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Sobreestadia de navios:

a regra "once on demurrage, always on demurrage"

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10/09/2006 às 00:00
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Direito Marítimo tende a ser área para especialistas, apesar de ter sob seu foco a atividade responsável por mais de 80% do transporte de mercadorias movimentadas no comércio internacional. Contudo, apresenta um instituto que mesmo não tendo previsão na lei inglesa ou americana – nasceu dos contratos e se fortificou na jurisprudência inglesa – tornou-se reconhecido por todos os operadores marítimos internacionais: a sobreestadia, que vem a ser um dos temas mais contenciosos do transporte marítimo.

Seus custos anuais, apenas para o Brasil, já alcançam 1,5 bilhão de dólares em evasão de divisas. Muito desse valor é proporcionado pela aplicação de uma regra não escrita, esta sim, conhecida apenas por especialistas: "once on demurrage, always on demurrage".

Os contratos utilizados no transporte marítimo internacional são redigidos em inglês, têm como foro geralmente Londres ou Nova Iorque e não trazem, como nenhuma norma traz, a citada regra. Conhecê-la e conhecer as conseqüências de sua aplicação pode evitar a desagradável surpresa de um prejuízo inesperado.

Apesar de discussão doutrinária quanto à sua natureza jurídica, o direito inglês entende que sobreestadia é indenização. Assim, embora seu propósito principal seja compensar o armador ou operador do navio pelo prejuízo causado pela retenção do mesmo, também é "encorajar" ambas as partes a agirem com diligência, de forma a que o navio não incorra em demora e, se esta vier a ocorrer, que cause o menor dispêndio ao afretador ou embarcador ou consignatário. E, no caso de ocorrer sobreestadia, a regra "uma vez em sobreestadia, sempre em sobreestadia" será aplicada e a indenização a ser paga ao operador do navio incluirá até mesmo os períodos que não contariam se tivessem acontecido durante a estadia, apesar de os mesmos serem, normalmente, excluídos pela cláusula de exceções.

Esta é, em síntese, a conseqüência prática da aplicação da regra, que tem por base o raciocínio de que se o afretador ou embarcador tivesse cumprido com sua parte e liberado o navio antes de incorrer em sobreestadia, a ocorrência do fato não alcançaria o navio no porto. Assim, não deve o armador ou operador do navio arcar com o prejuízo da demora que não causou. Este é o posicionamento tranqüilo e pacífico dos tribunais ingleses há mais de um século e das arbitragens realizadas nos Estados Unidos e na Inglaterra. É, também, o procedimento comum de todos os técnicos que efetuam cálculos de sobreestadia a partir de contratos redigidos no idioma inglês e que têm por foro Londres ou Nova Iorque.

A força dessa regra é tamanha – porque baseada no princípio universal de que quem causa prejuízo a outrem deve reparar o dano – que a mesma é internacionalmente aceita, mesmo que não conste do contrato. E, ainda que nele esteja prevista de forma não peremptória, não é considerada contra o operador do navio. Para que isto ocorra, como vimos acima, deve ser redigida de forma extremamente clara.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Banco Central do Brasil. Circular 2.393 de 222/12/93.

BRASIL. Ministério da Justiça. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Disponível em www.cade.gov.br/jurisprudênciarudencia/arquivosPDF/Relatorio-AC-2000-08012-000640-CVRD-Socoimex.pdf. Acesso em: 16 jan. 2006.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1998.

CASTRO JUNIOR, Osvaldo Agripino. "Introdução ao direito marítimo" in CASTRO JUNIOR, Osvaldo Agripino (Org.). Temas atuais de direito do comércio internacional. Florianópolis: OAB Editora, 2004.

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COLLYER, Marco A. e COLLYER, Wesley O. Dicionário de comércio marítimo. 3. ed., Rio de Janeiro: Lutécia/Record, 2002.

COMISSÃO PORTOS (Movimento empresarial). Disponível em: <http://www.comissaoportos.com.br/comissao/>. Acesso em 18 jan. 2007.

FARINA, Francisco. Derecho comercial marítimo. Tomo II. Madri: Departamento Editoral del Comisariado Español Marítimo, 1948.

HIJJAR, Maria Fernanda. Artigo "Logística, Soja e Comércio Internacional". Disponível em <http://www.cel.coppead.ufrj.br/fs-busca.htm?fr-art_soja.htm>. Acesso em: 16 jan. 2006.

LACERDA, J.C.Sampaio. Curso de direito privado da navegação, Vol I, 3. ed., Rio de Janeiro: Biblioteca Jurídica Freitas Bastos, 1984.

RIPERT, Georges. Compendio de derecho maritimo. Buenos Aires: Tipografica Editora Argentina, 1954.

SANTOS, Theophilo de A. Direito da navegação. Rio de Janeiro: Forense, 1964.

SCHOFIELD, John. Laytime and Demurrage, 4. ed. Londres: Lloyd’s of London Press, 2000.

SIMAS, Hugo. Compêndio de direito marítimo brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1938.

TIBERG, Hugo. The law of demurrage, 2. ed., Londres: Stevens & Sons, 1971.

TORRINHA, Francisco. Dicionário latino português. 2. ed. Portugal: Porto, 1942.


Notas

01 Confederação Nacional do Transporte. Disponível em: <http://www.cnt.org.br/cnt/noticia_dia_escolhida.asp?cod=3608>. Acesso em 15 out. 2006.

02 No "I Seminário Catarinense de Direito Internacional, Meio Ambiente e Atividade Portuária", realizado na Univali, em 10 nov. 2006, quando este tema era discutido, o Prof. Dr. Cesar Luiz Pasold alertou-nos que, em vez de regra, talvez fosse melhor considerá-la como princípio. Preferimos aquela, por ser a utilizada pelos autores pesquisados e porque, como Canotilho, entendemos que "os princípios são standards juridicamente vinculantes, radicados nas exigências de justiça ou na idéia de direito, as regras podem ser normas vinculativas com conteúdo meramente funcional", o que nos parece o caso. (CANOTILHO, J. J. Gomes. 1998, p. 1034).

03 Usos e costumes do comércio internacional e, portanto, fonte do mesmo direito. A Lex Mercatoria tem por princípio fundamental a boa-fé objetiva, sendo a prática inglesa nos transportes marítimos "um bom exemplo, em face de sua tradição marinheira e do papel exercido pela sua indústria de serviços mercantes, como arbitragem e seguros, pois é aplicada a vários contratantes não ingleses e sem qualquer vínculo com a Inglaterra" (CASTRO JUNIOR. 2004, p. 120-121).

04

Lembremos que o vocábulo inglês jurisprudence tem, nos países anglo-saxões, um significado tão forte que poderíamos traduzi-lo por ciência do direito ou teoria do direito.

05 "Livre a bordo. O vendedor entrega as mercadorias, desembaraçadas para exportação, no momento em que as mesmas transpõem a balaustrada do navio no porto nomeado" (INCOTERMS 2000 apud COLLYER; COLLYER, 2002, p.116).

06 Hugo Figueiredo, Presidente do Syndarma (sindicato Nacional das Empresas de Navegação Marítima, em pronunciamento durante o V Encap (Encontro Nacional dos Representantes Empresariais nos Conselhos de Autoridade Portuária), em 14 set. 2006, Brasília. Disponível em <http://www.comissaoportos.com.br/comissao/>. Acesso em 18 jan. 2007.

07 Wilen Manteli, presidente da Associação Brasileira de Terminais Portuários em declaração a José Rodrigues, no VALOR ECONÔMICO. 1º Caderno. 25/06/04. Disponível em: <http://64.233.187.104/search?q=cache:hwq0uIedHRAJ:www.clippingexpress.com.br/noticias_justica.php%3Fid%3D16082+%22Demurrage%22&hl=pt-BR>. Acesso em 16 out. 2006.

08 Confederação Nacional do Transporte. Op. Cit.

09 Se o frete é considerado mercadoria invisível, a sobreestadia pode ser chamada de mercadoria supérflua.

10 Dinamarca, Suécia, Noruega e Finlândia.

11 Portanto, se o termo demurrage for usado em nosso idioma, em detrimento de sobreestadia, deve vir precedido do artigo feminino a.

12 Art. 567, 5 - o tempo da carga e descarga, portos de escala quando haja, as estadias e sobreestadias ou demoras [...].

13 Art. 567, 6 - o preço do frete, quanto há de pagar-se de primagem ou gratificação, e de estadias e sobre- estadias, e a forma, tempo e lugar do pagamento;

14 Já vimos, na internet, a afirmação incorreta de que "o (sic) demurrage é o aluguel do contentor"; além de não ser verdadeira, mostra que o pagamento da multa (ou indenização) é tão comum, que já se confunde com o próprio pagmento do aluguel...

15 Nosso Código Comercial se refere à mesma com o significado de demora ao relacionar, no art. 567, o que deve conter a carta-partida.

16 Parênteses e seu conteúdo nossos

17 "Charter Party – O instrumento do contrato de afretamento (ou fretamento) do navio, no todo, ou em parte, por período, ou por viagem isolada. Origina-se da expressão latina carta partita, ou charta partita que significa carta rasgada. Diz-se que antigamente, após a escrituração do contrato, este era rasgado de ponta a ponta, ficando metade com o capitão e a outra metade com o afretador ou dono das mercadorias. No porto de entrega provava-se a propriedade juntando-se as duas metades. O mesmo que Charter Contract." [...]. (COLLYER; COLLYER, 2002, p. 61).

18 P. B. Boucher considera que as regras ou leis de Wisby representam um suplemento aos Julgamentos de Oléron, "corrigindo-as". (apud SANTOS, 1964, p. 19).

19 Disponível em <www.cade.gov.br/jurisprudênciarudencia/arquivosPDF/Relatorio-AC-2000-08012-000640-CVRD-Socoimex.pdf> Acesso em 16 out. 2006.

20 International Commercial Terms – "O mesmo que Trade Terms. Publicação da International Chamber of Commerce, primeira edição em 1936, que define o significado de alguns termos utilizados no comércio internacional. Tem a finalidade de padronizar a interpretação de determinadas expressões e, conseqüentemente, os direitos e obrigações gerados pela sua utilização. Os treze termos trazidos pela edição de 2000 são: Ex Works (EXW), Free Carrier (FCA), Carriage Paid To (CPT), Carriage and Insurance Paid To (CIP), Delivered At Frontier (DAF), Delivered Duty Unpaid (DDU), Delivered Duty Paid (DDP), Free Alongside Ship (FAS), Free On Board (FOB), Cost and Freight (CFR), Cost, Insurance and Freight (CIF), Delivered Ex Ship (DES) e Delivered Ex Quay (DEQ)". (COLLYER; COLLYER, 2002, p. 140).

21 C.M.I. (Comité Maritime International) – "Organismo internacional de Direito Privado, criado em Bruxelas, em 06/06/1897. A partir daí, tem contribuído enormemente para a unificação do Direito Marítimo, elaborando projetos de convenções e regras, muitas das quais tornaram-se convenções internacionais. O C.M.I. reúne associações nacionais de direito marítimo, sendo o Brasil representado pela A.B.D.M.(Associação Brasileira de Direito Marítimo)". (COLLYER; COLLYER, 2002, p. 65/66).

22 "Definições e significados de 24 termos utilizados nas C/Ps de acordo com o entendimento dos representantes do Comitê Marítimo Internacional, reunidos em conferência no Rio de Janeiro, em setembro de 1977. Foi, provavelmente, a primeira tentativa levada a efeito pelo CMI na busca de padronização do entendimento de alguns termos usados nas C/Ps e nos B/Ls. [...]". (COLLYER; COLLYER, 2002, p. 216).

23 BIMCO (The Baltic & International Maritime Council) – "Fundada em 1905, por armadores de diversos países interessados no transporte de carvão e madeira, sob a denominação de Baltic and Sea Conference. A maior organização de shipping do mundo. Congrega armadores, brokers, operadores de navios, agentes, P&I, associações de defesa de frete e sobreestadia e outras associações relativas a shipping e P&I. Tem mais de 2.700 membros em 110 países, totalizando cerca de 450 milhões de toneladas de porte bruto (tpb/dwt). Ao longo dos anos, a organização tornou-se um porta-voz reconhecido em discussões de problemas marítimos internacionais com governos e outras autoridades marítimas. Sede em Copenhague", (COLLYER; COLLYER, 2002, p. 40).

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24 FONASBA – Federation of National Association of Shipbrokers and Agents (Ing.) http://www.fonasba.com/). (COLLYER; COLLYER, 2002, p. 112).

25 "Associação de Armadores do Reino Unido. [...] É o órgão representativo da indústria britânica de shipping. Congrega mais de 120 membros, que operam cerca de 700 navios, totalizando 17 milhões de toneladas de porte bruto (tpb/dwt)". (COLLYER; COLLYER, 2002, p. 60).

26 "Definições e significados de 31 termos utilizados nas C/Ps de acordo com o entendimento do Comitê Marítimo Internacional, BIMCO, FONASBA e GCBS (atual Chamber of Shipping). São o resultado de mais uma tentativa, iniciada no Rio de Janeiro (veja RJC/PD), de se padronizar o entendimento de alguns termos usados nas C/Ps e nos B/Ls". (COLLYER; COLLYER, 2002, p. 61).

27 "Voylayrules 1993 (Voyage Charterparty Laytime Interpretation Rules 1993) – Em 1993, as definições adotadas pelas Charterparty Laytime Definitions 1980 (ver), sofreram nova revisão pelo CMI, BIMCO, FONASBA, Chamber of Shipping e INTERCARGO. Foram deixados de fora os termos: Safe Port, Safe Berth, Customary Despatch e As Fast as the Vessel Can Receiver/Deliver, que neste livro, são mantidas com a definição de 1980. Algumas definições foram aglutinadas e quatro outras foram acrescentadas. O resultado da revisão culminou com a apresentação de 28 termos que constituem as Voylayrules 1993, que se aplicam a todas as formas de contrato de transporte marítimo, inclusive aqueles evidenciados por B/L, desde que claramente disposto na C/P. Contudo, mesmo que assim não ocorra, podem ser utilizadas sempre que for necessário se saber o significado de determinado termo. [...]". (COLLYER; COLLYER, 2002, p. 268/269).

28 "Charterparty and Laytime Terminology and Abbreviations 2000 – Conjunto de 30 definições publicado pela Baltic Exchange [...] desde 1983, revisado em 1988, 1996 e 2000. As definições são idênticas às Voylayrules 1993 (ver) adotadas pelos autores neste livro. Há pequenas diferenças apenas em quatro delas. A Baltic Exchange recomenda seu uso por todos os brokers e considera quebra de contrato sua não utilização. Por sua similitude com as Voylayrules e por serem as mesmas pouco utilizadas entre nós, deixamos de publicá-las neste livro. Poderão, contudo, ser solicitadas através da http://www.balticexchange.co.uk/". (COLLYER; COLLYER, 2002, p. 35).

29 "Broker – [...] 3.Intermediário nas operações de afretamento, ou de engajamento de cargas, ou aquele que, em nome do armador ou embarcador, negocia um contrato para transporte de carga a um determinado preço; também aquele que intermedia a compra e venda de navios. 4.Corretor de Navios (veja Decretos nos. 5.595 de 06/12/28, 19.009 de 27/11/29, 54.956 de 06/11/64 e 59.832 de 21/12/66). Também se utiliza o termo Shipbroker". (COLLYER; COLLYER, 2002, p. 47).

30 Voyage Charter Party: "Afretamento por viagem isolada. Ao afretador compete pagar o frete e taxas sobre a carga transportada. O armador permanece responsável por todas as outras despesas, como combustível, aguada, lubrificantes, rancho, soldadas, sobressalentes, reparos, despesas portuárias, etc". (COLLYER; COLLYER, 2002, p. 268).

31 Segundo a empresa Bünge, devido aos "gargalos portuários", a espera para carregar a soja tem sido, em média, de 22 dias. HIJJAR, Maria Fernanda, "Logística, Soja e Comércio Internacional", disponível em <http://www.cel.coppead.ufrj.br/fs-busca.htm?fr-art_soja.htm>. Acesso em 16 out. 2006.

32 Estadia reversível. "Opção dada ao afretador para juntar os tempos permitidos para carga e descarga. Exercida a opção, o efeito é o mesmo de um tempo total para ambas as operações (Voylayrules 1993)". (COLLYER; COLLYER, 2002, p. 215).

33 Free Time – "1.Período de tempo concedido pelo armador ao afretador, após a expedição da NOR (Notice of Readiness – notificação de pronto a operar) para que o navio seja atracado e inicie a operação. 2.[...]". (COLLYER; COLLYER, 2002, p. 117).

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Sobre o autor
Wesley Collyer

ex-encarregado dos cálculos de sobreestadia da Petrobrás, professor universitário, advogado em Florianópolis (SC) e cursa o Programa de Mestrado em Ciência Jurídica na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, co-autor,com Marco A. Collyer, do Dicionário de Comércio Marítimo, 3ª ed. Rio de Janeiro: Lutécia/Record, 2002, dentre outras obras

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COLLYER, Wesley. Sobreestadia de navios:: a regra "once on demurrage, always on demurrage". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1166, 10 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8889. Acesso em: 18 mai. 2024.

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