A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) absolveu um homem acusado de roubo a uma residência em Macaé (RJ), devido à falha no processo de reconhecimento fotográfico do suspeito. Para o colegiado, o reconhecimento não seguiu as formalidades mínimas exigidas pelo artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP).
As vítimas disseram ter identificado o suspeito no vídeo que registrou outro roubo na vizinhança, dias depois. Na sequência, fizeram o reconhecimento na polícia, por meio de fotografia, mas não o confirmaram em juízo.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) manteve a sentença condenatória e fixou a pena em sete anos. O pedido de absolvição da defesa foi negado sob a justificativa de que o não reconhecimento pessoal do acusado em juízo seria compreensível diante do longo tempo decorrido entre o roubo (2014) e a audiência (2019).
Segundo o relator do habeas corpus impetrado no STJ, ministro Nefi Cordeiro, a fundamentação da condenação – embasada somente em reconhecimento fotográfico, não confirmado em juízo nem corroborado por outras provas – não se mostra suficientemente robusta, sendo cabível a absolvição do réu, conforme precedentes do tribunal.
O Tribunal de Justiça utilizou a sentença como parâmetro, constatando-se que a condenação fundou-se unicamente no reconhecimento feito pelas vítimas, primeiro durante ao noticiário que mostrou a prisão em flagrante do réu e seus comparsas em roubo realizado na região com similar modus operandi. Após, as vítimas compareceram na delegacia e realizaram o reconhecimento fotográfico, que não foi confirmado em juízo.
A matéria foi objeto de discussão no HC 631706.
Na lição de Eugênio Pacelli (Curso de processo penal, 16ª edição, pág. 427), o reconhecimento fotográfico não poderá, jamais, ter o mesmo valor probatório do reconhecimento de pessoa, tendo em vista as dificuldades notórias de correspondência entre uma (fotografia) e outra (pessoa), devendo ser utilizado este procedimento somente em casos excepcionais, quando puder servir como elemento de confirmação das demais provas. Há decisões na Suprema Corte, entretanto, admitindo o reconhecimento fotográfico(RT 739/546).
Dizia ainda Eugênio Pacelli que já o reconhecimento de pessoa por meio de fitas de vídeo deve merecer maior força de evidência probatória, diante da possibilidade concreta de reconhecimento da imagem da pessoa, em posições diferentes, tudo a depender, porém, do fato concreto.
O STJ já entende que é possível o reconhecimento do acusado por meio fotográfico, mas desde que, em Juízo, sejam observadas as formalidades contidas no art. 226 do Código de Processo Penal (HC 136.147, 5ª Turma, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, DJe 03/11/2009).
Tem-se, ainda:
Reconhecimento fotográfico somente deve ser considerado como forma idônea de prova, quando acompanhada de outros elementos aptos a caracterizar a autoria do delito” (HC nº 27.893, Quinta Turma, Rel. Ministro Gilson Dipp, DJ 03/11/2003).
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, anulou condenação baseada unicamente em reconhecimento fotográfico, que não foi confirmado por testemunhas.
"A presunção de inocência condiciona toda condenação a uma atividade probatória produzida pela acusação e veda, taxativamente, a condenação, inexistindo as necessárias provas, devendo o Estado comprovar a culpabilidade do indivíduo, que é constitucionalmente presumido inocente, sob pena de voltarmos ao total arbítrio", explica.
De acordo com o ministro, no atual sistema acusatório, é incontroversa a obrigatoriedade de o ônus da prova ser sempre do Ministério Público. Portanto, para se atribuir definitivamente ao réu qualquer prática de conduta delitiva, "são imprescindíveis provas efetivas do alegado, produzidas sob o manto do contraditório e da ampla defesa, sob pena de simulada e inconstitucional inversão do ônus da prova; o que não ocorreu na presente hipótese".
A matéria foi objeto de apreciação no HC 172.606.
Naquele julgamento disse o ministro Alexandre Moraes:
Trata-se de um dos princípios basilares do Estado de Direito como garantia processual penal, visando à tutela da liberdade pessoal e possui quatro básicas funções: (a) limitação à atividade legislativa; (b) critério condicionador das interpretações das normas vigentes; (c) critério de tratamento extraprocessual como inocente em todos os seus aspectos; (d) obrigatoriedade de o ônus da prova da prática de um fato delituoso ser sempre do acusador. Há a necessidade de o Estado-acusador comprovar a culpabilidade do indivíduo mediante o contraditório, que é constitucionalmente presumido inocente, vedando-se o odioso afastamento de direitos e garantias individuais e a imposição de sanções sem o Devido Processo Legal (2ª T, HC 89.501, Rel. Min. CELSO DE MELLO), conforme pacífica e reiterada jurisprudência desta CORTE SUPREMA:
AS ACUSAÇÕES PENAIS NÃO SE PRESUMEM PROVADAS: O ÔNUS DA PROVA INCUMBE, EXCLUSIVAMENTE, A QUEM ACUSA. - Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete, ao réu, demonstrar a sua inocência. Cabe, ao contrário, ao Ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado (HC 84.580, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 25/8/2009). Não se justifica, sem base probatória idônea, a formulação possível de qualquer juízo condenatório, que deve sempre assentar-se - para que se qualifique como ato revestido de validade ético-jurídica - em elementos de certeza, os quais, ao dissiparem ambiguidades, ao esclarecerem situações equívocas e ao desfazerem dados eivados de obscuridade, revelam-se capazes de informar, com objetividade, o órgão judiciário competente, afastando, desse modo, dúvidas razoáveis, sérias e fundadas que poderiam conduzir qualquer magistrado ou Tribunal a pronunciar o non liquet. (HC 73.338, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Primeira Turma, julgado em 13/8/1996).
Sobre o tema, ensinou Guilherme de Souza Nucci: “(...) a meta é a formação da convicção judicial lastreada em provas produzidas sob o crivo do contraditório, não podendo o magistrado fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos trazidos da investigação, mormente a policial, que constitui a maior parte dos procedimentos preparatórios da ação penal. (...) O Julgador jamais pode basear sua sentença, em especial condenatória, em elementos colhidos unicamente do inquérito policial (...). Porém, o juiz sempre se valeu das provas colhidas na fase investigatória, desde que confirmadas, posteriormente, em juízo, ou se estivessem em harmonia com as coletadas sob o crivo do contraditório (...) Ademais, se a decisão judicial fosse proferida com base única em fatores extraídos do inquérito policial, por exemplo, seria, no mínimo, inconstitucional, por não respeitar as garantias do contraditório e da ampla defesa” (Código de Processo Penal Comentado, 14ª ed., Rio de Janeiro: Forense, p 375-376).
O Superior Tribunal de Justiça, por sua Sexta Turma, em douta apreciação sobre a matéria, no julgamento do HC 598886, rechaçou condenação baseada em reconhecimento que não seguiu procedimento legal.
Ao conceder habeas corpus para absolver um homem acusado de roubo, cuja condenação não teve outra prova senão a declaração de vítimas que dizem tê-lo identificado em uma foto apresentada pela polícia, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu diretrizes para que o reconhecimento de pessoas possa ser considerado válido.
Segundo o relator do habeas corpus, ministro Rogerio Schietti Cruz, a não observância das formalidades legais para o reconhecimento – garantias mínimas para o suspeito da prática de um crime – leva à nulidade do ato.
Em seu voto, o ministro afirmou que é urgente a adoção de uma nova compreensão dos tribunais sobre o ato de reconhecimento de pessoas. Para ele, não é mais admissível a jurisprudência que considera as normas legais sobre o assunto – previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal – apenas uma "recomendação do legislador", podendo ser flexibilizadas, porque isso "acaba por permitir a perpetuação desse foco de erros judiciários e, consequentemente, de graves injustiças".
Ali foi dito: Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, O reconhecimento de pessoas deve, portanto, observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando, como se tem compreendido, de "mera recomendação" do legislador. Em verdade, a inobservância de tal procedimento enseja a nulidade da prova e, portanto, não pode servir de lastro para sua condenação, ainda que confirmado, em juízo, o ato realizado na fase inquisitorial, a menos que outras provas, por si mesmas, conduzam o magistrado a convencer-se acerca da autoria delitiva. Nada obsta, ressalve-se, que o juiz realize, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório. (HC 598.886/SC, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 27/10/2020, DJe 18/12/2020)
O voto do relator foi seguido por todos os membros da Sexta Turma. O ministro Nefi Cordeiro apenas ressalvou que, em seu entendimento, só as violações graves ao procedimento do artigo 266 deveriam anular a prova.
Ficou estabelecido no julgamento que, em vista dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na norma legal invalida o ato e impede que ele seja usado para fundamentar eventual condenação, mesmo que o reconhecimento seja confirmado em juízo.
Segundo os ministros, o magistrado pode realizar o ato de reconhecimento formal, desde que observe o procedimento previsto em lei, e também pode se convencer da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não guardem relação com o ato viciado de reconhecimento.
Por fim – decidiu a turma –, o reconhecimento do suspeito por fotografia, além de dever seguir o mesmo procedimento do artigo 226, tem de ser visto apenas como etapa antecedente do reconhecimento presencial; portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo.
Destaco ainda daquele voto:
“Na espécie, o reconhecimento do primeiro paciente se deu por meio fotográfico e não seguiu minimamente o roteiro normativo previsto no Código de Processo Penal. Não houve prévia descrição da pessoa a ser reconhecida e não se exibiram outras fotografias de possíveis suspeitos; ao contrário, escolheu a autoridade policial fotos de um suspeito que já cometera outros crimes, mas que absolutamente nada indicava, até então, ter qualquer ligação com o roubo investigado. 8. Sob a égide de um processo penal comprometido com os direitos e os valores positivados na Constituição da República, busca-se uma verdade processual em que a reconstrução histórica dos fatos objeto do juízo se vincula a regras precisas, que assegurem às partes um maior controle sobre a atividade jurisdicional; uma verdade, portanto, obtida de modo "processualmente admissível e válido" (Figueiredo Dias). O primeiro paciente foi reconhecido por fotografia, sem nenhuma observância do procedimento legal, e não houve nenhuma outra prova produzida em seu desfavor. Ademais, as falhas e as inconsistências do suposto reconhecimento – sua altura é de 1,95 m e todos disseram que ele teria por volta de 1,70 m; estavam os assaltantes com o rosto parcialmente coberto; nada relacionado ao crime foi encontrado em seu poder e a autoridade policial nem sequer explicou como teria chegado à suspeita de que poderia ser ele um dos autores do roubo – ficam mais evidentes com as declarações de três das vítimas em juízo, ao negarem a possibilidade de reconhecimento do acusado. 10. Sob tais condições, o ato de reconhecimento do primeiro paciente deve ser declarado absolutamente nulo, com sua consequente absolvição, ante a inexistência, como se deflui da sentença, de qualquer outra prova independente e idônea a formar o convencimento judicial sobre a autoria do crime de roubo que lhe foi imputado. 11. Quanto ao segundo paciente, teria, quando muito – conforme reconheceu o Magistrado sentenciante – emprestado o veículo usado pelos assaltantes para chegarem ao restaurante e fugirem do local do delito na posse dos objetos roubados, conduta que não pode ser tida como determinante para a prática do delito, até porque não se logrou demonstrar se efetivamente houve tal empréstimo do automóvel com a prévia ciência de seu uso ilícito por parte da dupla que cometeu o roubo. É de se lhe reconhecer, assim, a causa geral de diminuição de pena prevista no art. 29, § 1º, do Código Penal (participação de menor importância).”
Disse bem Guilherme de Souza Nucci (Código de Processo Penal Comentado, 10ª edição, pág. 528), comentando o artigo 226 do CPP ao dizer que “a lei impõe como se observa nos incisos do artigo em comento, uma forma específica para a prova produzir-se, não se podendo afastar deste contexto.
Assim, para que se possa invocar ter havido o reconhecimento de alguém ou de algo, é fundamental a preservação da forma legal. Não tendo sido possível, o ato não foi perdido por completo, nem deve ser desprezado. Apenas não se receberá o cunho do reconhecimento de pessoa ou coisa, podendo constituir-se numa prova meramente testemunhal, de avaliação subjetiva, que contribuirá ou não para a formação do convencimento do magistrado...”
É certo que Hélio Tornaghi (Compêndio do processo penal, tomo III, pág. 929) ensinou que “a forma se exige para a existência do reconhecimento: a inobservância da forma acarreta a inexistência deste ato, mas não a inexistência do todo e qualquer ato”.
É ônus da Acusação provar que o denunciado praticou as elementares do tipo penal (AgRg no AREsp 1345004/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 12/3/2019, DJe 29/3/2019), cabível a absolvição, consoante a jurisprudência desta Corte.
A propósito:
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. CONDENAÇÃO FUNDAMENTADA EM RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO. INOBSERVÂNCIA DO DISPOSTO NO ART. 226 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. ANTERIOR COMETIMENTO DE DELITOS. ARGUMENTO INIDÔNEO. FRAGILIDADE PROBATÓRIA. ART. 386, INCISO VII, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA.1. Na hipótese, a prova utilizada para fundamentar a condenação do Paciente - reconhecimento fotográfico em sede policial - é de extrema fragilidade, haja vista a inobservância das recomendações legais dispostas no art. 226 do Código de Processo Penal, as quais, inclusive, também não foram observadas em juízo.2. As instâncias ordinárias, ao fundamentarem a condenação do Paciente, consignaram que o reconhecimento fotográfico foi utilizado juntamente com a prova testemunhal para determinar a autoria do delito. Entretanto, o depoimento prestado pelo Policial Civil em juízo limitou-se a, tão somente, afirmar que o reconhecimento fotográfico na fase investigativa de fato existiu, não acrescentando nenhum elemento sobre a autoria do crime ocorrido. Assim sendo, é evidente que a condenação imposta ao Paciente foi baseada unicamente no reconhecimento fotográfico, que nem sequer foi confirmado judicialmente.3. Salienta-se que a única vítima ouvida em juízo apenas ratificou o que já havia afirmado em sede policial, não tendo sido observadas as formalidades mínimas previstas no aludido art. 226 do Código de Processo Penal, nos termos da interpretação conferida a tal preceito por esta Corte.4. Dessa forma, não há como concluir, como o fez o Tribunal de origem, pela manutenção da condenação, valendo ressaltar, ainda, que "a longa ficha de furtos e roubos praticados pelo apelante", a que se refere aquele Sodalício, não é fundamento idôneo para se impor ao Paciente uma nova condenação, se não houver provas robustas para tanto.5. Ordem de habeas corpus concedida para absolver o Paciente condenado pela prática do crime previsto 157, § 2.º, incisos I e II, do Código Penal, com fundamento no art. 386, inciso VII, do Código de Processo Penal e, por conseguinte, determinar a expedição de alvará de soltura, se por outro motivo não estiver preso. (HC 545.118/ES, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 15/12/2020, DJe 18/12/2020).
Digo mais: O reconhecimento fotográfico com inobservância das regras procedimentais do art. 226 do Código de Processo Penal, realizado exclusivamente pelo envio de fotografias ao telefone celular das vítimas por aplicativo de mensagens - WhatsApp - não corroborado posteriormente por mais elementos capazes de demonstrar o envolvimento do recorrente aos fatos, não é suficiente para validar a custódia cautelar que lhe foi imposta (RHC 133.408/SC, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 15/12/2020, DJe 18/12/2020).