INTRODUÇÃO
O presente texto fará uma breve análise do Tema 660 do STF e suas consequências em um sistema jurídico civil law de direito, porém cada vez mais common law quando da vontade e interesse dos juízes togados.
Partimos de uma visão finalística do Direito, cujo axioma buscado, ao menos em maior grau, é a Segurança Jurídica e a defesa da Liberdade, por meio de prestações estatais positivas e negativas. Explicaremos.
O Direito é eminentemente uma ciência social e jurídica que serve de baliza e de balizador para as relações interpessoais e as relações entre pessoas fictícias (leia-se Pessoas Jurídicas) de Direito Público e Privado entre si, ou entre uma delas e pessoas físicas.
Temos direitos expostos e finalísticos para a consecução da vontade da Carta Política de 5 de Outubro de 1988. Não por menos, a vontade emanada pela Constituição Federal é materializada por diversos princípios expressos e implícitos, regulando assim todo o ordenamento jurídico, caso em que, se não observado, é passível de retirada do arcabouço legal.
Esses princípios apresentam um aspecto um tanto subjetivo, dependendo do caso concreto para verificação de sua aplicabilidade. Não por menos, há um conjunto de julgadores responsáveis pela proteção da Constituição, a fim de não inibir sua eficácia e dar sentido prático àquilo que se tornou controvertido na prática.
Neste sentido, entende-se que ao Supremo Tribunal Federal cabe a guarda da Constituição1.
Pois bem. Passados estes aspectos introdutórios, iremos agora adentrar o Tema 660 do STF.
Trata-se de uma decisão do eminente Excelentíssimo Senhor Ministro Gilmar Mendes, em sede de Agravo em Recurso Extraordinário distribuído sob o número 748371 RG/MT, em que a discussão permeou uma eventual afronta ao princípio do contraditório e ampla defesa – cerceamento de defesa – referente à falta de intimação do autor sobre a purgação da mora por parte do réu.
Em síntese, o réu devia parcelas de uma locação e, após a judicialização e a regular citação da ação, purgou a mora. Então, o Douto Juízo a quo extinguiu a obrigação e a ação pela satisfação do crédito, sem intimar o autor para verificação do valor da purgação.
Estamos claramente diante de um caso de falta de observância ao princípio do contraditório e da ampla defesa, imprescindíveis ao Devido Processo Legal.
O artigo 401 do Código Civil é claro ao afirmar que há purgação da mora quando o devedor oferece a prestação mais a importância dos prejuízos2. Em outros termos, há purgação da mora quando o devedor paga o valor devido mais os prejuízos, devidamente corrigidos e em conformidade com o que é devido.
Ora, se somente nesse caso há purgação da mora, existe necessariamente um dever do juízo de intimar o autor da ação, credor da obrigação, para que este possa verificar se a prestação devida acrescida dos danos foi efetivamente paga.
Mas não só.
O artigo 62, III, da Lei de Locações é ainda mais claro ao afirmar a possibilidade de o locador alegar que a oferta não é integral, cabendo então ao locatário complementar o valor para assim purgar a mora3.
Portanto, para que o locador tenha a chance de afirmar que a oferta não é integral, é imprescindível sua intimação sobre a purgação da mora.
Creio que o Leitor que prossegue na leitura do presente artigo já compreendeu que se trata de um direito incontroverso do credor/autor ser intimado sobre a purgação da mora, para que não tenha prejuízos insanáveis.
O que me parece ainda mais complexo em relação ao que será abordado no tópico posterior é que o referido caso concreto percorreu um juízo natural e um tribunal até se findar na corte suprema, permanecendo a falha grotesca, por parte dos julgadores e, consequentemente, da ciência jurídica, diante de um direito tão elementar.
TEMA 660 DO STF
O Supremo Tribunal Federal, como corte constitucional cuja principal tarefa é a guarda da Constituição, não exerce essencialmente uma função de revisão de julgados, tendo como atribuição solucionar temas e controvérsias que atentem diretamente contra a Carta Magna.
Em outras palavras, ofensas reflexas à Constituição Federal não são analisadas quando provenientes de Recurso Extraordinário, por extrapolarem a função precípua da Corte.
Nesse sentido, o § 3º do artigo 102 da Constituição Federal dispõe ser necessário ao recorrente demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais4.
Pois bem.
No caso, não houve admissibilidade do Recurso Extraordinário, uma vez que, no entender do tribunal a quo e do Excelso Ministro Gilmar Mendes, teria ocorrido apenas, e tão somente, uma ofensa reflexa à Constituição Federal, ainda que cientes de estar consignado o direito à ampla defesa e ao contraditório no artigo 5º, incisos LIV e LV5 da CRFB/88 e no artigo 7º do Código de Processo Civil6.
Escreveu o Douto Ministro:
Sobre o tema, relembro que a ampla defesa possui densidade constitucional, portanto admite, em situações excepcionais de manifesto esvaziamento do princípio, o acesso à jurisdição desta Suprema Corte, por meio de Recurso Extraordinário.
(...)
(...) procura o Tribunal formular um critério que limita a impugnação das decisões judiciais mediante recurso constitucional. Sua admissibilidade dependeria, fundamentalmente, da demonstração de que, na interpretação e aplicação do direito, o juiz desconsiderou por completo ou essencialmente a influência dos direitos fundamentais, que a decisão se revela grosseira e manifestamente arbitrária na interpretação e aplicação do direito ordinário ou, ainda, que se ultrapassaram os limites da construção jurisprudencial.
(...)
(...) verifico que a controvérsia no caso sob exame limita-se à suposta má aplicação da legislação infraconstitucional, sobretudo do Código de Processo Civil.
(...)
Verifico, ainda, que o mesmo raciocíno acima apresentado se aplica às questões em que se invocam violações aos princípios do contraditório e do devido processo legal, bem como aos limites da coisa julgada.
A jurisprudência desta Corte é uníssona no sentido de que a suposta afronta a tais postulados dependente de prévia violação de normas infraconstitucionais, configura ofensa meramente reflexa ao texto constitucional7. [grifo nosso]
Em síntese, o Excelentíssimo Senhor Ministro Gilmar Mendes, em entendimento encampado pelos julgados dos Excelentíssimos companheiros de Corte em outros processos, entendeu que o cerceamento de defesa não configura, por si só, uma afronta à Constituição Federal suficiente para "tomar" o tempo dos juízes togados no exercício de suas funções.
E então fixou a seguinte tese referente ao Tema 660 do STF:
Violação dos princípios do contraditório e da ampla defesa quando o julgamento da causa depender de prévia análise da adequada aplicação das normas infraconstitucionais. Extensão do entendimento ao princípio do devido processo legal e aos limites da coisa julgada. 8
Entendam-nos, senhores leitores e eventuais aplicadores do Direito, o quão grave nos parece – e o quanto nos preocupa – essa irrestrita escolha discricionária dos Ministros do Supremo Tribunal Federal quanto a considerar ou não determinado princípio ou regra estampada na Constituição Federal como passível de proteção. Isto é, mesmo que previsto como um direito fundamental, ainda assim, o Supremo Tribunal Federal detém a liberalidade de decidir sobre sua constitucionalidade ou não, para fins de repercussão geral e eventual afronta direta à CF/88.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Teríamos ainda mais temas para debater no presente artigo, mas julgamos que o digníssimo leitor esteja um tanto cansado do tom irônico e perplexo que buscamos expressar nas palavras aqui trazidas.
O fato é que os princípios são conceitos vagos e abstratos, mas não podem admitir conceituações infinitas. Em outros termos, embora se possa argumentar, o Direito ao Devido Processo Legal, bem como o Direito à Ampla Defesa e ao Contraditório, são disciplinados pela legislação infraconstitucional e não dependem, ao menos em tese, de interpretação hermenêutica para serem aplicáveis. São aplicáveis desde que observadas as regras previstas pelo Código Processual.
Nesse ponto, entendemos assistir razão ao Excelentíssimo Senhor Ministro Gilmar Mendes, pois, de fato, as normas práticas relativas aos princípios do Contraditório e da Ampla Defesa estão previstas em normas infraconstitucionais. Todavia, isso não afasta o fato de que tais direitos possuem dimensão constitucional e, especialmente em tempos de desvirtuamento de direitos como os atuais, exigem uma proteção rigorosa por parte da Corte Constitucional.
Percebam, senhores, não se trata apenas da decisão estampada no Tema 660 do STF – embora seja este o motivador da elaboração deste artigo –, mas sim de um conjunto reiterado de decisões semelhantes, configurando-se verdadeira jurisprudência.
Portanto, contrariamente ao entendimento firmado pelos ínclitos julgadores da Corte Suprema, e cientes do risco ao próprio axioma consagrado na Constituição Federal, consideramos que a não verificação das afrontas ao Direito ao Devido Processo Legal pela Corte Constitucional constitui verdadeira e irrestrita omissão da função que lhe é atribuída, merecendo, cada vez mais, atenção criteriosa de nossa parte, operadores do Direito. Conto com Vossa Excelência, caro leitor.
REFERÊNCIAS
1 “ Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:”
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, Brasília, 5 de outuro de 1988, disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acesso em 08/01/2021;
2 “Art. 401. Purga-se a mora:
I - por parte do devedor, oferecendo este a prestação mais a importância dos prejuízos decorrentes do dia da oferta;”
B RASIL, Lei 10.046 de 10 de Janeiro de 2002. Código Ci vil, Brasília, 10 de janeiro de 2002, disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm, acesso em 08/01/2021;
3 “Art. 62. Nas ações de despejo fundadas na falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação, de aluguel provisório, de diferenças de aluguéis, ou somente de quaisquer dos acessórios da locação, observar-se-á o seguinte:
III – efetuada a purga da mora, se o locador alegar que a oferta não é integral, justificando a diferença, o locatário poderá complementar o depósito no prazo de 10 (dez) dias, contado da intimação, que poderá ser dirigida ao locatário ou diretamente ao patrono deste, por carta ou publicação no órgão oficial, a requerimento do locador;”
BRASIL, Lei 8.245 de 18 de Outubro de 1991. Lei de Locações, Brasília, 18 de outubro de 1991, disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8245.htm, acesso em 08/01/2021;
4 “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:”
§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.”
B RASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, Brasília, 5 de outubro de 1988, disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acesso em 08/01/2021;
5 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados ocontraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, Brasília, 5 de outubro de 1988, disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acesso em 08/01/2021;
6 “Art. 7º É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.”
BRASIL, Lei 13.105 de 16 de Março de 2015. Código de Processo Civil, Brasília, 16 de março de 2015, disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm, acesso em 08/01/2021;
7 8. STF. “Tema: 660 – Violação dos princípios do contraditório e da ampla defesa quando o julgamento da causa depender de prévia análise da adequada aplicação das normas infraconstitucionais. Extensão do entendimento ao princípio do devido processo legal e aos limites da coisa julgada.”, Leading Case: ARE 748371, Relator Min. Gilmar Mendes, Brasília, publicado acórdão em: 01/08/2013, disponível em: https://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4402220&numeroProcesso=748371&classeProcesso=ARE&numeroTema=660, acesso em 08/01/2021;