No Habeas Corpus 51.531/RO (2014/0232367-7), cujo relator foi o Ministro Nefi Cordeiro, o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu precedente equiparando conversas de whatsapp a comunicações telefônicas de qualquer natureza e, portanto, exigindo ordem judicial prévia para sua devassa, nos termos da Lei 9.296/96. [1]
Ainda sobre o conteúdo de celulares o mesmo Tribunal Superior decidiu que quando o próprio corpo de delito for aquilo que se acessou (v.g. fotos de menores em cenas de sexo etc.) não há necessidade de prévia ordem judicial, tal como se fosse uma apreensão de material ilícito realizada administrativamente pela polícia (RHC 108.262/MS, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 05/09/2019, DJe 09/12/2019).
Também no caso em que o celular pertence à vítima de um crime e esta ou alguém por ela, no caso de sua morte, entregue o aparelho à Polícia, não haveria necessidade de ordem judicial para acesso, o que nos parece bastante razoável Informativo 617, STJ, 6ª Turma, RHC 86.076/MT, Rel. Min. Sebastião Reis Junior, DJe 12.12.2017.
Finalmente, entendeu o STJ que no caso de existência de ordem judicial de busca e apreensão do aparelho, está implícita a autorização para o acesso de dados, mensagens, imagens etc., pois que a busca e apreensão de um celular somente poderia visar a essa espécie de investigação, o que também se nos apresenta como uma decisão bastante equilibrada (STJ, RHC 75.800, Rel. Ministro Felix Fischer).
No seguimento o Superior Tribunal de Justiça, no bojo da Reclamação 36.734/SP (2018/0285479-8), de relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz, decidiu que quando ocorre o acesso a conversas de whatsapp sem ordem judicial, sendo reconhecida a ilicitude da prova, conforme precedente do próprio tribunal, não fica inviabilizada a posterior expedição de ordem judicial legal para perícia do aparelho e novas investigações, embora todas as provas derivadas da primeira devassa ilícita sejam inadmissíveis por derivação. [2]
A respeito dessa decisão é possível entrever duas posições:
a) Uma postura crítica negativa da decisão do STJ, sob a alegação de que a Constituição não admite provas ilícitas (artigo 5º., LVI) e nem mesmo aquelas delas derivadas, devendo todas serem desentranhadas do processo (artigo 157 e seu § 1º., CPP). Havendo ilicitude no acesso às informações de whatsapp a nulidade seria reconhecida e não se poderia jamais convalidar, ainda que por ato posterior, vez que de qualquer forma, o conhecimento da utilidade da ulterior perícia teria se dado devido ao anterior acesso ilícito. Em suma, a ilicitude inicial do acesso geraria, por derivação, a ilicitude de qualquer outra pesquisa sobre aquela fonte de prova.
b) Um entendimento de que a decisão do STJ é correta e se sustenta, conforme inclusive consta do acórdão, nas limitações à derivação da prova ilícita. No caso específico, seria possível utilizar o disposto no 157, § 2º., CPP, reconhecendo alguma relevante independência entre a posterior perícia e a devassa ilegal (“independent source”). Além disso, seria possível defender a tese, tal como se faz no “decisum” em destaque, de que a partir da apreensão do celular, seria um caminho natural a concessão de ordem judicial, nas circunstâncias do caso concreto, para acesso às conversas e perícia em legítima atividade investigatória. Isso configuraria o que se chama de “descoberta inevitável” ou “inevitable discovery”. Ou seja, com ou sem o acesso ilícito a prova iria ser produzida.
A nosso sentir, o Superior Tribunal de Justiça tomou a decisão mais correta de acordo com a legislação e a dogmática jurídica nacional e internacional a respeito da questão da derivação das provas ilícitas. Efetivamente, a produção da prova se daria com ou sem o acesso indevido inicial, seria o caminho natural da investigação. Além disso, a atual perícia é independente do acesso anterior pelos policiais, em nada sendo influenciada por tal fato (ou seja, o acesso ilícito anterior).
É preciso analisar a questão sob o aspecto da linha de causalidade, empregando o conhecido método da eliminação hipotética para perceber claramente que a perícia e a ordem judicial posterior não derivam da inicial devassa ilícita feita pelos policiais. Eliminada esta última, o curso dos acontecimentos seria o mesmo. Na verdade, a perícia ulterior e a ordem judicial derivam da apreensão do aparelho, que foi lícita, e não da leitura das mensagens pelos policiais, onde reside a ilicitude perpetrada. Fossem ou não lidas as mensagens de forma ilegal a perícia decorreria naturalmente via ordem judicial a partir da apreensão. Significa dizer que não existe relação de causalidade entre a ilicitude e a prova pericial agora em foco. Em suma, a perícia é procedimento legal em si, assim como a ordem judicial que a permite e também inexiste derivação ou relação minimamente relevante com qualquer meio de produção de prova ilícita.
Entretanto, há que consignar que a partir dessa perícia novas investigações e provas deverão ser colhidas a fim de sustentar uma acusação e, ainda mais, uma eventual condenação em juízo, uma vez que aquelas provas que efetivamente derivaram diretamente da devassa ilícita foram totalmente contaminadas (v. .g. eventuais apreensões, prisões em flagrante etc.).
[1] O mesmo entendimento é repetido pela 5ª. Turma: STJ, 5ª Turma, RHC 89.981/MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 13.12.2017.
[2] STJ, Reclamação 36.734/SP (2018/0285479-8).