A indagação que dá título ao presente trabalho torna-se oportuna, tendo em vista que a prática do assédio sexual laboral é uma das formas mais corriqueiras e sutis de violência velada contra a mulher.
Não obstante, considerando a formulação da Lei 11.340/06, podem surgir sérias dúvidas quanto à adequação de condutas tipificadas nos moldes do artigo 216 – A, CP, à sistemática da nova legislação protetiva das mulheres.
O principal foco de dúvidas neste sentido refere-se ao fato de que a lei em destaque trata da chamada "violência doméstica e familiar contra a mulher". Portanto, se é induvidoso que o crime de assédio sexual pode ter como sujeito passivo uma mulher [01], satisfazendo um dos requisitos de aplicabilidade da Lei 11.340/06, podem surgir indagações quanto à sua pertinência em relação ao contexto e/ou ambiente em que a conduta criminosa se desenvolve.
Sabe-se que a prática do crime de assédio sexual está ligada ao local de trabalho ou ao menos às relações de trabalho [02], de forma que aparentemente nada teria a ver com os objetos da Lei 11.340/06. Afinal, não seria uma conduta atinente ao âmbito "doméstico" ou "familiar".
Realmente, numa análise superficial da Lei 11.340/06, a conclusão mais fácil seria pelo alijamento do crime de assédio sexual de seu espectro de aplicação. Acontece que nem sempre as soluções mais fáceis são as melhores. Na verdade, o oposto é muito mais freqüente.
Para um posicionamento correto acerca do tema em estudo é imprescindível aprofundar a análise, saindo da limitação epidérmica e chegando ao âmago, ao espírito que anima a revolucionária legislação de defesa das mulheres.
Segundo Pierangeli, "o delito de assédio sexual foi introduzido no nosso ordenamento jurídico – penal pela Lei 10.224, de 15.05.2001, como conseqüência de pressões de grupos sociais e, principalmente, dos movimentos feministas que atuam em quase todo o planeta, numa tentativa de valorizar mais a mulher. Entende dito movimento que ocorrem com freqüência condutas que afetam a liberdade sexual das mulheres, que quase sempre são as maiores vítimas dessa espécie de atos" (grifo nosso). [03]
Seria um contra-senso que duas normatizações oriundas de um mesmo movimento humanitário e com idênticos objetivos declarados, visando à defesa dos direitos das mulheres, viessem a se repelirem ou pelo menos não se irmanarem.
A própria Lei 11.340/06 oferece resposta positiva à recepção do crime de assédio sexual, embora ligado às relações e ambiente de trabalho, ao conceituar a chamada "unidade doméstica" de forma bem ampla e não restrita à habitação ou moradia. Segundo o artigo 5º., I, da Lei 11.340/06, a "unidade doméstica" deve ser "compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar". Além disso, ao enumerar as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, o artigo 7º., III, do mesmo diploma menciona a "violência sexual", arrolando, dentre outras, a conduta de induzir a mulher "a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade". No mesmo diapasão, encontra-se o "assédio sexual no lugar de trabalho" abrangido pelo conceito amplo de "violência contra a mulher" no artigo 2º., n. 2, da Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, diploma este que constitui uma das motivações para a própria elaboração e promulgação da Lei 11.340/06. [04]
Para além disso, é ainda mais importante considerar o fato de que o crime de assédio sexual está relacionado a conquistas dos movimentos de defesa das mulheres e a lutas de trabalhadoras que tiveram coragem de enfrentar barreiras e preconceitos para alcançarem seu direito fundamental ao trabalho e, especialmente, ao respeito enquanto seres humanos trabalhadores. [05]
Nesse contexto seria inadmissível a não abrangência pela Lei 11.340/06 do crime de assédio sexual, principalmente tendo em conta seus dispositivos inaugurais que descrevem a amplitude de seus desideratos, com destaque para os seguintes:
"Art. 2º. – Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social".
"Art. 3º. – Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária" (grifo nosso).
Finalmente e bastante relevante, afigura-se o disposto no artigo 4º. da lei comentada que determina que na interpretação deverão ser "considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar". Este dispositivo legitima todo o raciocínio até aqui desenvolvido com relação aos demais mandamentos da Lei 11.340/06, tornando inconteste a abrangência do crime de assédio sexual.
Assim sendo, pode-se afirmar que aquelas mulheres vitimizadas na forma do artigo 216-A, CP, passam a contar com uma nova rede normativa de proteção, inclusive alterando-se o procedimento aplicável, que seria até então o da Lei 9099/95 [06], para adotar-se o Processo Comum, nos termos do artigo 41 da Lei 11.340/06, que afasta os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher do âmbito dos Juizados Especiais Criminais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Volume II. 24ª. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 2005.
PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2003.
NOTAS
01 A doutrina é unânime ao afirmar que tanto homens como mulheres podem ser vítimas do crime de assédio sexual. Ver por todos: PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2003, p. 841.
02 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Volume II. 24ª. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 421.
03 PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 2005, p. 791.
04 Conforme a própria ementa da legislação e seu artigo 1º.
05 O cinema norte – americano muito bem retrata a saga dessas trabalhadoras no filme "Terra Fria", que conta a história da primeira ação de classe referente ao assédio sexual no ambiente de trabalho, movida por mineiras de carvão que, em razão de preconceito, eram submetidas por chefes e colegas de trabalho a constantes humilhações, constrangimentos e abusos sexuais.
06 PRADO, Luiz Regis. Op. Cit., p. 842.