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Sobreestadia de navios:

a regra "once on demurrage, always on demurrage"

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10/09/2006 às 00:00
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2.ORIGEM E EVOLUÇÃO DA sobreestadia

Cedo o armador percebeu que deveria limitar o tempo concedido ao afretador para as operações de carga e/ou descarga, de forma a ter seu navio "de volta" sem demora. Informa-nos Tiberg (1971, p. 10) que o Código de Rodes (séculos VII e VIII) já permitia ao afretador um período de graça de dez dias, constante da carta-partida (charter party [17]), contado a partir do momento fixado para a saída do navio. Os Julgamentos de Oléron (séculos XI e XII) estabeleciam em cinco dias o prazo de espera do navio e, a partir daí, toda demora deveria ser indenizada.

Com o incremento do comércio marítimo, tornou-se comum a fixação desse tempo. Nas Regras de Wisby [18] (fim do século XII) a demora permitida era de quinze dias e estabelecia compensação ao armador por toda demora além disso (TIBERG, 1971, p. 11). Aliás, o prazo de quinze dias era comum nos códigos medievais. Diversas normas dessa época traziam a previsão de que, não tendo sido estipulado um tempo limite, o afretador tinha quinze dias além da data prevista para o término do carregamento para "devolver" o navio ao armador. A indenização era previamente acordada, caso contrário, era estabelecida por árbitros. Após os quinze dias, o navio estava livre para deixar o porto.

A Ordonnance de la Marine de Luís XIV, em 1681, fazia referência ao costume do porto, o que, de certa forma, também limitava o tempo de sobreestadia. Isso se repetiu no Código Napoleônico (1807), considerado por muitos como o pai de todos os códigos. Mais modernamente, o Código de Navegação da Itália (1942) trouxe várias disposições sobre sobreestadia.

No Brasil, o Código Comercial (1850) traz diversas disposições a respeito do tema (arts. 567, nº 5 e nº 6; 591/593, 595, 606, 609, 611, 613 e 627). Portanto, não é correto afirmar, que não há atos legais sobre sobreestadia. Aliás, o art. 591 até limita a duração da mesma ao "uso do porto", desde que o tempo não tenha sido "determinado na carta de fretamento". Citamos aqui apenas mais dois dispositivos. O CADE/Ministério da Justiça entende que sobreestadia "é o pagamento feito ao dono do navio pelo operador portuário pelo atraso no embarque da carga" [19]. Para o Banco Central do Brasil, "Trata-se de indenização convencionada para o caso de atraso no cumprimento da obrigação de carregar e descarregar as mercadorias no tempo pactuado" (Circular 2.393 de 22/12/93).

Frise-se, porém, que diversas legislações silenciam sobre a mesma, dentre elas a americana e a inglesa. O que institui a sobreestadia nesses países é a previsão contratual, já manifestada nos diversos formulários colocados à disposição dos contratantes, que trazem o campo "demurrage per day/pro rata" a ser preenchido pelos contratantes. Entretanto, em nenhum desses formulários consta a expressão "once on demurrage, always on demurrage". Daí, como se disse, a importância de o operador comercial marítimo conhecer seu significado.

A soma a ser paga em conseqüência da sobreestadia é considerada, na atualidade, indenização para cobrir perdas ou prejuízos ocasionados por quebra de contrato. Mas não foi sempre assim. Aliás, essa é uma questão muito interessante. A regra "once on demurrage, always on demurrage" é aplicada pelo menos desde 1900, quando a House of Lords, a mais alta instância inglesa, julgando o caso Saxon Ship Co Ltd v. Union Steamship Co Ltd, decidiu que, tendo o navio incorrido em sobreestadia, as ocorrências que eram excepcionadas (no contrato) e que por isso não contavam, deveriam contar como sobreestadia (SCHOFIELD, 2000, p. 343). Mas, somente no final da década de setenta a jurisprudência inglesa se pacificou quanto ao entendimento de que a ocorrência da sobreestadia constitui quebra de contrato. Em 1978, no famoso caso Dias Compania Naviera AS v. Louis Dreyfus Corporation, o lendário Lord Justice Diplock, da House of Lords, assim se manifestou:

"Se a estadia termina antes de o afretador completar a descarga, ele quebra o contrato. A quebra é contínua; vai até que a descarga seja completada e o navio devolvido ao armador para usá-lo em outras viagens" (SCHOFIELD, 2000, p. 318).

Esse caso, conhecido como The Dias, é emblemático, já que mudou a concepção de que a sobreestadia era a soma paga em conseqüência de o afretador "deter" o navio no porto de carga e/ou descarga além da estadia contratada e pacificou o entendimento de que a ocorrência da sobreestadia constitui quebra de contrato.

E a definição de demurrage, há consenso sobre ela em algum documento? Embora não haja ainda concordância total, a busca do significado único tem sido tentada pelas entidades que atuam nesse ramo de atividade.

Como se sabe, a dinâmica do comércio internacional é tão marcante que 90% dos seus contratos prevêem a arbitragem para solução dos conflitos. A Justiça é muito lenta para atender à agilidade do comércio. Esse mesmo dinamismo, que proporcionou a criação dos Incoterms [20], busca "padronizar" o entendimento de diversos outros termos utilizados no comércio marítimo internacional e, dentre esses, alguns têm merecido especial atenção. Em 1977, o Comitê Marítimo Internacional [21] reuniu-se no Rio de Janeiro e redigiu um esboço de convenção internacional em que seriam definidos 24 termos. O documento ficou conhecido como Rio de Janeiro Charterparty Laytime Definitions, ou RJC/PD [22].

Em 1980 nova tentativa foi feita; dessa vez com a adesão da BIMCO [23], FONASBA [24] e Chamber of Shipping [25]. Foram definidos 31 termos, denominados Charterparty Laytime Definitions 1980 [26].

Em 1993, as definições de 1980 foram aperfeiçoadas e denominadas Voylayrules 1993 [27]. Paralelamente a esta iniciativa, a Baltic Exchange, a maior bolsa de afretamento de navios do mundo, vem publicando suas definições, sendo o último conjunto conhecido como Baltic Code 2000 [28]. Não há grandes diferenças na definição dos termos comuns às Voylayrules e ao Baltic Code.

Em todas essas tentativas foi definido o significado da palavra demurrage. Para as Voylayrules 1993, é: "Quantia paga ao armador em conseqüência da demora do navio além da estadia e pela qual o armador não é o responsável. A sobreestadia não está sujeita às exceções da estadia". Para o Baltic Code 2000 demurrage é: "Quantia paga ao armador em conseqüência da demora do navio além da estadia e pela qual o armador não é o responsável. A sobreestadia não está sujeita às exclusões aplicadas à estadia, a menos que seja claramente especificado na carta-partida".

Em ambas pode-se notar, nas entrelinhas, na parte final da definição, a regra "once on demurrage, always on demurrage", pois as duas afirmam que o período em sobreestadia não está sujeito às exceções da estadia. A regra não aparece com todas as letras, mas com toda a intenção. E de forma muito mais clara do que nos formulários e contratos. Porém, não são todos os contratos que fazem referência a essas definições. Aliás, a referência ainda é exceção. Apenas a Baltic Exchange exige que seus brokers [29] façam, nos contratos que intermedeiam, referência aos significados do Baltic Code, sob pena de quebra de contrato.

2.1."Once on demurrage, always on demurrage"

Para os "iniciados", o significado das entrelinhas dessas ou de outras definições está claro. Eles sabem, por exemplo, que, se uma entidade brasileira necessita transportar determinada carga para o Brasil (suficiente para "lotar" o navio), terá que ir ao mercado internacional e afretar um navio por viagem isolada. Sabem que será utilizado um formulário de VCP [30], escolhido pelo armador, no idioma inglês e na maior parte das vezes, com foro em Londres. E, como todos os que atuam no transporte marítimo internacional, sabem também que, ocorrendo sobreestadia, a regra "once on demurrage, always on demurrage" será aplicada, com todas as suas conseqüências.

Porém, a "clareza" das entrelinhas para os "iniciados" pode não ser suficiente para convencer um exportador brasileiro de soja, por exemplo, que, num contrato de venda FOB, se o tempo permitido para o carregamento transcorrer (e.g., devido a congestionamento no porto) e o navio entrar em sobreestadia, a indenização a ser paga ao comprador da mercadoria (ou ao transportador) incluirá até mesmo os períodos que não contariam se acontecessem durante a estadia, como por exemplo, explosão, greve, ou temporal.

Com certeza quererá ele saber "onde está escrito isso". Como resposta ouvirá que os contratos internacionais que prevêem o pagamento de sobreestadia (afretamento, compra e venda, embarque), cujo foro situa-se no Reino Unido ou nos Estados Unidos estão submetidos à regra "once on demurrage, always on demurrage", nascida da lex mercatoria e consolidada pela jurisprudência. Perguntará em que parte do contrato isto está escrito. Ao ouvir que não está escrito de forma clara, certamente não se convencerá. Ainda assim, terá que pagar sobreestadia, cujas taxas, dependendo do porte do navio, chegam a US$ 50.000 por dia e, dependendo do tempo de espera, os valores podem chegar a US$ 1 milhão! [31].

Em que base de direito a regra "once on demurrage, always on demurrage" se sustenta? Já dissemos que ela se impôs pelos usos e costumes e foi consagrada pela jurisprudência inglesa. Mas, qual a razão de sua existência? Qual o raciocínio que lhe dá força? Afinal, estamos falando de um instituto que não tem previsão na lei inglesa e de uma regra que não está escrita.

Entendemos que ela se sustenta, ou tem sua razão de existir, no princípio universal de que o causador do prejuízo deve reparar o dano. Embora diversos fatos ou ocorrências sejam excetuados pela cláusula de exceções (general exceptions clause), por exemplo, greve no porto (impedindo que o período de duração desse fato seja contado como tempo de estadia), se o navio incorrer em sobreestadia (não por culpa do armador) o fato excepcionado (ou melhor, o tempo de sua duração) deve ser contado na apuração do período de sobreestadia.

Em outras palavras, mesmo que o afretador não seja culpado direto pela ocorrência, ou sobre ela não tenha poder, arcará com o custo dela. Qual a razão? Se o afretador, ou embarcador, ou consignatário tivesse liberado o navio antes de incorrer em sobreestadia, a ocorrência do fato se daria depois de o navio ter sido liberado. De forma mais simples: o navio já teria ido embora e não teria "pego" a greve, por exemplo. Ora, se a demora não foi causada pelo armador, não pode este arcar com os prejuízos advindos da greve que "pegou" o navio em operação porque estava em sobreestadia.

Tivesse o afretador cumprido com sua parte (realizado a carga/descarga dentro do tempo contratado), o navio teria deixado o porto antes do início da greve. Assim, não pode pretender que o tempo que permanecer no porto, em virtude da greve, seja excetuado (como seria se a greve ocorresse durante a estadia). Por isso, deve arcar com o ônus de ter feito o navio incorrer em sobreestadia.

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Provavelmente este raciocínio não se impôs com facilidade. Mas, pelo menos desde 1900, as cortes inglesas pacificaram o entendimento da regra. Daí seguiram-se os "enunciados", que também não constam de qualquer formulário: "a cláusula de exceções não se aplica à sobreestadia", "a partir do vencimento da estadia, a sobreestadia corre de pleno direito e sem interrupção", ou, "na sobreestadia, os dias são ‘corridos’ (contados de forma direta) e não contratuais (em que as exceções não contam)", ou ainda, "nos casos de estadia reversível (reversible laytime) [32], se chegar em sobreestadia não tem direito nem a freetime [33].

Não só a jurisprudência inglesa e a americana são pacíficas nesse sentido; também nas arbitragens realizadas nesses países não pairam dúvidas sobre esse entendimento. Aliás, frise-se que a vasta jurisprudência sobre o assunto não ilustra adequadamente sua real importância porque, na maioria dos casos, as disputas em torno de sobreestadia, que, como dissemos é um dos temas mais contenciosos do transporte marítimo, são decididas por arbitramento.

Ainda assim, é interessante trazermos algumas decisões que entendemos importantes para a fixação das idéias.

No julgamento conhecido como The Spalmatori (SCHOFIELD, 2000, p. 343), assim se manifestou Lord Reid, repetindo palavras do Lord Justice Scrutton:

Quando um navio incorre em sobreestadia, nenhuma exceção (das citadas na cláusula de exceções) será aplicada com o intuito de impedir que a sobreestadia continue a ser paga, a menos que a cláusula de exceções seja redigida de forma clara para ter esse efeito.

Mesmo nos casos em que determinadas ocorrências são excepcionadas pela cláusula de exceções, como greve, força maior, ou fatos além do controle dos embarcadores ou consignatários, com o texto "sempre excetuado" (always excepted), as cortes britânicas têm concluído que os termos citados não são suficientemente claros para invocar a intenção de se excluir a contagem da sobreestadia.

Assim, em conseqüência da "regra" "once on demurrage, always on demurrage", as exceções aplicadas à carga e/ou descarga dentro da estadia não se aplicam quando o navio incorre em sobreestadia. Para que essas exceções sejam consideradas, devem ser redigidas de forma muito clara. No caso Action AS v. Britannic Shipping Corporation, conhecido como The Aegis Britannic (SCHOFIELD, 2000, p. 344), embora houvesse uma cláusula de exceções, o juiz Staughton entendeu que tal cláusula só se aplicava ao período de estadia e afirmou: "isso só pode ser alterado por palavras claras e não por palavras que poderiam meramente ser suficientes no uso ordinário da língua inglesa".

O mesmo ocorre com a fumigação da carga (para combate a insetos), que é sempre excetuada no contrato, e o tempo gasto nela não conta como estadia. Contudo, se ocorrer quando o navio estiver em sobreestadia, contará. Decisões de cortes britânicas têm entendido que se a intenção fosse não contar, deveria ter sido estabelecido de forma peremptória no contrato; isto porque, sendo a sobreestadia indenização pré-fixada (liquidated damages) por quebra de contrato, qualquer exceção que possa ocorrer durante a mesma, para não contar, tem que ser claramente estabelecida, por ocorrer após a quebra do contrato.

Têm entendido os juízes que quando o contrato estabelece que o tempo gasto em determinada operação não deve contar, refere-se à estadia e, expirada esta, a cláusula perde seu efeito. Como sustentou Lord Diplock no julgamento de Dias Compania Naviera AS v. Louis Dreyfus Corporation (The Dias), em 1978, quando julgava se o tempo de fumigação deveria contar:

"[...]. A previsão contratual de que ‘o tempo não deve contar, não tem aplicação após a estadia ter expirado. Mas, mesmo que eu fosse persuadido que a cláusula era de certa forma ambígua, isto não seria o suficiente para livrar os afretadores de sua responsabilidade de pagar a sobreestadia durante o período em que foi feita a fumigação após a estadia ter expirado" (SCHOFIELD, 2000, p. 344).

No caso conhecido como The Forum Craftsman (SCHOFIELD, 2000, p. 345), a disputa também se deu a respeito da interpretação da cláusula de exceções. Durante a operação, ocorreu demora em conseqüência de avaria na carga, e, principalmente em virtude de atos do governo. A cláusula estabelecia: "Greves ou acidentes ou interrupções na ferrovia e/ou no canal e/ou no rio por gelo ou borrasca ou qualquer causa de força maior, inclusive atos do governo (que interfiram nas operações de carga/descarga) que ocorram além do controle dos embarcadores ou consignatários, que possam impedir ou causar demora na carga/descarga do navio, serão sempre excepcionadas" (o que significa que não contariam como tempo utilizado, isto é, não contariam contra o afretador ou embarcador ou consignatário).

A Corte de Apelação inglesa entendeu que a cláusula não estava suficientemente clara para ser invocada a intenção de excluir a sobreestadia, e o afretador teve que pagar sobreestadia sobre todo o tempo de demora.

Cabe lembrar que, dependendo dos portos de operação do navio, é comum excetuarem-se da contagem da estadia os domingos e feriados (não contam como tempo utilizado). Em portos árabes, normalmente as sextas-feiras também não contam (por ser para eles o dia santificado); ainda em outros, dependendo da carga e do sistema de manuseio, os dias de chuva (que impeçam o trabalho ou prejudiquem a mercadoria) também são excetuados.

Em todos esses casos, porém, incorrendo o navio em sobreestadia, contarão. O raciocínio é o mesmo: durante a estadia, não conta (está isento no contrato); incorrendo em sobreestadia, conta (tivesse saído antes de esgotar a estadia, não estaria no porto no feriado ou por ocasião da chuva).

Na atualidade a regra é aceita, como dito acima, internacionalmente. Mesmo que seu texto não conste claramente do contrato e mesmo que dele conste a cláusula de exceções; basta que esta não afirme peremptoriamente que essas exceções não se aplicam durante a sobreestadia. E nenhum armador aceita que as exclusões da estadia se apliquem à sobreestadia, pois estaria entregando seu navio ao acaso ou à incompetência. O máximo que alguns formulários trazem, é a previsão de que, se determinado fato listado na cláusula de exceções ocorrer durante o período de sobreestadia, a taxa de sobreestadia será aplicada pela metade.

No Brasil, mesmo em contratos em que nada é dito sobre a regra em comento – como é o caso de fornecimento de derivados de petróleo pela Petrobrás às companhias distribuidoras de combustíveis – há muito tempo a mesma é aplicada. É a "globalização" da regra desde o final da década de setenta. E a prova de que a aplicação da mesma é defensável também no Brasil.

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Sobre o autor
Wesley Collyer

ex-encarregado dos cálculos de sobreestadia da Petrobrás, professor universitário, advogado em Florianópolis (SC) e cursa o Programa de Mestrado em Ciência Jurídica na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, co-autor,com Marco A. Collyer, do Dicionário de Comércio Marítimo, 3ª ed. Rio de Janeiro: Lutécia/Record, 2002, dentre outras obras

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COLLYER, Wesley. Sobreestadia de navios:: a regra "once on demurrage, always on demurrage". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1166, 10 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8889. Acesso em: 4 mai. 2024.

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