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Fundamentos objetivos da aplicabilidade da teoria da imprevisão na revisão contratual

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Não se deve nunca esgotar de tal modo um assunto que não se deixe ao leitor nada a fazer. Não se trata de fazer ler, mas de fazer pensar. (Montesquieu, Do Espírito das Leis, livro XI, Capítulo XX).


Introdução

Tema de grande relevância e que tem suscitado inúmeros debates, tanto na moderna doutrina contratual brasileira, quanto junto aos seus aplicadores, é o da Teoria da Imprevisão, cuja origem nos remete à Itália do Século XIII, quando os canonistas, inspirados por forte moralidade cristã, passaram a dar ao direito um caráter social.

Nesta exposição, buscar-se-á explicar os novos preceitos que regem as atuais figuras contratuais, dentre eles o da Teoria da Imprevisão, que permitiu a relativização do pacta sunt servanda e a revisão dos contratos.

Para o exame desses preceitos, necessário ter em mente que o direito é uma ciência histórica e, como tal, deve acompanhar a evolução da sociedade e das novas formas de contratar. Indispensável o conhecimento acerca das transformações sociais, econômicas e políticas ocorridas com a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, a qual, através do Código Civil Francês, consagrou os princípios do Estado Liberal, isto é, a não intervenção do Estado na economia e na sociedade; o enfraquecimento do Estado Liberal, que começa a sofrer críticas pelos movimentos sociais daquele período e muda sua postura em relação à sociedade, passando a assegurar alguns direitos (Revolução Russa de 1917) e, por fim, o surgimento do Estado do Bem Estar Social, ou Estado Social (final do século XIX e no século XX), que determinou uma modificação nas Constituições (Brasil, CR/1934), vindo a interferir em questões de direito civil (relações entre os particulares).

De se destacar, ainda, fenômenos que ocorreram a partir da transição do regime feudalista para o capitalista, tais como a urbanização crescente, a concentração de riquezas e, principalmente, a massificação dos contratos. O contrato paritário, realizado como acordo de vontades livres, em que as partes discutiam as cláusulas, praticamente não existe mais na sociedade contemporânea. As relações comerciais cada vez mais intensas e rápidas levaram à massificação dos contratos; a regra hoje são os contratos padronizados e de adesão, em que apenas a vontade de uma das partes é livre, restando ao aderente a simples iniciativa de contratar, sem a opção de discutir as cláusulas estabelecidas.

Em outras palavras, as pessoas já não contratam como antes. Não há mais lugar para negociações e discussões acerca de cláusulas contratuais. Os contratos são celebrados em massa, já vindo escritos em formulários impressos.

Toda essa revolução mexe com a principiologia do Direito Contratual. Os fundamentos da vinculatividade dos contratos não podem mais se centrar exclusivamente na vontade segundo o paradigma liberal individualista. Os contratos passam a ser concebidos em termos econômicos e sociais. Nasce a Teoria Preceptiva. Como já dissemos, segundo esta teoria, as obrigações oriundas do contrato valem não apenas porque as partes as assumiram, mas porque interessa à sociedade a tutela da situação objetivamente gerada, por conseqüências econômicas e sociais. É como se a situação se desvinculasse dos sujeitos, nos dizeres de Gino Gorla. (Fiuza, p. 310).

Assim, com a mudança das formas contratuais, mudaram também os princípios que regem o instituto. Se antes a autonomia da vontade era o preceito norteador do direito contratual, hoje princípios como a boa-fé, função social e o equilíbrio contratual prevalecem.

Feitas estas considerações, passo à exposição do tema.


1- O advento do Novo Código Civil diante da principiologia do direito contratual

O Código Civil de 2002, sob a coordenação de Miguel Reale, superou a feição individualista de seu antecessor, o Código de 1916, trazendo como pilar ideológico o paradigma Estado Social de Direito. Neste contexto, de grande relevância as normas de caráter aberto, as denominadas cláusulas gerais, trazidas pelo novo diploma civil, que permitem a sua constante atualização, bem como o emprego de critérios éticos, tais como a boa-fé e a eqüidade. Os novos tipos de normas oferecem conceitos intencionalmente vagos e abertos, buscando a grande vantagem da mobilidade.

O Código Civil de 2002 conferiu ao juiz não só o poder de suprimir lacunas, mas também de resolver o caso concreto em conformidade com valores éticos. Entretanto, não se pode deixar de ressaltar que esta discricionariedade conferida ao juiz, com a utilização das cláusulas gerais, estará sempre limitada pelos princípios fundamentais estabelecidos pela Constituição de 1988.

1.1- Eticidade, Socialidade e Operacionalidade

Três princípios fundamentais nortearam o Código Civil de 2002, segundo nos informa o jurista Miguel Reale:

a) A eticidade: que busca sobrepujar o formalismo e o tecnicismo jurídico, valorizando normas de conduta ética. Daí a opção, muitas vezes por norma genéricas ou cláusulas gerais, sem a preocupação de excessivo rigorismo conceitual, a fim de possibilitar a criação de modelos jurídicos hermenêuticos, quer pelos advogados, quer pelos juízes, para contínua atualização dos preceitos legais. (REALE, Miguel. Novo Código Civil Brasileiro. Prefácio. 2 e., e. RT: 2002, p. XIII). A freqüente menção aos princípios da boa-fé e eqüidade, bem como aos bons costumes, demonstra essa tendência, bem peculiar ao paradigma do Estado Social de Direito, figurando as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminados como instrumentos de mobilidade e abertura do sistema jurídico para as modificações da realidade.

b) A socialidade: que representa o predomínio do social sobre o individual, também paradigma do Estado Social. Neste sentido, o Novo Código Civil traz a função social dos contratos (arts. 421 e 422) como limitadora do princípio da autonomia da vontade ou da liberdade de contratar, além do interesse social da posse e da propriedade (artigos 1.228, 1.238, 1.239, 1.240 e 1.242), conferindo ao juiz poder expropriatório, o que não é consagrado em nenhuma legislação. (obra citada, p. VX).

Este princípio representa a ruptura com o patrimonialismo que permeava as relações jurídicas previstas no Código de 1916, e a reestruturação dos conceitos de figuras típicas do direito civil, tais como o proprietário, o contratante e o empresário.

c) A operabilidade: que nas palavras o Prof. Miguel Reale possui três funções, quais sejam, de eliminar as dúvidas existentes quando da aplicação do Código de 1916; possibilitar a utilização das cláusulas gerais como forma de atualização constante do Código e para a solução dos casos que se exige a aplicação de valores éticos, tais como a probidade e boa-fé e, por fim, tornar a linguagem do Código mais acessível, precisa e atual, superando a linguagem machadiana do Código de 1916. Conclui o professor em relação aos princípios que:

Somente assim se realiza o direito em sua concretude, sendo oportuno lembrar que a teoria do Direito concreto, e não puramente abstrato, encontra apoio de jurisconsultos do porte de Engisch, Betti, Larenz, Esser e muitos outros, implicando maior participação decisória conferida aos magistrados.

Como se vê, o que se objetiva alcançar é o Direito em sua concreção, ou sejam em razão dos elementos de fato e de valor que devem ser sempre levados em conta na enunciação e na aplicação da norma. (obra citada, p. XVI - grifei).

1.2 – Boa-Fé Objetiva

Segundo Ruy Rosado de Aguiar, podemos definir a boa-fé como um princípio geral de Direito, segundo o qual todos devem comportar-se de acordo com um padrão ético de confiança e lealdade. Gera deveres secundários de conduta, que impõem às partes comportamentos necessários, ainda que não previstos expressamente nos contratos, que devem ser obedecidos a fim de permitir a realização das justas expectativas surgidas em razão da celebração e da execução da avença.

(...).

Na questão da boa-fé analisa-se as condições em que o contrato foi firmado, o nível sóciocultural dos contratantes, seu momento histórico e econômico. Com isso, interpreta-se a vontade contratual. [01]

Nos dizeres de Caio Mario, a boa-fé objetiva serve como elemento interpretativo do contrato, como elemento de criação de deveres jurídicos (dever de correção, de cuidado, de segurança, de informação, de cooperação, de sigilo, de prestar contas) e até como elemento de limitação e ruptura de direitos (proibição do venire contra factum proprium, que veda que a conduta da parte entre em contradição com conduta anterior, do inciviliter agere, que proíbe comportamentos que violem o princípio da dignidade humana, e da tu quoque, que é a invocação de uma cláusula ou regra que a própria parte já tenha violado). (Caio Mário, 2004:p. 21).

A boa-fé objetiva, portanto, baseia-se na conduta das partes, que devem agir com correção e honestidade, correspondendo à confiança reciprocamente depositada. É dever imposto de agir de acordo com certos padrões de correção, lealdade e probidade. No Código Civil de 2002 está prevista nos artigos 421, 113 e 187 e trata-se de espécie das denominadas cláusulas gerais.

Em alguns casos o contrato pode ser resolvido por violar o princípio da boa-fé objetiva. Exemplo seria a frustração da finalidade contratual, ou seja, o objetivo que levara uma das partes a contratar deixa de existir. A outra parte não estaria agindo de boa-fé se exigisse a execução do contrato ou a indenização por perdas e danos.

Fala-se em três funções da boa-fé objetiva: função interpretativa da vontade das partes; função de controle dos limites do exercício de um direito (art. 187); e função de integração do negócio jurídico (art. 421). Difere da boa-fé subjetiva, pois nesta o contratante crê que sua conduta é correta, haja vista o grau de conhecimento que possui de um negócio (denota uma intenção, um estado de convicção). Na boa-fé objetiva, deve-se ter em mente o comportamento do homem médio no caso concreto (padrão objetivo de conduta), levando-se em consideração os aspectos sociais, econômicos e históricos envolvidos.

Conforme preleciona Judith Martins Costa em sua obra, A Boa-Fé no Direito Privado, São Paulo: ed. Revista dos Tribunais, 1999, p. 411-413 e p. 509:

"Já por ‘boa-fé objetiva’ se quer significar – segundo a conotação que adveio da interpretação conferida ao §242 do Código Civil alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos, e, bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países do commow law – modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual cada pessoa deve ajustar sua própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subjuntivo."

(...).

A boa-fé objetiva qualifica, pois uma norma de comportamento leal.

(...).

Não é possível, efetivamente, tabular ou arrolar, a priori, o significado da valoração a ser procedida mediante a boa-fé objetiva, porque se trata de uma norma cujo conteúdo não pode ser rigidamente fixado, dependendo sempre das concretas circunstâncias do caso. Mas é, incontroversamente, regra de caráter marcadamente técnico-jurídico, porque enseja a solução dos casos particulares no quadro dos demais modelos jurídicos postos em cada ordenamento às vista das suas particulares circunstâncias. Solução jurídica, repito, e não de cunho moral, advindo a sua juridicidade do fato de remeter e submeter a solução do caso concreto à estrutura, às normas e aos modelos do sistema, considerado este de modo aberto.

(...).

"A boa-fé objetiva constitui, no campo contratual – sempre tomando-se o contrato como processo ou procedimento -, norma que deve ser seguida nas várias fases das relações entre as partes. O pensamento, infelizmente ainda muito difundido, de que somente a vontade das partes conduz o processo contratual deve ser definitivamente afastado. É preciso que, na fase pré-contratual, os candidatos a contratantes ajam, nas negociações preliminares e na declaração da oferta, com lealdade recíproca, dando as informações necessárias, evitando criar expectativas que sabem destinadas ao fracasso, impedindo a revelação de dados obtidos em confiança, não realizando rupturas abruptas e inesperadas das conversações etc."

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Sílvio de Salvo Venosa acrescenta que (...) esse princípio se estampa pelo dever das partes de agir de forma correta antes, durante e depois do contrato, isso porque, mesmo após o cumprimento de um contrato, podem sobrar-lhes efeitos residuais. (...) Na análise do princípio da boa-fé dos contratantes, deve ser examinadas as condições em que o contrato foi firmado, o nível sociocultural dos contratantes, o momento histórico e econômico. É ponto da interpretação da vontade contratual (Venosa, p. 408).

1.3- Função Social do Contrato

Para se entender o que representa a função social dos contratos é necessário destacar que a expressão "função social", à semelhança da boa-fé objetiva, é uma cláusula geral. Baseada na doutrina de Immanuel Kant, a função social do contrato está basicamente ligada ao princípio já examinado da boa-fé objetiva, ao da autonomia da vontade e, principalmente, do equilíbrio contratual. Tem como escopo primordial proibir que o direito de contratar seja exercido de forma abusiva, garantindo-se o equilíbrio dos pactos. Não pode ocorrer qualquer vício de consentimento ou as prestações não podem se tornar excessivamente onerosas para apenas uma das partes, devendo ser, em termos objetivos, equivalentes.

Além do equilíbrio contratual, a função social traz a idéia de que o contrato seja socialmente benéfico e justo, isto é, que não traga prejuízos à coletividade, atendendo ao bem comum. No pensamento de Eduardo Sens dos Santos (O Novo Código Civil e as Cláusulas Gerais: exame da função social do contrato. Revista de Direito Privado n. 10) a função social é um mandado de otimização, ou seja, determina que algo se realize da melhor forma possível, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas. O contrato deve, sempre que possível, e dentro dessas condições, atender de forma ótima à função social a que se destina.

E conclui o insigne jurista:

(...). Dessa forma, a função social do contrato deve ser entendida a partir de dois elementos. Em primeiro lugar, nos contratos deve ser observado o princípio do equilíbrio contratual. Esse princípio, verificável objetivamente, determina uma harmonia entre prestação e contraprestação. O segundo elemento é o atendimento ao bem comum, aos interesses sociais. A função social será atendida quando se reúnam num contrato a justiça contratual e o bem comum. Vale dizer, o contrato deve ser objetivamente equilibrado em relação às partes e atender às exigências do bem comum.

No mesmo sentido ensina Caio Mário da Silva Pereira:

(...) A função social do contrato serve para limitar a autonomia da vontade quando tal autonomia esteja em confronto com o interesse social e este deva prevalecer, ainda que essa limitação possa atingir a própria liberdade de não contratar, como ocorre nas hipóteses de contrato obrigatório.

(...).

Dentro desta concepção, o Código consagra a rescisão do contrato lesivo, anula o celebrado em estado de perigo, combate o enriquecimento sem causa, admite a resolução por onerosidade excessiva, disciplina a redução de cláusula penal excessiva.

O legislador atentou aqui para a acepção mais moderna da função social do contrato, que não é a de exclusivamente atender aos interesses das partes contratantes, como se ele tivesse existência autônoma, fora do mundo que o cerca. Hoje o contrato é visto como parte de uma realidade maior e como um dos fatores de alteração da realidade social. Essa constatação tem como conseqüência, por exemplo, possibilitar que terceiros que não são propriamente partes do contrato possam nele influir, em razão de serem direta ou indiretamente por ele atingidos.

A função social do contrato, portanto, na acepção mais moderna, desafia a concepção clássica de que os contratantes tudo podem fazer, porque estão no exercício da autonomia da vontade. O reconhecimento da inserção do contrato no meio social e da sua função como instrumento de enorme influência na vida das pessoas, possibilita um maior controle da atividade das partes. Em nome do princípio da função social do contrato se pode, v. g., evitar a inserção de cláusulas que venham injustificadamente a prejudicar terceiros ou mesmo proibir a contratação tendo por objeto determinado bem, em razão do interesse maior da coletividade.

A função social do contrato é um princípio moderno que vem a se agregar aos princípios clássicos do contrato, que são os da autonomia da vontade, da força obrigatória, da intangibilidade do seu conteúdo e da relatividade dos seus efeitos. Como princípio novo ele não se limita a se justapor aos demais, antes pelo contrário, vem desafia-los e em certas situações impedir que prevaleçam, diante do interesse social maior. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol. 3, 11.ª e., Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 13-14).

1.4- Pacta Sunt Servanda e a Cláusula Rebus Sic Stantibus.

A autonomia da vontade é importante princípio, que faculta às partes total liberdade para concluir seus contratos. Funda-se na livre vontade do agente, na liberdade de contratar. Desdobra-se no princípio da obrigatoriedade contratual, comumente traduzido em latim por pacta sunt servanda (a força obrigatória dos contratos), ou seja, uma vez celebrados entre as partes, de forma livre e autônoma, os contratos não podem mais ser modificados, a não ser por mútuo acordo. Revela o respeito absoluto aos contratos regularmente firmados e procura resguardar a segurança jurídica.

Contudo, tais princípios vêm sendo mitigados ou abrandados, comportando uma exceção, que é a utilização do antigo princípio rebus sic stantibus, o qual permite a revisão dos contratos ante a modificação das circunstâncias existentes no momento da celebração. O princípio da força obrigatória deixa de ser absoluto, para que seja protegido o equilíbrio contratual, através do rebus sic stantibus.

Informa-nos Sílvio de Salvo Venosa:

Um contrato válido e eficaz deve ser cumprido pelas partes: pacta sunt servada. O acordo de vontades faz lei entre as partes, dicção que não pode ser tomada de forma peremptória, aliás, como tudo em Direito.

Essa obrigatoriedade forma a base do direito contratual. O ordenamento deve conferir à parte instrumentos judiciários para obrigar o contratante a cumprir o contrato ou a indenizar pelas perdas e danos. Não tivesse o contrato força obrigatória estaria estabelecido o caos. Ainda que se busque o interesse social, tal não deve contrariar tanto quanto possível a vontade contratual, a intenção das partes.

Decorre desse princípio a intangibilidade do contrato. Ninguém pode alterar unilateralmente o conteúdo do contrato, nem pode o juiz, como princípio, intervir nesse conteúdo. Essa é a regra geral. (In Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos, v. 2. 5.ª e., São Paulo: Atlas, 2005, p. 406-407.

E, noutro giro:

Se considerássemos absoluta a vinculatividade contratual, uma série de injustiças se perpetuariam em desfavor do contratante prejudicado pelo desequilíbrio posterior à data de conclusão do ajuste. E o pacta sunt servanda verdadeiramente não seria cumprido, senão formalmente, já que materialmente haveria uma desproporção entre as prestações não esperada, nem assumida ou pretendida pelos contratantes.

(...).

Por isso, a relativização da vinculação contratual foi a solução adotada a fim de se permitir a restituição das partes ao estado jurídico anterior ao fato que provocou o desequilíbrio do ajuste originalmente pactuado.

A relativização do contrato encontra fundamento no princípio da conservação do negócio jurídico, o que se torna possível mediante a sua revisão, cujo desiderato é a promoção do reequilíbrio do ajuste originalmente estabelecido, restituindo-se as partes à comutatividade originária, quando da conclusão do contrato. (LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. v. 3. 3.ª e. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 147-148.)

O princípio do rebus sic stantibus deu origem à moderna Teoria da Imprevisãoque, para alguns doutrinadores, nasceu na Babilônia, com a Lei das XII Tábuas, tábua 48.

Doutrinadores existem, no entanto, apontando que a teoria da imprevisão surgiu na Itália do Século XIII, com os canonistas, que imbuídos de forte sentimento religioso, aplicaram ao Direito uma finalidade ética e social. Atribui-se a André Alciato, pós-glosador, a redação da célebre cláusula rebus sic standibus:

contractus qui habent tractum sucessivum et dependentiam de futuro, rebus sic standibus intelliguntur.

Ou seja: os pactos de execução continuada e dependente do futuro entendem-se permanecendo como estão. De outro modo, só poderá ser mantido o contrato se as circunstâncias ou acontecimentos posteriores não mudarem.

Vale ressaltar ainda que o Código bávaro, de 1756, o prussiano, de 1774 e o Código austríaco, de 1811, continham disposições acerca da cláusula rebus sic standibus.

Com o advento do Liberalismo e das Revoluções Burguesas, a aplicação do princípio rebus sic standibus sofreu forte queda, máxime em decorrência do Código de Napoleão (que consagrou o princípio da pacta sunt servanda) e em razão da exaltação dos burgueses à autonomia da vontade e liberdade contratual.

Veja-se:

A exacerbação do liberalismo ocorrida no século XVIII e que presidia a implantação dos primeiros Códigos Civis modernos no século XIX acabara por conduzir a cláusula rebus sic standibus ao esquecimento, porque a excessiva valorização da autonomia da vontade nas convenções e o absolutismo outorgado ao pacta sunt servanda pretendiam que, sendo o contrato a lei das partes, jamais a vontade unilateral de uma delas poderia resolvê-lo, quaisquer que fossem as variações circunstanciais de fato.

Qual fênix imortal, porém, a cláusula rebus sic standibus, quando já era tida como totalmente superada, veio a ressurgir, com novo e multiplicado vigor, em nosso século, ao tempo em que a economia européia teve de enfrentar os horríveis desequilíbrios subseqüentes à Primeira Grande Guerra Mundial. Já então se lhe dava nova roupagem sob o nome de "teoria da imprevisão". (Humberto Theodoro Júnior, p. 153).

Foi no início do século XX, em decorrência das transformações sociais e econômicas ocorridas, que ressurge o rebus sic standibus, expressão da busca pela intervenção na liberdade de contratar, afim de que fossem garantidos o bem comum, a eqüidade, a boa-fé e o equilíbrio contratual.

César Fiuza discorre sobre as várias concepções teóricas elaboradas sobre a Teoria da Imprevisão, sendo a primeira a doutrina da cláusula rebus sic standibus, de origem medieval.

Fala em Teoria da Condição Implícita, obra do direito inglês, através da qual a sobrevivência do contrato pressupõe uma condição implícita de que as circunstâncias externas permanecem do mesmo modo no momento da execução.

Discorre, ainda, sobre a Teoria da Base Negocial Objetiva; quando há desequilíbrio das prestações ou quando estas se tornem grosseiramente desproporcionais, isto é, quando nem de longe ocorre a proporcionalidade aproximada das prestações, suposta pelas partes. Assim:

Mais uma prova de que a teoria da base negocial é teoria da imprevisão, são estas palavras de Larenz, segundo o qual "é requisito que deve ser levado em conta na base objetiva do negócio, que o desaparecimento da circunstância em questão não fosse previsível ou não tivesse sido prevista." (Fiuza: p. 328).

Finalmente, preleciona que de acordo com a Teoria da Impossibilidade Econômica, a prestação contratual há de ser considerada impossível se a ela se opõem obstáculos extraordinários, que só se pode vencer com exagerado sacrifício, ou sob graves riscos, ou com violação de deveres mais importantes. Nestes casos, o contrato deve ser revisto ou resolvido.

Desse modo, quanto à sua natureza jurídica, vê-se que a Teoria da Imprevisão não pode ser definida por uma única teoria e, por óbvio, jamais poderá ser interpretada apenas dentro do paradigma positivista ou do sistema fechado. Trata-se de construção teórica, nascida da necessidade de se adequar a obrigação a uma certa realidade; do anseio social por um mecanismo operacional que garantisse o equilíbrio contratual. É, pois, pressuposto da revisão judicial e está alicerçada no equilíbrio dos contratos, no restabelecimento da comutatividade das prestações contratuais afetadas por eventos que as tornem excessivamente onerosas, enfim, na manutenção da base negocial sobre a qual se firmou o contrato, na equidade, boa-fé, moralidade e confiança.

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Sobre a autora
Gláucia Alvarenga Soares Quintão

Pós-graduada em Direito Civil pela PUC Minas, assessora do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUINTÃO, Gláucia Alvarenga Soares. Fundamentos objetivos da aplicabilidade da teoria da imprevisão na revisão contratual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1160, 4 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8895. Acesso em: 2 dez. 2024.

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