1. Título I. Das disposições preliminares. Objetivos da lei. Contextos de aplicação: âmbitos doméstico e familiar. Vigência da lei. Criação dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher.
A nova lei vem para atender a um clamor contra a sensação de impunidade despertada em muitos pela aplicação da Lei do Juizado Especial Criminal aos casos de violência doméstica e familiar praticada, especialmente, contra a mulher.
A lei trata com maior rigor as infrações penais praticadas com violência contra a mulher em situações especiais: nos âmbitos doméstico e familiar. Fora de tais situações, ainda que haja violência contra a mulher, mas noutro contexto que não no doméstico e familiar, incidirão outras espécies normativas, como, por exemplo, o art. 129, "caput", do CP, em lugar do art. 129, § 9º, do CP; os arts. 21, da LCP, e 147 do CP se aplicarão nas mais variadas situações, dentro e fora dos casos de violência doméstica e familiar. Importante assinalar que as regras dos arts. 16 (exigência de audiência para a renúncia à representação), 17 (proibição de cesta básica, prestação pecuniária e multa isolada) e 41 (proibição dos benefícios da Lei n. 9.099/95 - composição civil extintiva da punibilidade, transação penal e suspensão condicional do processo – arts. 74, 76 e 89 da Lei 9.099/95 - aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher) apenas incidirão nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Fora de tais situações, não poderão ser invocadas tais normas, as quais, por serem mais gravosas, deverão receber interpretação restritiva.
Segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, versão 1.0, doméstico, dentre outras acepções, é adjetivo que significa relativo ao lar, à família, à vida particular de uma pessoa. E familiar, dentre outros significados, é adjetivo que traduz o que é da família ou vive na mesma casa; íntimo, que é considerado como fazendo parte da família.
Importante lembrar que poderão ser autores de infrações penais praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher não apenas os cônjuges ou companheiros, amásios, concubinos, namorados ou amantes, mas os próprios filhos, pais, avós, irmãos, tios, sobrinhos, enteados, padrastos etc, pois a lei não restringe o tratamento mais rigoroso nela previsto a um sujeito ativo específico e determinado. Isso não quer dizer que toda e qualquer agressão contra a mulher dentro de casa irá caracterizar violência doméstica e familiar, pois é necessário que haja alguma espécie de vínculo doméstico ou familiar entre agressor e vítima para que se justifique a aplicação da lei. Assim, não se aplicará a lei quando, por exemplo, um vizinho for o autor dessa violência, quando pessoa estranha aos contextos doméstico e familiar em que vive a ofendida for autor do fato.
Não há dúvida ainda de que esse tratamento previsto na lei irá alcançar tanto as famílias advindas do casamento, quanto aquelas originadas de uniões de fato, estáveis ou não.
Não se pode, nesse tema, perder de vista o disposto no art. 226, §§ 3º e 4º da Constituição Federal:
§ 3º Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
A nova lei há de ser entendida e aplicada em consonância com as diretrizes ditadas pela Constituição Federal, que amplia claramente os limites da proteção do Estado à família, advinda ou não do casamento.
Publicada no Diário Oficial da União, de 8 de agosto de 2006, a nova lei passa a vigorar no dia 22 de setembro de 2006, 45 dias após sua publicação (art. 46), excluído o dia da publicação oficial da lei e incluído o dia final, atendida a regra geral contida no art. 132, caput, do Código Civil de 2002 (art. 125, caput, do CC de 1916) e no art. 1º, caput, da LICC de 1916. A lei só se torna obrigatória, uma vez decorrido o período de vacância.
Segundo o preâmbulo e o art. 1º da lei, o novo diploma cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal, e dá outras providências.
A nova lei prevê a criação dos juizados especializados em violência doméstica e contra a mulher. No Estado de São Paulo, depois de mais de 10 anos da Lei 9.099/95, a rigor lamentavelmente não se instalou nem mesmo o Juizado Especial Criminal ali previsto. Agora, edita-se uma nova lei, prevendo a criação de um outro juizado especializado, cuja criação e instalação pressupõe ou deveria pressupor, obviamente, a preexistência do Juizado Especial Criminal competente para apreciação e julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo em geral.
Há também nisso um aspecto em princípio paradoxal, pois os juizados especiais criminais têm competência para conhecer e julgar as infrações penais de menor potencial ofensivo e procedimentos correlatos, e embora preveja a possibilidade de criação dos juizados especializados na violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 14), a nova lei vedou por completo, em seu art. 41, a aplicação da Lei 9.099/95 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher. Quer o legislador, com a criação desses juizados especializados, maior celeridade no julgamento de tais crimes e um andamento mais ágil para as várias medidas acautelatórias previstas na Lei 11.340/06, as chamadas medidas protetivas de urgência (arts. 18 a 24), além de tratamento humanitário e específico para a mulher vítima de violência doméstica e familiar.
2. Título II. Da violência doméstica e familiar contra a mulher. Conceituação e formas de violência.
Depois de realçar os objetivos da lei, em seu título I (disposições preliminares), dispondo sobre os direitos básicos e implementação de políticas públicas destinadas a tornar efetivos esses direitos (arts. 1º a 3º), consagrando ainda regra interpretativa similiar à contida na Lei de Introdução ao Código Civil de 1916 (art. 4º - na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar), o título II (da violência doméstica e familiar contra a mulher) se preocupa em prever e conceituar os contextos, formas e condutas que implicarão violência doméstica e familiar contra a mulher (arts. 5º a 7º). Conceituam-se a violência física, psicológica, sexual e patrimonial (art. 7º, I a IV).
3. Título III. Da assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar.
O título III (art. 8º) trata da assistência integral à mulher em situação de violência doméstica e familiar, prevendo, em seu capítulo I, as chamadas medidas integradas de prevenção, que deverão resultar de ações articuladas entre as pessoas jurídicas de direito público (União, Estados, Distrito Federal, Municípios e ainda ações não governamentais), bem como entre Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública com áreas da segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação (art. 8º, caput e I). O capítulo II trata da assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar, com enfoque voltado ao acesso à saúde e à assistência social, prevendo inclusive que o juiz determinará, por prazo certo, a inclusão da mulher em situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal (art. 9º, § 1º).
O capítulo III trata do atendimento pela autoridade policial (arts. 10 a 12), prevendo expressamente a proteção policial, com comunicação imediata ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, dentre outras medidas procedimentais, de coleta de provas (art. 12), acompanhamento da ofendida para assegurar a retirada de pertences pessoais do local da ocorrência ou domicílio familiar, bem como a remessa ao juiz, em 48 horas, de expediente apartado com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência (art. 12, III).
4. Título IV. Dos procedimentos. Formalidade para renúncia à representação (art. 16). Conjugação do art. 16 com os arts. 17 e 41 da lei. Proibição de penas alternativas como cestas básicas, prestações pecuniárias e multas isoladas em crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 17). Continuidade da exigência de representação em infrações penais praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 129, § 9º, CP; art. 21, LCP, por analogia; art. 147, CP).
O título IV (dos procedimentos) trata das regras aplicáveis ao processo, julgamento e execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher (arts. 13 a 17), prevendo a possibilidade de aplicação das regras gerais do Código de Processo Penal, do Código de Processo Civil e da legislação atinente à criança, ao adolescente e ao idoso, no que não houver conflito com o estabelecido na lei 11.340/06.
O art. 16 dispõe que nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
Redação imprecisa, pois a lei não trata de ações penais condicionadas à representação da ofendida, mas de infrações penais de ação penal condicionada à representação da ofendida.
A situação, na verdade, é de desistência da representação já formalizada. Só podemos falar em renúncia se a representação não chegou a ser formalizada. Formalidade um tanto quanto questionável, pois se para a representação não há fórmula sacramental, tratando-se de ato que pode ser deduzido perante a autoridade policial, Ministério Público, Magistrado e até mesmo perante o oficial de justiça, que fará certidão, não se justifica negar validade à renúncia ou desistência feitas por pessoa capaz, de forma clara e inequívoca, até mesmo perante o oficial de justiça, que certificará a respeito com a fé-pública inerente às suas funções. De igual modo, excesso de rigor negar validade à desistência ou renúncia da representação reduzidas a termo perante a autoridade policial ou membro do Ministério Público.
Criou-se formalismo que contraria um dos princípios e critérios básicos que regem o funcionamento dos juizados especiais criminais (o da informalidade - art. 62 da Lei 9.099/95).
E esse formalismo, que chega ao ponto de exigir audiência presidida pelo magistrado para que se faça a renúncia ou desistência da representação, não protegerá a mulher vítima de violência doméstica ou familiar, pois ninguém poderá impedi-la de renunciar ao direito de representar ou desistir da representação que eventualmente já tenha formulado. Deverá ela requerer a designação de audiência para essa finalidade? E se requerer e deixar de comparecer? Seria caso de conduzi-la coercitivamente, apenas para que ela renuncie ou desista da representação? Isso atentaria contra a dignidade da mulher, um dos pilares da lei (art. 3º). Assim como a formalidade criada, que representa um excesso de proteção, de um lado paternalista e de outro inócua, que a grande maioria das mulheres, na atualidade, certamente, não desejarão invocar.
A oitiva do Ministério Público (art. 16), nesse aspecto, pouco ou nada adiantará, pois não há como negar à ofendida o direito de renunciar à representação ou desistir da representação já formulada, antes do oferecimento de denúncia (art. 25, CPP).
Esse art. 16 aparentemente conflita com o art. 41 da lei, que veda por completo a aplicação da Lei 9.099/95 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independente da pena prevista.
Mas as duas disposições devem ser conjugadas, interpretadas sem que se perca de vista o disposto no art. 88 da Lei 9.099/95, que passou a exigir representação em crimes de lesões corporais dolosas simples e lesões corporais culposas.
Vale lembrar que o art. 88 da Lei do Juizado Especial Criminal levou à exigência de representação para a persecução penal, também para a contravenção de vias de fato (art. 21, LCP), por analogia em benefício do agente, uma vez que, se a condição de procedibilidade é exigida para o mais (lesão corporal dolosa simples e lesão corporal culposa), nada mais razoável do que exigi-la para o menos (vias de fato).
Assim, considerando a disposição contida nos arts. 16, 17 e 41 da lei, conclui-se que o intuito do legislador foi afastar as penas alternativas de cesta básica, prestação pecuniária e aplicação isolada de multa em crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, mas não foi do intuito do legislador afastar, também, a exigência de representação nos casos do art. 88 da Lei 9.099/95, que continua vigorando inteiramente.
Entender de modo diverso levaria a uma interpretação dezarrazoada, pois implicaria dizer que vias de fato e lesões corporais dolosas simples contra a mulher, vítima de violência doméstica ou familiar, se tornariam infrações penais de ação penal pública incondicionada, como acontecia antes do advento da Lei 9.099/95. Teríamos inaceitável retrocesso, considerando principalmente a natureza de tais infrações e o bem jurídico nelas tutelado. Solução incompatível com as tendências de nosso processo penal desde 1995.
O disposto no art. 17 da lei robustece a conclusão de que o legislador, ao vedar no art. 41 a aplicação da Lei 9.099/95 em tais situações, quis afastar os benefícios da Lei 9.099/95, como a aplicação de cestas básicas, prestação pecuniária ou multa isoladamente:
O art. 17 da lei estabelece que é vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.
E o art. 16 da lei, ao criar formalidade para a renúncia ou desistência da representação, embora questionável, não pode ser simplesmente desprezado ou desconsiderado no contexto e na sistemática da nova lei.
A preocupação legislativa demonstra claramente que não pretendeu o legislador afastar a representação como condição de procedibilidade de determinados crimes contra a mulher (arts. 21, LCP – por analogia; art. 129 , § 9º, CP – art. 88, Lei 9.099/95; art. 147, CP – condição de procedibilidade prevista no parágrafo único desse último tipo penal).
Condicionar a persecução penal à manifestação de vontade da vítima é medida de política criminal inerente à tradição de nosso processo penal e que por vezes servirá para resguardar valores que não podem ser esquecidos no âmbito da família, como a busca de harmonia no lar e de superação efetiva de situações em que houve violência em qualquer de suas formas. Trata-se de permitir à vítima que exerça a faculdade de colocar "pá de cal" em determinados casos em que a continuidade da persecução criminal serviria apenas para conturbar ainda mais o ambiente doméstico e atrapalhar eventuais propósitos de reconciliação. Entender de forma diversa, tendo tais infrações penais como de ação penal pública incondicionada, iria de encontro a tais propósitos e na contramão das tendências de nosso processo penal. Não é isso o que quis a lei. Se o legislador pretendesse abolir a representação nos casos em que a lei prevê referida condição de procedibilidade, o teria feito expressamente e não teria trazido a previsão contida no art. 16 da lei.
5. Das medidas protetivas de urgência. Exigência dos pressupostos das medidas cautelares em geral (perigo da demora e aparência de bom direito). Possibilidade de justificação prévia (CPC).
O capítulo II do título IV trata das chamadas medidas protetivas de urgência (arts. 18 a 24).
Nos termos do art. 20 da lei, em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.
O preceito diz de forma expressa algo que já não era vedado antes da Lei 11.340, pois o art. 312 do CPP, apesar de entendimentos em sentido contrário, nunca teve sua aplicação proibida aos crimes de menor potencial ofensivo. Assim como a prisão em flagrante, que nunca foi proibida, mesmo em tais infrações penais, apesar de haver interpretações diversas, calcadas na pura literalidade do art. 69, parágrafo único, da Lei 9.099/95.
O art. 22 estabelece diversas medidas de cunho protetivo, mas não impede a aplicação de outras medidas, desde que previstas na legislação vigente (§ 1º). São medidas protetivas urgentes previstas no art. 22:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
O art. 23 prevê outras medidas protetivas, como encaminhamento da ofendida e dependentes a programas oficiais ou comunitários de proteção ou atendimento, recondução dela e dependentes ao seu domicílio, depois de afastado o agressor, afastamento da ofendida do lar, separação de corpos.
O art. 24 prevê medidas protetivas de ordem patrimonial, como a restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida, proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial, suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor, prestação de caução, garantia provisória, mediante depósito em juízo, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida. O magistrado mandará oficiar ao cartório ou repartição competente nos casos de restituição de bens, proibição de atos e contratos e suspensão das procurações (I, II e III).
Para a concessão de quaisquer dessas medidas, que deverão estar previstas na Lei 11.340 ou noutras leis, são necessários evidentemente os pressupostos exigíveis para a concessão de medidas cautelares em geral: perigo da demora e aparência de bom direito. Sem que haja pelo menos um começo de prova e uma situação de incontornável urgência, em tese amparada pelo direito positivo, o magistrado não tem como deferir nenhuma das medidas previstas, pois isso traduziria algo temerário. Não há nenhum óbice, ainda, à realização de audiência de justificação prévia, nos termos do art. 804 do CPC, facultando-se à ofendida ou ao Ministério Público, caso tenha requerido a medida, a possibilidade de produzir provas da necessidade de sua concessão.