade, que é assecuratória?

O que não se precisa na execução provisória de tutela antecipada é prestar caução para inaugurar esta fase executiva, que, aliás, em regra, ocorrerá no próprio processo de conhecimento, como dantes fizemos questão de evidenciar. Porém, daí a dispensar-se a caução em levantamento de depósito vai uma grande distância, mesmo porque, a lei processual civil veio de exigi-la, como se apreende do próprio § 3º, do art. 273. Se não fosse essa a clara intenção da norma, com certeza, teria abdicado de inserir tal exigência, como fez com o inciso I do art. 588, do mesmo diploma legislativo.

Mas, se a ação é de caráter alimentar, porque imbricada em vencimento funcional (ou outra situação congênere), ainda assim, como demandar caução para efetuar levantamento de depósito originado de concessão de tutela antecipada? Não é isso incompatível com a essência mesma deste tipo de litígio?

Verdadeiramente, se se está frente à verba alimentar, ainda que em execução imprópria, o certo é que se aplica, por analogia, a regra inserta no art. 732, parágrafo único, do Código de Processo Civil, isto é, mesmo diante de embargos à execução, que são suspensivos de tal feito, pode o exeqüente-alimentando efetuar o levantamento da verba depositada, sem que haja prestação de caução, obviamente.

Este modo de pensar já é bem antigo, basta conferir a ensinança de LAFAYETE: "o alimentário não é obrigado a dar fiança para receber os alimentos" (Direitos de Família, 2ª tiragem, 1889, § 140, p. 259).

E não se pode perder de vista, ainda, que a execução provisória de tutela antecipada segue os ditames do art. 588 do Código de Processo Civil "no que couber", como se vislumbra do muitas vezes citado § 3º, do mesmo codex. E a esta expressão ‘no que couber’, com certeza, existe na lei exatamente para situações como esta, ou seja, para verbas alimentares.


DAS CONCLUSÕES

Tem-se, afinal, o seguinte:

a) dispensa-se o precatório para a execução provisória de tutela antecipada, quando a executada for a Administração Pública, em homenagem ao rito procedimental próprio que guinda as medidas de urgência;

b) não se há, igualmente, falar-se em prestação de caução para levantamento de numerário depositado em virtude de decisão concessiva de tutela antecipada, quando a pretensão de direito material tiver conteúdo alimentar, por aplicação analógica do art. 732, parágrafo único, do Código de Processo Civil.


NOTA

(*) Posteriormente, o autor mudou seu posicionamento sobre este aspecto. Vide, a respeito: "Da antecipação de tutela frente às demandas previdenciárias e, também, em direção à Fazenda Pública lato sensu, ressalvada a questão precatorial. Sugestões pragmáticas". In: http://www.jus.com.br/doutrina/tuteinss.html

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Sobre o autor
Emerson Odilon Sandim

Procurador Federal aposentado e Doutor em psicanalise

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANDIM, Emerson Odilon. Tutela antecipada contra a Administração Pública e dispensa de precatório. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. 5, 19 jan. 1997. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/880. Acesso em: 19 abr. 2024.

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