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O caos sanitário e o exercício do poder de polícia

14/03/2021 às 13:25
Leia nesta página:

Reflexões sobre as recentes medidas tomadas no âmbito do exercício do poder de polícia ante a crise sanitária instaurada em razão da pandemia de covid-19.

I – O FATO  

Organização Mundial da Saúde declarou o novo coronavírus como uma pandemia. O anúncio foi feito nesta quarta-feira, dia 11 de março de 2020, pelo diretor-geral da entidade, Tedros Adhanom Ghebreyesus, durante coletiva de imprensa.  

A pandemia é uma epidemia de doença infecciosa que se espalha entre a população localizada em uma grande região geográfica como, por exemplo, um continente, ou mesmo o Planeta Terra. 

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, uma pandemia pode começar quando se reúnem estas três condições: 

  • O aparecimento de uma nova doença à população. 
  • O agente infecta humanos, causando uma doença séria. 
  • O agente espalha-se fácil e sustentavelmente entre humanos. 

Uma doença ou condição não pode ser considerada uma pandemia somente por estar difundido ou matar um grande número de pessoas; deve também ser infeccioso. Por exemplo, câncer é responsável por um número grande de mortes, mas não é considerada uma pandemia porque a doença não é contagiosa (embora certas causas de alguns tipos de câncer possam ser). 

Os números da pandemia são devastadores no Brasil.  

O país contabilizou 10.939.320 casos e 264.446 óbitos por Covid-19 desde o início da pandemia, segundo balanço do consórcio de veículos de imprensa. Casos e mortes apresentam tendência de alta. 

Os governadores do Brasil determinam à população para ficar em casa ou limitar a saída às ruas com um vírus matador à espreita por edição de decretos. 

Trata-se de algo nunca dantes visto em nossa história pelas proporções que tomou o caos.  


II – O DIREITO DE IR E VIR E OS LIMITES DO PODER DE POLÍCIA  

Para tanto, cabe à Administração o manejo de instrumentos jurídicos no sentido de atender o interesse geral da sociedade.  

O direito fundamental de ir e vir está sendo mitigado.  

Estamos diante de um exercício de poder de polícia.  

Atende-se aos casos de relevância e urgência na aplicação do modelo legislativo no que concerne ao exercício da autoexecutoriedade do ato administrativo para que se possa ter o poder de polícia. 

Trata-se de executoriedade dos atos administrativos unilaterais. Através dele a Administração pode modificar, por sua única vontade, situações jurídicas, sem o consentimento dos atingidos pelo ato. 

É a chamada execução forçada na via administrativa, que consiste em uma via jurídica especial, própria do ato administrativo, fazendo a Administração prescindir da declaratio iuris do Poder Judiciário. 

A executoriedade, pois, por sua importância, é a manifestação do poder de autotutela da Administração Pública, pelo qual esta tem a possibilidade de realizar, de forma coativa, o provimento no caso de oposição do sujeito passivo. 

Pois a executoriedade dos atos administrativos tem fundamental importância no exercício do poder de polícia administrativo, na faculdade que tem a Administração Pública de disciplinar e limitar, em prol de interesse público adequado, os direitos e liberdades individuais, como já ensinou Caio Tácito (O poder de polícia seus limites. in Rev. De Dir. Adm., volume 27, páginas 1 e seguintes). 

Nessa linha de pensar, as decisões administrativas de polícia são, por sua natureza, executórias. A Administração tem a faculdade de recorrer a meios coercitivos para compelir ao cumprimento de suas determinações. Mas entenda-se que essa coação administrativa, desde que exercida, de forma moderada, e dentro de quadros legais, é permite, nos limites da proporcionalidade. 

A providência legislativa adotada precisa ser enquadra em parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade. 

A razoabilidade é vista na seguinte tipologia: 

a) razoabilidade como equidade: exige-se a harmonização da norma geral com o caso individual; 

b) razoabilidade como congruência: exige-se a harmonização das normas com suas condições externas de aplicação; 

c) a razoabilidade por equivalência: exige-se uma relação de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona. 

Há, ainda, o que se chama de proporcionalidade em sentido estrito, onde se cuida de uma verificação da relação custo-benefício da medida, isto é, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos. Pesam-se as desvantagens dos meios em relação ás vantagens do fim. 

Em resumo, a providência deve atender aos  seguintes requisitos: a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento de  fins visados; c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos. 

O artigo 78, da lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 cita que: 

"Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. 

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder." 

Perguntou Marcelo Caetano (Princípios fundamentais do direito administrativo, 1989, pág. 336): Sendo um sistema de restrições à liberdade, a Polícia será odiosa? A polícia será inimiga da liberdade? 

Disse Marcelo Caetano: “A polícia não é inimiga da liberdade: é uma garantia das liberdades individuais.  

Então, Marcelo Caetano concluiu: “A polícia de um modo de atuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício das atividades individuais suscetíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objeto evitar que se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que a lei procura prevenir.  

A polícia como atuação da autoridade é um modo de atividade administrativa.  

O poder de polícia tem como fim atingir a segurança, a higiene, a ordem, os costumes, a disciplina da produção e do mercado, o exercício das atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, a tranquilidade pública, o respeito à propriedade e aos direitos individuais.  

Como tal, ela deve ser realizada nos limites da lei.  

Por sua vez, Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernandez (Curso de Direito Administrativo, tradução Arnaldo Setti, pág. 689) a execução forçada de um ato administrativo implica levar à sua aplicação prática, no terreno dos fatos, a declaração que no mesmo se contém, não obstante a resistência passiva ou ativa, a pessoa obrigada ao seu cumprimento.  

Na Espanha, o RPA, artigo 102 formula um princípio geral de autotutela coativa com fins de execução forçada, nestes termos: “A Administração pública, através de seus órgãos competentes em cada caso, poderá proceder, prévia advertência, à execução forçada dos atos administrativos, salvo quando por lei se exija a intervenção dos tribunais”. 

Mas repito que essa execução coativa deve ser feita por autorização da lei, dentro dos limites da proporcionalidade e da razoabilidade.  

Essa legalidade há de habilitar a ação administrativa, definir uma potestade de obrar mais ou menos ampla, mas nunca ilimitada. Pois então essa coação administrativa, no exercício do poder de polícia é produto de uma competência legal, mais ou menos intensa, porém limitada e não um princípio formal e absoluto.  


III -  A LEI 13.979/20 

Na matéria, sabe-se que compete, de forma concorrente, à União, aos Estados e aos Municípios, a teor do artigo 24, XII, da Constituição Federal, legislar sobre a defesa da saúde. 

A competência para legislar e atuar em matéria de saúde é concorrente. Caso a União Federal não atue, deverão as demais unidades federativas (Estados membros e Distrito Federal e municípios) agir. A União Federal poderá emitir normas gerais sobre a matéria.  Mas, no entanto, os Municípios poderão legislar na matéria, dentro do seu restrito interesse local, não adotando as providências tomadas pelo Estado Membro. 

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As medidas tomadas a partir da edição da Lei nº 13.979/2020 serão aplicadas no contexto do poder de polícia. Portanto, não são meras medidas indicativas ou educativas, mas impositivas. 

São elas:  

Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: (Redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 2020) 

I - isolamento; 

II - quarentena; 

III - determinação de realização compulsória de: 

a) exames médicos; 

b) testes laboratoriais; 

c) coleta de amostras clínicas; 

d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou 

e) tratamentos médicos específicos; 

IV - estudo ou investigação epidemiológica; 

V - exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver; 

VI - restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por rodovias, portos ou aeroportos; 

VI - restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: (Redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 2020) 

a) entrada e saída do País; e (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020) 

b) locomoção interestadual e intermunicipal; (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020) 

VII - requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; e 

VIII - autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa, desde que: 

a) registrados por autoridade sanitária estrangeira; e 

b) previstos em ato do Ministério da Saúde. 

§ 1º As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública. 

Observe-se bem: cabe no exercício do poder de polícia às entidades federativas exercerem o poder de polícia objetivando limitar a locomoção, o ir e vir.  

Mas repito, à luz de Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernandez (obra citada, pág. 790), fora de limites precisos, o uso pela Administração, em suas relações com os demais sujeitos, de seus meios coativos efetivos, perde toda legitimidade e se apresenta como prepotência de fato à margem do Direito, como uma via de fato condenável, pois que a via de fato é um vício específico da ação coativa da Administração.  

Somente assim diante da trágica realidade por que passamos poderemos entender a fundamental aplicação dessas medidas coativas no exercício do poder de polícia. Uma delas é a restrição de circulação de pessoas.  

Mas a lei em testa deixa clara a razoabilidade que deve incidir como pressuposto de sua aplicação:  

§ 1º As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública. 

Eis aqui o fundamento da medida coativa adotada. Fora disso a limitação à liberdade individual e coletiva deve ser entendida como ato coativo ilegal.  


IV – O HC COLETIVO COMO REMÉDIO INADEQUADO  

Há evidentes restrições processuais que impedem o ajuizamento de habeas corpus para o caso na tutela do interesse coletivo.  

Não há falar em impetração de habeas corpus para a tutela de direitos coletivos, sem que sejam individualizados, ou ao menos identificáveis, as pessoas que efetivamente sofrem a suposta coação ilegal ao tempo da impetração. 

O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento firmado de que não é cabível writ com natureza coletiva, nem tampouco viável a concessão do benefício, de forma genérica, em favor da totalidade do grupo, na via mandamental, sendo imprescindível a identificação dos pacientes e a individualização do alegado constrangimento ilegal.  

Por fim, cabe lembrar que o habeas corpus e o seu respectivo recurso não podem ser utilizados como mecanismos de controle abstrato da validade das leis e dos atos normativos em geral.

Nesse sentido tem-se dentre outros: RHC 104.626/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 06/08/2019, DJe 13/08/2019; AgRg no RHC 104.926/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 09/04/2019, DJe 25/04/2019; AgInt no HC 444.369/SP, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 11/09/2018, DJe 17/09/2018, dentre outros.   

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. O caos sanitário e o exercício do poder de polícia . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6465, 14 mar. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88998. Acesso em: 21 nov. 2024.

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