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Sobreestadia de navios:

a regra "once on demurrage, always on demurrage"

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10/09/2006 às 00:00
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O instituto da sobreestadia (pagamento pela utilização ou retenção do navio ou contêiner por tempo além do estabelecido para as operações de carga e/ou descarga) é pouco conhecido no direito brasileiro; no direito inglês, contudo, é vigoroso.

Sumário : Introdução. 1. Sobreestadia de navios. 1.1. Conceito. 1.2. Natureza jurídica. 1.3. Finalidade. 2. Origem e evolução da sobreestadia. 2.1 Once on demurrage, always on demurrage. Considerações finais. Referências.


Resumo

O constante incremento do comércio internacional implica no crescimento proporcional do transporte aquaviário; contudo, em alguns países, não tem crescido na mesma proporção o interesse pelo Direito Marítimo, que permanece assunto para especialistas. Nesse ramo de atividade, o idioma e a jurisprudência são predominantemente ingleses; um maior conhecimento de alguns de seus institutos poderá evitar custos adicionais aos utilizadores do transporte marítimo. A sobreestadia é um desses institutos pouco conhecidos no Brasil, embora seja responsável pela evasão anual de cerca de US$ 1,4 bilhão em divisas e, com o "gargalo" logístico de nossos portos, está em curva ascendente. Muito desse valor se deve à aplicação da regra "once on demurrage, always on demurrage" (uma vez em sobreestadia, sempre em sobreestadia), oriunda dos usos e costumes ingleses, consolidada por aquela jurisprudência e com aplicação internacional.

O objetivo deste trabalho é disponibilizar aos interessados no assunto, principalmente aos que atuam no comércio marítimo, informações suplementares ao conhecimento que já têm de sobreestadia de navios, as quais lhes poderão ser úteis em seu dia-a-dia.

O artigo é dividido em dois capítulos. No primeiro, abordamos os fundamentos do instituto da sobreestadia do ponto de vista internacional, ou geral. No Capítulo 2, analisamos a evolução desse instituto sob o enfoque do direito inglês, e, em seguida, aprofundamos a análise da regra "once on demurrage, always on demurrage". Todas as traduções são do autor.

Palavras-chave:

Direito Marítimo – Afretamento – Estadia – Sobreestadia.

Abstract

The increase on international trade means sea transport growing. However, maritime law’s concern has not grown in the same proportion in some countries. So, maritime law keeps on being only an experts’ subject in those countries. The language and jurisprudence are predominantly English in shipping. The knowledge of established maritime law avoids users of sea transport to lose money. Demurrage is not well known in Brazil in spite of being responsible for the growing payment of US$ 1.4 billion per year. Much of this amount is due to the maxim or rule "once on demurrage, always on demurrage" from English uses and customs and consolidated by jurisprudence that is internationally accepted.

The purpose of this article is to dispose people from this area, mainly shipping operators, with additional information on vessels demurrage, which could be useful.

The article is divided in two chapters. The first one deals with fundamentals of demurrage from the international point of view. In the Chapter 2 we analyse, under the view of English maritime law, the demurrage evolution and the rule "once on demurrage, always on demurrage". The author did all translations.

The inductive method, techniques of the theme and bibliographical research were used.

Key Words:

Maritime Law – Chartering – Laytime – Demurrage.

INTRODUÇÃO

Hugo Tiberg (1971, p. 1) sustenta que "O Direito Marítimo tende a ser uma área para especialistas, isolado do desenvolvimento geral do sistema legal nacional". Em contraponto a essa tendência ao "isolamento", constata-se uma outra vocação: a que têm os especialistas de "importar" decisões estrangeiras e adotá-las em seus países. Essa atitude funciona como uma "compensação" ao isolamento e dá ao Direito Marítimo, em nossa opinião, uma característica ímpar em alguns países: dentro de suas fronteiras aparece isolado, pouco conhecido; fora, apresenta-se como um Direito vigoroso e realmente internacional.

Essa afirmativa pode ser constatada quando se trata do instituto da sobreestadia ou demurrage (pagamento pela utilização ou retenção do navio ou contêiner por tempo além do estabelecido para as operações de carga e/ou descarga). No direito interno brasileiro é pouco conhecido, apesar de estar previsto em nosso Código Comercial, (arts. 567, nº 5 e nº 6; 591/593, 595, 606, 609, 611, 613 e 627), de ser cláusula "obrigatória" de contratos de afretamento e de proporcionar a fuga de divisas brasileiras em montante que supera US$ 1,5 bilhão [01].

No direito inglês, contudo, este instituto é vigoroso, mesmo não constando de nenhum ato normativo; sua existência decorre de previsibilidade contratual. Esse mesmo vigor se estende à regra [02] "once on demurrage, always on demurrage" ("uma vez em sobreestadia, sempre em sobreestadia"), que, diferentemente da sobreestadia, não consta de forma literal de nenhum contrato, mas é aceita e aplicada internacionalmente, inclusive no Brasil. Nascida da Lex Mercatoria [03]e consolidada pela jurisprudência [04] inglesa, hoje é conhecida e aplicada por todos os que lidam com transporte marítimo, desde seus operadores, aí incluídos os encarregados de cálculos, até árbitros e juízes que julgam conflitos daí originados. Esta a razão de tratarmos do instituto da sobreestadia e, neste trabalho, fazermos referência a ela, sempre que necessário, em inglês, pois é o mesmo dirigido aos que militam no comércio marítimo internacional.

Nesse sentido, é extremamente útil que nossos operadores de comércio marítimo conheçam a regra em profundidade, pois o incremento das trocas comerciais do Brasil implica no aumento da demanda de transporte, o que nos obriga a contratar navios para transportar essas mercadorias. Como se sabe, os navios transportam cerca de 97% das mercadorias movimentadas no comércio internacional brasileiro.

Registre-se também que, mesmo nos contratos de compra e venda, pode-se estabelecer a cobrança de sobreestadia. E, no caso do Brasil, grande exportador de produtos agrícolas, com sofrível infra-estrutura portuária, esse item tem alcançado quantias vultosas. No caso de venda FOB [05], a mais comum em nossas exportações, o importador da mercadoria não abre mão de fazer constar do contrato a cláusula de sobreestadia, porque lhe cabe contratar o transporte. A despesa com demurrage, nesses casos, pode alcançar valores astronômicos.

O mercado de frete de navios que transportam granéis sólidos (grãos, farelo de soja, açúcar) vem subindo desde 2004, tendo quase triplicado em três anos e atualmente apresenta níveis dos mais altos da história. Uma das principais causas dessa alta é a maior permanência dos navios nos portos [06].

Os contratos de embarque, de transporte, ou de afretamento geralmente utilizam formulários previamente impressos, redigidos em inglês, que estabelecem, na sua grande maioria, o foro de Londres ou de Nova Iorque para o caso de disputa. Considerando que a sobreestadia é um dos temas mais contenciosos do transporte marítimo, conhecer as conseqüências da aplicação da regra "once on demurrage, always on demurrage" evita ao operador comercial marítimo surpresas desagradáveis, que vão desde a vergonha de demonstrar, em um meio de especialistas, que não se a conhece, até a surpresa de um prejuízo inesperado.

A despesa brasileira anual com fretes de navios passa dos US$ 8 bilhões [07], conseqüência da obtusa política de preferir afretar navios a construí-los. O dispêndio com sobreestadia de navios e contêineres – cerca de US$ 1,5 bilhão por ano [08] – cresce a taxas indomáveis em conseqüência do "gargalo" dos nossos portos, o que reduz drasticamente o lucro de algumas de nossas empresas exportadoras e ameaça a existência de outras [09].


1.SOBRE ESTADIA DE NAVIOS

1.1.Conceito

Sobreestadia é palavra composta, formada por aglutinação (sobre + estadia). Para conceituá-la, pode-se partir de estadia: período acordado entre as partes do contrato, em que o armador, ou operador do navio, põe e mantém este à disposição do afretador (ou do consignatário da mercadoria) para as operações de carga e/ou descarga e durante o qual não é devido qualquer pagamento. Segundo esse enfoque temporal, sobreestadia é a utilização do navio além da estadia; é tempo utilizado a mais.

Esse conceito pode ser confirmado pela simples observação das palavras usadas para significar sobreestadia: överliggetidsersättning ou överliggedagspenge, nos países escandinavos [10]; overliggeld, na Holanda; Überliegegeld, na Alemanha; surestaries, na França e na Bélgica e até mesmo contro-stallie, na Itália (TIBERG, 1971, p. 2). Em todas elas está evidente o prefixo (over, Uber, sur) que significa além de, sobre a estadia. Fácil concluir que o significado intrínseco da palavra traz consigo a noção de tempo, ou de excesso de tempo.

Diferentemente das palavras citadas, a locução inglesa demurrage, cujo correspondente em português é sobreestadia [11], não traz consigo a concepção de além da estadia, mas traz a de demora, pois vem do verbo inglês demur (demorar, oferecer objeções), que tem origem no latim demoror (de + mora; demorar, retardar, reter).

Também o nosso Código Comercial, ao enunciar os elementos que devem constar da carta-partida, em seu artigo 567, nº 5, considera sobreestadia sinônimo de demora [12] e, no nº 6, do mesmo artigo, até faz a distinção entre sobreestadia (demora) e pagamento [13].

Ora, sobreestadia – e qualquer das palavras correspondentes citadas – traz consigo a concepção de tempo ou de demora. Como passou a ter também o significado de remuneração? Recordemos: sobreestadia é tempo utilizado além da estadia permitida e, por ser demora, implica em pagamento de remuneração. Logo, quando um navio ultrapassava a estadia, ou tempo permitido, e incorria em sobreestadia, passava a ser devedor de uma soma.

Podemos especular que, ao fazer esse pagamento, por simplificação de linguagem, não se dizia que se estava pagando por ter o navio incorrido em sobreestadia, nem que se estava pagando a remuneração da sobreestadia; dizia-se, simplificadamente, que se estava pagando a sobreestadia. Certamente por isso, o termo ganhou também a concepção de remuneração (ou multa, ou soma), prevista no contrato, paga ao armador, pelo afretador (ou consignatário), em conseqüência da utilização de tempo além daquele fixado no contrato (estadia) para as operações de carga e/ou descarga. Esse conceito de sobreestadia é válido internacionalmente.

Na atualidade, o termo demurrage, dependendo do contexto, é utilizado tanto para significar demora quanto para se referir à remuneração paga em conseqüência da demora [14]. Neste artigo a palavra sobreestadia terá, de acordo com o contexto, um ou outro significado.

Não é o caso de se detalhar aqui, mas, nos EUA, demurrage também pode significar outras formas de demora, e até mesmo o tempo gasto em reparos após abalroamento, como informa Tiberg (1971, p. 3).

1.2.Natureza jurídica

Não chegou a um consenso a doutrina maritimista quanto à natureza jurídica da sobreestadia [15]: cláusula penal, multa, suplemento do frete (ou frete suplementar), entre outras. Contudo, a tendência majoritária tem sido no sentido de considerá-la indenização.

Hugo Simas (1938, p. 175) a entende como "[...] remuneração pela demora ocasionada pelo carregador, e que se calcula sobre as despesas diárias".

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Sampaio de Lacerda (1984, p. 191) assevera que é muito discutida a caracterização desse instituto: "uma pena, uma multa, ou simplesmente um suplemento do frete (jurisprudência francesa)". Em seguida (p. 192), deixa claro que acompanha o entendimento de Ripert, que considera sobreestadia "indenização convencionada pelas partes pelo atraso do afretador no cumprimento de uma de suas obrigações".

O espanhol Francisco Farina (1948, p. 180) reforça esse entendimento ao afirmar que:

No frete ou preço do transporte, subentende-se incluídos os dias necessários para carga e descarga. Ao ver-se impossibilitado de realizar essas operações, no prazo pré-fixado, e permanecendo ‘imobilizado’ o navio, ocorre um prejuízo para o armador, que tem direito à indenização, por parte dos afretadores ou consignatários, mediante o recebimento de uma quantia fixada em função da tonelagem do navio, até o mesmo terminar a carga e/ou descarga.

O próprio Georges Ripert (1954, p. 234), contudo, afirma que é discutivel a natureza jurídica das sobreestadias, mas assim se posiciona: "Quando se as considera uma indenização paga pelo afretador ao armador por haver excedido o prazo previsto no contrato, cabe dizer-se que as sobreestadias representam danos e prejuízos". Esclarece ele que a jurisprudência francesa, por considerar que o termo sobreestadia tanto pode indicar tempo suplementar como indenização, acaba por concluir que a sobreestadia é suplemento do frete.

Ripert detalha que, para a citada jurisprudência chegar a esta conclusão, certamente partiu da definição de fretamento existente no artigo 286 do Código de Comércio francês: convenção ou contrato para o aluguel de um navio; assim, se a operação de carga e/ou descarga se prolonga por determinado tempo além da estadia contratada, o aluguel se prolonga. Ripert, contudo, se rebela contra essa posição. Afirma que "a análise jurídica é certamente falsa" e volta a expressar-se no sentido de que sobreestadias são, juridicamente, "danos e prejuízos fixados convencionalmente entre as partes pelo retardo na execução das obrigações do afretador" (RIPERT, 1954, p. 235).

No direito inglês, por muito tempo, a remuneração da sobreestadia era a soma ou valor pago (em conseqüência de um contrato) por detenção do navio no porto de carga ou descarga além da estadia contratada. Na atualidade, o entendimento dominante, por força da jurisprudência, é que sobreestadia é indenização pré-fixada por quebra do contrato (liquidated damages for such a breach), como noticia John Schofield (2000, p. 317).

Interessante, contudo, o entendimento de Lord Brandon, da Câmara dos Lordes (apud SCHOFIELD, 2000, p. 315) ao julgar o caso "President of Índia v. Lips Maritime Corporation (The Lips)". Para ele, sobreestadia é liablitiy in (ou for) liquidated damages; que poderíamos traduzir como responsabilidade ou obrigação (contratual) de indenizar (de acordo com o valor pré-fixado) a perda ou prejuízo causado pela quebra de contrato. Outras formas utilizadas pelo direito inglês para conceituar demurrage, são: liquidated damages, agreed additional value for an allowed detention, e sum payable under and by reason of a contract for detaining a ship.

Não se deve confundir, porém, demurrage com damages for detention. Esta expressão é comumente utilizada para significar indenização (a ser fixada) por detenção do navio, e pode ser cobrada adicionalmente à sobreestadia ou em substituição a esta, embora as cortes inglesas e americanas resistam a essa pretensão, o que será detalhado adiante. Em conseqüência do que afirmamos, portanto, podemos concluir que sobreestadia (demurrage) é espécie do gênero indenização (damages for detention).

Sobreestadia, então, tanto pode significar o tempo utilizado além da estadia permitida, quanto o valor acordado que deve ser pago em compensação pela utilização, ou detenção do navio, além da estadia permitida. No primeiro caso é tempo, ou demora, e, no segundo, de acordo com a jurisprudência inglesa, é indenização (pré-fixada) por quebra de contrato.

1.3.Finalidade

Apurada a existência de sobreestadia, cabe ao afretador ou ao embarcador, ou ao consignatário, efetuar o pagamento, indenizar. Que finalidade tem essa indenização, tanto do ponto de vista de quem paga quanto de quem recebe?

Para o armador, a indenização é compensação que recebe pela retenção do navio, por parte do afretador, além do tempo contratado para a estadia. A indenização, assim, vem em seu benefício, e tem finalidade reparatória, que Hugo Tiberg (1971, p. 40) chama de reparative function. Esta é, indubitavelmente, a principal finalidade da sobreestadia: indenizar.

Do ponto de vista de quem paga, a indenização pode ser vista de maneira positiva ou negativa. No seu aspecto positivo, ela dá ao afretador (ou embarcador ou consignatário) o poder de reter o navio após o esgotamento da estadia permitida. Em outras palavras, se a sobreestadia não fosse prevista no contrato, o armador poderia sair com o navio tão logo expirasse a estadia contratada. Tiberg (1971, p. 40) chama isso de retentive function.

Por outro lado, ainda do ponto de vista de quem paga, a indenização tem um propósito que lhe desfavorece: o pagamento tem caráter punitivo, por não ter realizado as operações de carga e descarga dentro do tempo contratado (estadia). É a punitive function, de Tiberg (p. 40).

Assim, percebe-se a importância do conhecimento de causa por parte dos negociadores que celebram o contrato. O representante do afretador (ou do embarcador, ou do consignatário) deve cuidar para que o tempo contratado seja suficiente para as operações de carga e/ou descarga; e para que a taxa de sobreestadia não seja tão alta que cubra todos os custos do armador/transportador, deixando-o na cômoda e lucrativa posição de preferir que seu navio continue retido em sobreestadia.

Por sua vez, o representante do armador deve atentar para que o tempo concedido para as operações de carga e/ou descarga (estadia) seja o suficiente, de modo a que o afretador opere com diligência e se sinta "ameaçado" pela possibilidade de pagar sobreestadia. Deve cuidar também para que a taxa acordada de sobreestadia lhe traga remuneração suficiente para cobrir as perdas normais com a demora, se esta vier a acontecer. Nos casos em que a estadia é inegociável, como no afretamento de navios para transporte de óleo cru, em que esta é de 72 horas (para carga e descarga), os cuidados do afretador devem se voltar para as instalações que carregarão e descarregarão o navio.

Certamente, o objetivo de se fixar um período adequado para a estadia e, ao mesmo tempo, uma taxa justa para a sobreestadia, é "encorajar" ambas as partes a agirem com diligência, de forma a que o navio não incorra em demora. Assim, o armador ou transportador terá o navio "de volta" ao término da estadia permitida e o afretador ou consignatário não terá despesa extra.

O que se observa é que, normalmente, a taxa de sobreestadia estabelecida no contrato não cobre todos os custos do transportador (ou se os cobre é por poucos dias), mas, ainda assim, funciona como elemento incentivador para o afretador, pois sobreestadia sempre é custo extra. E, por não cobrir todos os custos daquele (ou do armador), também não o satisfaz.

Com referência a demoras muito extensas, como mencionado linhas acima, Hugo Simas (1938, p. 175) registra que "é de costume conceder o fretador (ou armador, ou transportador) [16] um novo prazo, a que se chama contraestadia (sic). [...] é de preço mais elevado que o das sobreestadias e costuma ser da metade do prazo destas". Embora este estudo não se refira à praxe comercial brasileira, pode-se afirmar que este termo (contra-estadia) não é utilizado na atualidade no Brasil, conquanto nada impeça seu uso (para disciplinar o período de tempo utilizado após o vencimento da sobreestadia e o seu custo). Nosso Código Comercial não faz qualquer referência à contra-estadia.

Sampaio de Lacerda (1984, p. 191) não distingue sobreestadia de contra-estadia: "expressões que não encontram distinção alguma nos textos legais". Registre-se que não conhecemos textos legais brasileiros que utilizem este termo.

Theophilo de Azeredo Santos (1964, p. 19) entende que sobreestadia, contra-estadia e sobredemora são a mesma coisa. E não reconhece tempo adicional à sobreestadia.

Hugo Tiberg (1971, p. 13), porém, registra a existência desse período adicional, que na França é denominado de contre-surestaries, sur-surestaries ou contrestaries e, na Itália, de controstallie straordinarie.

Não há registro desse período adicional na jurisprudência inglesa nem na americana. Os formulários utilizados no afretamento de navios por viagem, redigidos em língua inglesa, não fazem menção ao mesmo, e a contratação de um período após a sobreestadia depende unicamente da vontade das partes. Não é raro, contudo, acordar-se que, após determinado tempo em sobreestadia, seja cobrada uma taxa cinqüenta ou cem por cento maior que a da sobreestadia – ainda assim, a denominação de demurrage permanece. Pode-se também fixar a duração desse tempo, e nada impede que se lhe dê denominação específica. Sendo os formulários impressos, qualquer ajuste poderá ser feito sob forma de cláusula adicional, ou de acréscimo à cláusula já impressa. Para o armador ou operador do navio, a cobrança de demurrage a taxas maiores após determinado período, é interessante; o afretador deve evitar contratá-la.

Em caso de demora muito prolongada, estando ou não essa ocorrência prevista no contrato, considerando que a sobreestadia pode se estender até ser considerada insuportável, o capitão, após as providências legais de praxe (comunicar com antecedência, emitir carta-protesto, declarar a frustração do contrato etc.) poderá deixar o porto. Nesse caso, o armador ou operador do navio tem direito a cobrar, adicionalmente à sobreestadia, indenização por perdas e danos. Em inglês, essa cobrança é chamada de damages for detention, ou unliquidated damages, isto é, indenização ilíquida (a ser fixada pela Justiça ou em arbitragem) por detenção do navio – o que é diferente de sobreestadia e é cobrada em valores maiores do que o armador ou operador receberia de demurrage.

Nesse caso, haverá mais chance de sucesso se houver sido fixado um período para sobreestadia e este tenha transcorrido. Se não foi acordado um tempo-limite para sobreestadia, deve ser considerado o bom-senso. O armador, provando prejuízo que supere os valores de sobreestadia (e até do período adicional, se foi contratado), poderá cobrar damages for detention. A jurisprudência americana, contudo, tem concedido essa indenização apenas como extensão do frete (em valores do contrato) e não em valores de mercado, que o armador deixou de ganhar (TIBERG, 1971, p. 556).

Por outro lado, os tribunais ingleses não têm admitido a cobrança de damages for detention adicionalmente à demurrage ou em conjunto com esta, assim como não aceitam a "troca" da cobrança da sobreestadia por indenização a ser fixada. É pacífica a jurisprudência no sentido de que, havendo previsibilidade para o pagamento da sobreestadia, apenas essa deve ser paga, porque a taxa de demurrage já cobre os custos do armador. Os dois leading cases que propiciaram este entendimento foram: Aktieselskabet Reidar v. Arcos Ltd., na Court of Appeal, e The Suisse Atlantique, na House of Lords (SCHOFIELD, 2000, p. 323).

Entendem as cortes britânicas que, havendo a quebra de contrato quanto à estadia, em conseqüência de retardamento ou falha na carga e/ou descarga e o conseqüente prejuízo para o armador, a única indenização a que este fará jus será a demurrage prevista no contrato (liquidated damages). Em outras palavras: deixando o afretador de carregar ou descarregar dentro do período acordado, ocorrerá a "detenção" do navio, que dará direito ao armador de receber a (pré-estabelecida) sobreestadia.

No caso Suisse Atlantique, o Juiz Mocatta, da House of Lords, afirmou, referindo-se à decisão dos membros da Court of Appeal (de onde vinha o caso):

[...] o princípio geral aceito por todos os membros da Corte de Apelação deve ser aplicado, ou seja, que a cobrança de detenção (ajuizada pelo armador), com base na estadia excedida, já tem seu prejuízo quantificado pelo acordado na previsão de sobreestadia (SCHOFIELD, 2000, p. 326).

No caso The Bonde, o Juiz Potter, após estudar as demandas acima citadas e mais o The Adelfa, afirmou:

[...] a opinião que formei após analisar os casos [...] é que, havendo uma cláusula de sobreestadia, para se ter direito à indenização adicional a esta, devido à falta do afretador em completar o carregamento dentro da estadia contratada, é necessário que o demandante prove que a perda adicional não é apenas diferente em caráter daquela, mas que é causada pela quebra de uma obrigação adicional e/ou independente (SCHOFIELD, 2000, p. 329).

Como se vê, para alcançar sucesso na pretensão de cobrar indenização adicional (damages for detention), deve o armador provar, de maneira irrefutável, um prejuízo adicional e diferente da sobreestadia. E, como se conclui, essa é uma tarefa extremamente árdua nas cortes inglesas.

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Sobre o autor
Wesley Collyer

ex-encarregado dos cálculos de sobreestadia da Petrobrás, professor universitário, advogado em Florianópolis (SC) e cursa o Programa de Mestrado em Ciência Jurídica na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, co-autor,com Marco A. Collyer, do Dicionário de Comércio Marítimo, 3ª ed. Rio de Janeiro: Lutécia/Record, 2002, dentre outras obras

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COLLYER, Wesley. Sobreestadia de navios:: a regra "once on demurrage, always on demurrage". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1166, 10 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8889. Acesso em: 24 abr. 2024.

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