Artigo Destaque dos editores

A recuperação judicial da empresa e a possibilidade de verificação da inconstitucionalidade do art. 57 da Lei nº 11.101/05 pela via do controle difuso

25/08/2006 às 00:00
Leia nesta página:

Reza o artigo 57 da Lei n° 11.101/05, que regula a recuperação judicial e extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária:

Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembléia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151[ [01]], 205[ [02]], 206[ [03]] da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional.

Referido artigo, como se vê, condiciona a concessão da recuperação judicial do devedor à apresentação de certidões negativas de débitos tributários. A esse respeito, Coelho (2005), ao interpretar o teor do artigo 57, refere que, se não juntadas as certidões negativas de débitos tributários, o juiz deverá simplesmente indeferir o pedido de recuperação judicial.

Inobstante o teor claro da lei, no sentido de impedir qualquer tentativa de processamento de recuperação judicial sem a quitação ou, ao menos, a demonstração de que o devedor está em dia com o Fisco (parcelamento ou qualquer outra situação que autorize a emissão de certidão negativa de débito ou certidão positiva com efeito de negativa), o ordenamento jurídico brasileiro parece ser receptivo às hipóteses em que o devedor não apresenta tal condição.

Contudo, é sobremaneira difícil demonstrar referida receptividade já que, de acordo com o artigo 4° da Lei de Introdução ao Código Civil, a própria lei deve ser a primeira referência do julgador, sendo que somente poderão ser utilizados a analogia, os costumes e os princípios gerais do Direito quando a lei for omissa, o que não seria o caso, pois a norma se mostra demasiado clara ao referir que a recuperação judicial só será admitida à vista das respectivas certidões negativas de débito tributário.

No entanto, se verificado o teor do artigo 5° da mesma Lei de Introdução ao Código Civil [04], é possível a apreensão de que, a despeito da clareza solar do dispositivo legal do artigo 57 em estudo, se faz viável a flexibilização de referido comando impositivo. Isto porque já no artigo 47 da Lei n. 11.101/05 está dito que a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. Não há como se conceber, pois, a possibilidade de uma recuperação judicial tomando-se como um de seus requisitos a apresentação de certidões negativas de débitos tributários. Até mesmo porque, segundo Silva (2005) as empresas

primeiramente deixam de pagar os tributos para não deixarem de honrar compromissos com os fornecedores, o que inviabilizaria, de imediato, a continuidade das atividades da empresa.

Santos (2006) também observa que os débitos tributários estão entre os primeiros a serem inadimplidos pelo empresário endividado, apontando tal situação inclusive como normal, já que o não pagamento de tributos não inviabilizaria a atividade empresarial.

Tal fato, por si só, parece autorizar que o magistrado deixe de aplicar o artigo 57 da Lei 11.101, por manifesta inconstitucionalidade, aplicando ao mesmo o "Dogma da Nulidade da lei inconstitucional, a qual tem por base que, caso o juiz venha a reconhecer que uma lei é inconstitucional, não cria um novo Estado, apenas declara a inconstitucionalidade no caso concreto" (Machado, 2005). Em outras palavras, o magistrado poderá deixar de aplicar o artigo 57 da Lei 11.101 pela via do controle difuso de constitucionalidade, que pode ser exercitado "em qualquer grau de jurisdição" (Cavalheiro, 2004, p. 30).

Considerando-se que a falência de uma empresa gera reflexos dos mais diversos é possível a verificação de incompatibilidade do artigo 57 da Lei 11.101 com vários artigos da Constituição Federal, como por exemplo, o artigo 6° que conceitua como um dos direitos sociais o trabalho. Ora, a quebra de uma empresa consiste necessariamente na extinção dos respectivos contratos de emprego e trabalho eventualmente entabulados. A sua vez, o artigo 57 da lei 11.101, ao invés de contribuir para manutenção de tais contratos, estaria a dificultar a sua própria existência, em sentido que segue trilha diametralmente oposta àquela eleita pela Carta Magna. Utilizando-se o mesmo raciocínio observar-se-ia também inconstitucionalidade do artigo 57 da Lei 11.101 com o artigo 170, "caput" e VIII, da Constituição, consagradores dos princípios gerais da atividade econômica, quais sejam, a valorização do trabalho humano e a busca do pleno emprego. Estaria arredado também o artigo 193 da Carta Magna, que refere que a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.

Poder-se-á dizer, no entanto, que tendo em vista que o controle difuso de constitucionalidade possui efeitos apenas no âmbito das partes litigantes, seria impossível alegar, pela via de tal controle, inconstitucionalidades que teriam reflexos a partes não integrantes da relação processual, que no caso seriam os respectivos empregados.

Entretanto, é possível a verificação de ao menos duas inconstitucionalidades que interessam ao próprio empresário requerente da recuperação judicial.

É que o artigo 57 da Lei 11.101 parece ferir também o artigo 1°, IV da Constituição Federal, que prevê que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos, dentre outros, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

O artigo 1° da Constituição Federal, ao fundamentar a existência da própria República Federativa do Brasil na valorização social do trabalho e da livre iniciativa, parece se mostrar repulsivo a qualquer providência no sentido de depreciação do valor trabalho. Aliando-se tal conclusão ao fato de que a recuperação judicial tem por um de seus objetivos a manutenção da fonte produtora (artigo 47, da Lei 11.101), o artigo 57 é mesmo inconstitucional, já que ao dificultar sobremaneira a utilização do instituto da recuperação judicial, despreza a garantia de proteção ao trabalho, a qual, segundo BARILE (apud Moraes, 2005, p. 130) "não engloba somente o trabalhador subordinado, mas também o autônomo e o empregador, enquanto empreendedor do crescimento do país". Considerando-se, como visto, que o artigo 1°, IV da Constituição Federal, ao assegurar o valor trabalho de forma indiscriminada, o faz também em relação ao empregador, não haveriam problemas em relação a eventual alegação de falta de interesse e legitimidade para argüir uma inconstitucionalidade através do controle difuso (de eficácia inter partes) já que a inconstitucionalidade ora debatida estaria a prejudicar o empresário requerente da recuperação judicial e não apenas o trabalhador terceiro interessado.

Conclui-se, assim, que é possível o agitamento do controle difuso de constitucionalidade por incompatibilidade do artigo 57 da Lei 11.101/05 com os artigos 1°, IV, 6°, 170, "caput" e VIII, 193, todos da Constituição Federal, sendo razoável o processamento da recuperação judicial mesmo sem a apresentação das respectivas certidões negativas de débitos tributários.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Publicada em 5 jan. 1988. Diário Oficial da União, p. 1 (anexo).

BRASIL. Decreto-Lei n. 4.657, de 4 set. 1942. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Publicada em 9 set. 1942. Diário Oficial, p. 1.

BRASIL. Lei n. 11.101, de 9 fev. 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Publicada em 9 fev. 2005. Diário Oficial da União, p. 1. Edição extra.

BRASIL. Lei n. 5.172, de 25 out. 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Publicada em 27 out. 1966. Diário Oficial, p. 12.452.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

CAVALHEIRO, K. M. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão. Inédito. 2004. 67 p.

COELHO, F. U. Comentários à Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 2 ed. São Paulo: Saraiva. 2005. 542 p.

MACHADO. M. M. A. A. Controle de Constitucionalidade. DireitoNet. São Paulo. Disponível em <http://www.direitonet.com.br/artigos/x/19/24/1924/>. Acesso em: 7 jun. 2006.

MORAES, A. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 5 ed. São Paulo: Atlas. 2005. 2930 p.

SANTOS, T. C. A exigência da CND e o posicionamento dos magistrados no Processo de Recuperação Judicial. Jus Vigilantibus, Vitória, 26 mar. 206. Disponível em <http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/20634>. Acesso em: 31 mai. 2006.

SILVA, R. C. Lei de Recuperação de Empresas e sua necessária interpretação principiológica como único meio à consecução de seu objetivo jurídico colimado. Jus Navigandi, Teresina, a. 10, n. 941, 30 jan. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7900>. Acesso em: 05 jun. 2006.


NOTAS

01 Artigo 151 do Código Tributário Nacional: "Art° 151 - Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: I - moratória; II - o depósito do seu montante integral; III - as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo; IV - a concessão de medida liminar em mandado de segurança; V – a concessão de medida liminar ou de tutela antecipada, em outras espécies de ação judicial; (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001); VI – o parcelamento. (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001). Parágrafo único. O disposto neste artigo não dispensa o cumprimento das obrigações acessórios dependentes da obrigação principal cujo crédito seja suspenso, ou dela conseqüentes".

02 Artigo 205 do Código Tributário Nacional: "Art° 205 - A lei poderá exigir que a prova da quitação de determinado tributo, quando exigível, seja feita por certidão negativa, expedida à vista de requerimento do interessado, que contenha todas as informações necessárias à identificação de sua pessoa, domicílio fiscal e ramo de negócio ou atividade e indique o período a que se refere o pedido. Parágrafo único. A certidão negativa será sempre expedida nos termos em que tenha sido requerida e será fornecida dentro de 10 (dez) dias da data da entrada do requerimento na repartição".

03 Artigo 206 do Código Tributário Nacional: "Art° 206 - Tem os mesmos efeitos previstos no artigo anterior a certidão de que conste a existência de créditos não vencidos, em curso de cobrança executiva em que tenha sido efetivada a penhora, ou cuja exigibilidade esteja suspensa".

04 Artigo 5° da Lei de Introdução ao Código Civil: "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Fernando dos Santos Wilges

analista judiciário em Porto Alegre (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WILGES, Fernando Santos. A recuperação judicial da empresa e a possibilidade de verificação da inconstitucionalidade do art. 57 da Lei nº 11.101/05 pela via do controle difuso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1150, 25 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8836. Acesso em: 18 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos