O momento é importuno trazer à baila a discussão acerca do Projeto de Lei 3515/2015 que tramita no Congresso Nacional, que versa sobre o Superendividamento do Consumidor que tem o desígnio em alterar o Código de Defesa do Consumidor - CDC, e com o objetivo de promover a educação financeira, e na implementação de políticas públicas que visem a prevenção e tratamento do superendividamento, sem prejuízo de medidas que facilitem a de renegociação de dívidas na efetivação ao crédito consciente.
Segundo a pesquisa realizada pelo Observatório da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, cerca de 93,8% das essoas que ganham até 5 salários mínimos e 13,5% das pessoas que ganham até 3 salários mínimos, se encontram em situação de endividamento.
A discussão sobre o superendividamento não é recente, tendo em vista que é inspirada no modelo europeu, como por exemplo, o advento da Lei Scrivener, de 10 de janeiro de 1978 e no modelo americano, surgida com o advento da Lei Bankruptcy Reform Act (Lei de Falência) em 1978, visando precipuamente a recuperação e manutenção do mercado de consumo.
Sem dúvidas, no Brasil que passa por um cenário de alta taxa de desemprego e somado ao período pandêmico que tente deixar seu legado negativo pelos próximos anos, a reflexão sobre a temática emerge ainda com mais força no ambiente acadêmico e fora dele.
Dessa forma, a ideia pretendida, é abarcar as considerações positivas a respeito da referida proposta legislativa, embasadas por critérios doutrinários e comparativos com outras economias que já aplicam normas correlatas.
Da Tutela dos direitos fundamentais - Mínimo Existencial e Dignidade Humana
Antes de mais nada, é preciso apenas salientar o que tem se entendido como o consumidor superendividado, vejamos:
O superendividamento indica o endividamento superior ao normal daquele possível de ser suportado pelo orçamento mensal dos consumidores. É definido pela citada doutrinadora como "a impossibilidade global do devedor-pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas suas dívidas atuais e futuras de consumo". (MARQUES, Cláudia Lima apud AMORIN, Eduardo Antonio Andrade, 2010).
Dessa forma, extrai-se que, o superendivamento se dá quando o consumidor se encontra em estado de insolvência, não conseguindo quitar suas dívidas, afetando diretamente a sua subsistência.
Com a preocupação na implementação de um crédito responsável, que visa precipuamente educar, orientar, instruir e trazer maior transparência nas relações de consumo, a PL 3515/15 surge como um divisor de águas cultura do consumo brasileiro, pois a maior proposta que o Projeto acrescenta em seu escopo, é a reinserção da pessoa no mercado consumo.
Tendo em vista que por meio da conciliação entre o consumidor, ora como devedor e as empresas, ora como credores, eivados em boa fé, se propõem a renegociar o pagamento das dívidas, de maneira a não comprometer o mínimo existencial da pessoa.
De fato, a preocupação com os princípios basilares da Constituição Federal, como a dignidade humana e o mínimo existencial, são em minha opinião a melhores inovações da proposta.
A Teoria do Mínimo Existencial, foi utilizada pela primeira vez nos tribunais brasileiros em 2004, na medida cautelar em ADPF 45 MC/DF, sob a relatoria do Ministro Celso de Mello, e pode ser entendida como um direito fundamental social, busca tutelar os direitos sociais contra as formas de miséria e exclusão social, de maneira que não se pode retroceder abaixo do mínimo de um direito às condições de se viver com a dignidade com saúde, alimentação e educação.
Na Seara Administrativa: A Renegociação Global com os Credores
Não é só a proteção ao consumidor que chama a atenção na obrigatoriedade de conciliação, mas também, com a possibilidade de os credores participem da negociação da dívida - na construção de um plano de pagamento, e que assim, todos poderão receber um pouco do seu crédito, ainda que de forma parcelada, deixando para atrás a ideia que só quem recebe é o credor que cobrou judicialmente primeiro.
As conciliações podem ocorrer no PROCON, Defensoria Pública, Ministério Público e Órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e também no Poder Judiciário.
O protagonismo, não está no devedor, como podem pensar. O protagonismo está no princípio da boa fé e na cooperação entre credores com credores, e credores com devedores, de maneira que possibilite a satisfação do crédito sem comprometimento do mínimo existencial.
Ademais, o objetivo da recuperação do consumidor ao mercado atinge as esferas da macro e microeconomica, assim como pondera Claudia Lima Marques, pois, segundo a jurista, o efeito microeconômico se dá nessa possibilidade da pessoa se sentir incluída como parte integrante de uma sociedade, e o efeito macroeconômico se dá por justamente reinserir o indivíduo no mercado de consumo, reinserindo grandes valores na economia, e incentivando o empreendedorismo.
Na Seara Contenciosa: O Processo Judicial
Quando se fala de seara judicial, deve se ter em mente que será a medida secundária a ser tomada. Será iniciada a pedido do devedor e em relação ao credor que não compareceu à conciliação ou que não teve acordo.
Medida totalmente acertada, que a discussão não se encerra no na seara administrativa, de modo que acesso ao judiciário ainda persiste em caso de ausência do credor na conciliação ou não celebração de acordo com o credor em específico.
Vale ressaltar que a medida em sede judicial será em relação ao credor que não celebrou o acordo, e assim sendo, o juiz traçará o plano de pagamento de acordo com os ditames da norma.
Todavia, por se tratar de um processo judicial, o magistrado poderá revisar os contratos e observar se há abusividade.
Isto posto, o PL avança ainda mais no sentido do preventivo, pois as empresas serão incentivas a comparecer às negociações administrativas evitando o litígio, e para o consumidor, de igual forma será positivo.
Resolvendo as questões ainda na fase conciliatória representa um avanço jurídico, econômico, social, que desafoga no judiciário, alivia as tensões do devedor e do credor.
Crédito Consciente: Deveres do Credor e Devedor
O PL 3515/15 tem o caráter preventivo, que visa educar o consumidor a seguir a tomada do crédito consciente, bem como rege normas quanto à clareza das informações que devem estar presentes na relação de consumo.
No que diz respeito à educação financeira e ambiental, o art. 54-B da supracitada proposta, dispõe que devem ser no o ato da oferta o custo efetivo total e a descrição dos elementos que o compõem e a taxa mensal de juros, bem como a taxa dos juros de mora e o total dos encargos de qualquer natureza, que denotam a ideia de transparência e boa-fé objetiva nas relações de consumo.
Outra grande inovação que chama a atenção no quesito crédito consciente, está previsto no art. 54-E, parágrafo 2, que dispõe ao direito ao arrependimento do crédito consignado em até 7 dias. Não obstante, também denota uma tarefa ao consumidor, de devolver o valor recebido e remeter o formulário indicando a sua desistência.
Ademais, como dito acima, mas é valido ressaltar, que a maioria da população que se encontra em estado de insolvência, não se encontra dessa forma com o dolo ou má-fé. Vários são os fatores que levam um consumidor não conseguir quitar com seus débitos, de maneira que o credor tem o anseio de ver seu crédito satisfeito, a maioria dos consumidores também deseja sanar suas dívidas.
Infelizmente, há muitas empresas que se aproveitam das condições pessoais dos indivíduos, como grau de instrução, saúde, idade e demais fatores que podem influenciar na insolvência, de sorte que o projeto vem reprimir abusivas condutas como essas.
O Consumidor Endividado na Seara Internacional
Conforme já comentado, na Europa e nos Estados Unidos, já existe desde o final da década de 1970, dispositivos legais que visam a tratar a respeito do superendividamento de consumidores.
No Canadá, a pessoa endividada entrega todos os seus bens a um administrador em falência, em troca da quitação de suas dívidas.
Já nos Estados Unidos, considerada como a legislação mais avançada a respeito do superendividamento, a Lei de Falência visa dar amparo ao que se chama comumente de "sonho americano", pois é dada a chance da pessoa quebrar e se reerguer financeiramente novamente. De maneira que nos EUA, basta que a pessoa procure um advogado para apresentação de uma petição com base na Lei de Falência para impedir que sejam tomados os seus bens.
De maneira que com base na petição, poderão ser quitadas parcialmente algumas dívidas pelo magistrado, caso não haja litígio envolvendo a discussão sobre a dívida.
Desse modo, como bem salienta a Professora Clarisssa Costa Lima, que nesses países pode ocorrer o perdão de dívidas remanescentes caso seja necessário, diferentemente do PL 3515/2015, afastou a possibilidade do perdão de dívida, ainda que parcial, funcionando como base de plano de pagamento, ou seja, o consumidor/devedor deverá quitar todas as suas dívidas. Essa tratativa se deu, pois, a jurista salienta que no Brasil há proteção do bem família e outros tipos de proteção aos bens.
Dessa forma, do ponto de vista empresarial, do credor, é positivo, tendo que vista que terá seu crédito satisfeito, ao resgatar esse consumidor para o plano de pagamento.
Considerações Finais
Buscando somente em propiciar um apanhado geral a respeito do Projeto de Lei, a temática abordada representa uma grande inovação legislativa e cultural, que leva à responsabilização de empresas credoras a celebrar contratos com a devida transparência em relação aos juros, valores, pagamentos e demais informações pertinentes a oferta, e que na maioria das vezes são ocultas ou colocadas em letras pequenas.
A intenção em propiciar a conciliação por meio da reunião global de credores é muito importante, para o ponto de vista empresarial e do devedor, pois de lado, garante a satisfação do crédito do credo e do outro preserva direitos fundamentais do indivíduo, como o mínimo existencial e a dignidade humana.
Dessa forma, a tutela de direitos e garantias, abrange a macroeconomia, pois a sociedade de consumo ganha, ao recuperar o credito do devedor, reinserir dinheiro na economia, e incentivar o empreendedorismo.
Entendo que não está prejudicado os direitos constitucionais da pessoa jurídica, como a livre iniciativa e o livre mercado, pois é dever do Estado regular as relações comerciais, de modo a tutelar o direito da coletividade.
Ademais, todo credor é consumidor, de maneira que até mesmo, em algum momento esse credor em sua pessoa física será beneficiado pela proposta.
Por todo o exposto, por certo a proposta tem o escopo de proteger o crédito da pessoa de boa-fé e das empresas credoras que buscam a satisfação do seu crédito. Por certo a lei tutelar os direitos de ambas as partes e por isso a importância da conversão do PL em Lei.
Bibliografia:
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BEZERRA, Oswaldo Vasconcelos. Regulamentação da Falência Individual: saída da crise econômica. Revista Impacto. São Paulo, 2019. Disponível em:https://oimpacto.com.br/2019/08/05/artigo-regulamentacao-da-falencia-individual-saida-da-crise-econo.... Acesso em: 07/02/21
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MARQUES, Cláudia Lima. Manifestação Técnica em Favor do Projeto de Lei de Prevenção e Tratamento do Superendividamento do Consumidor Brasileiro: um decálogo para aprovação do PL 3515/2015. Revista de Direito do Consumidor. Vol 127, ano 29.p.469-476. São Paulo:Ed RT, jan-fev/2020.
MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI; Rosângela Lunardelli (Coord). Direitos do Consumidor Endividado: Superendividamento e crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 256.
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OLIVEIRA, Antônio Ítalo Ribeiro. O mínimo existencial e a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4772, 25 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50902. Acesso em: 8 fev. 2021.
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SILVA, Joseane Suzart Lopes da. MARTINS, Guilherme Magalhães. Brasil não pode ignorar milhões de consumidores superendividados. Revista Consultor Jurídico. São Paulo, ano 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jun-10/garantias-consumo-pais-nao-ignorar-superendividamento-milhoes-consumidores . Acesso em 7 fev. 2021.
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