Artigo Destaque dos editores

Monitória e cheque prescrito

01/07/2000 às 00:00
Leia nesta página:

Durante seis meses, a contar da data limite para apresentação de cheque ao banco, pode-se proceder à sua execução. Decorrido esse prazo, e até perfazer o de 2 anos a contar do dia em que se consumou a prescrição, o favorecido tem ação de enriquecimento contra o emitente e/ou co-obrigados, com base no cheque (art. 61, da Lei 7.357). Empós disso, durante 20 anos tem ação com esteio na relação jurídica subjacente (art. 62). Ocorrida, portanto, a segunda hipótese, o favorecido não mais tem ação de execução, e nem outra que não seja a do art. 61 da Lei do Cheque, isto é, a de enriquecimento, com esteio na relação cambiária. A propósito diz Egberto Lacerda, "in" A Nova Lei Brasileira do Cheque, S. Paulo, Saraiva, 1988, págs. 97 e seg.: "Assinale-se que o legislador brasileiro, de certo modo, foi além do que explicitou a Convenção de Genebra ao regular a ação ordinária de locupletamento indevido."

Assim, a ação determinada pela Lei, para forçar cumprimento de obrigação representada por cheque já prescrito, no lapso de 2 anos não visa à simples cobrança, mas à apuração dos consectários do seu não-pagamento, devendo seguir o rito comum, e ao favorecido não é dado fazer uso de ação de rito especial para simples cobrança, com menoscabo ao fundamento legal exigido; no caso, o enriquecimento ilícito.

E não há lugar à conversão de procedimento, uma vez que a natureza da causa legalmente estabelecida não comporta utilização de processo com contraditório diferido (art. 295-V/CPC); e o erro a decorrer de eventual conversão não é somente de forma, mas de causa de pedir, pois, se na monitória é requerida expedição de mandado de pagamento com esteio em causa referente à simples emissão do título, para os efeitos de uma ação convertida, de locupletamento indevido, não há "causa petendi" a ser aproveitada nos autos. A causa de pedir é requisito essencial fixado no CPC, art. 282-III, art. 295, § ún., I; e o art. 264 do mesmo diploma veda modificação da "causa petendi" empós da citação.

Em face disto, acredita-se não só jurídica, mas também ética, e razoável, a busca da aplicação da Lei do Cheque "ao caso", pois, ainda incidisse, em tese, a figura do Conflito de Leis, relativamente ao CPC no Capítulo da Ação Monitória, o comportamento processual do indigitado devedor que se defenda com base naquela, não é incorreto, pois, mesmo nesse caso, que inere ao Direito de Conflitos, se justificaria a expectativa natural em invocar, entre ambas, a norma que considere mais consentânea à essência da relação jurídica substancial.


Disto se conclui, que em ambiente de conjectura desse jaez, as partes, diante de qualquer dúvida sobre a consistência da sua situação jurídica decorrente da pluralidade de leis disciplinadoras da mesma e a diversa maneira por que essas leis estariam a regulá-la, viriam-se logo tranqüilizadas ao descobrir que ambas fariam aplicação do mesmo direito, e com razão assentariam seu pleito na que lhes afigurasse adequada (Cfr. João Baptista Machado, Âmbito de Eficácia e Âmbito de Competência das Leis, Coimbra, Almedina, 1970, pág. 86), parece que sem o risco de incorrer em dislate, ou mesmo de causar perplexão aos mais doutos.

Porém, tudo mostra-se a alvitrar que não reside nessa questão o conflito de normas (entre a Lei do Cheque e o CPC) mesmo porque esse (o conflito) se dá, designadamente, entre normas em concurso sobre a mesma situação concreta, e só parece existir quando tais normas se reportem à mesma questão de Direito.

Destarte, excetuado o critério da hierarquia entre as normas referidas, porque a priori não-incidente, há o critério cronológico (lex posterior derogat legi priori), de que parece valer-se, a seu aviso, o entendimento adverso, ao contemplar para o caso a lei nova (relativa à monitória), só por ser nova, e ao relegar a lei velha, só por ser velha, com mais de dez anos (Lei do Cheque), omitindo amiúde, na justificação da adoção daquela em detrimento desta, a antinomia acaso encontrada entre tais normas.

E o aprendizado sobre esse tema apaixonante indica que a aplicação do critério cronológico no ato de resolver a questão reclama exista entre as normas postas em evidência, uma relação antinômica, manifestamente indestrinçável através da tecnologia utilitária (praxiológica e pragmática) sugerida e adotada no Direito científico.

O critério cronológico, realmente, ao contrário do que acontece com o da especialidade, não exaure com a simples opção entre regras jurídicas, sobretudo mediante inserção de princípios pois, atentando para sua essência, examinando-o nas entranhas, ostenta tratar-se, em suma – o critério cronológico –, de critério de resolução das antinomias, ordinariamente omitido nos estudos e nas decisões a propósito do tema.

Contudo, salvo melhor juízo, afigura-se ocorrente na hipótese "sub examine", à falta de colisão de normas, a relação de especialidade. E parece não haver dúvida possível: "lex specialis derogat legi generali", critério que uns erigem à categoria de critério formal (Mezger) de resolução de concursos, e outros à categoria de critério interpretativo (cfr. Norberto Bobbio, Les Antinomies en Droit, Bruxelas, Centre National de Recherches de Logique, 1965, págs. 241 e segs.), ambas as correntes, à evidência, raciocinando no sentido de que em meio às normas que guardam entre si relação "pura" de especialidade, jamais existe antinomia.

Vê-se, objetivamente, que, para a cobrança de cheque no período de 2 (dois) anos de sua prescrição, a lei especial – 7.357/85 – "especializou" pela forma indicada o modo de solução dos conflitos, através da apuração de eventual locupletamento, que se desenvolve pela via do Processo de Conhecimento.

A regra geral, o CPC, ao disciplinar a cobrança pela simples expedição de mandado de pagamento (art. 1.102 "b") não dispõe sobre a matéria (pagamento de cheque prescrito – art. 1.102 "a").

Por ser curial que a questão não pode receber respostas divergentes, sob pena de contradição, ela só pode corresponder a um preceito-resposta (Cfr. João Baptista Machado, cit., pag. 243), no caso, a ser extraído do fato de a Lei do Cheque haver querido especializar a forma e o modo de solução da lide a envolver débito representado por cheque, circunscrevendo o campo de sua aplicação, fixando critérios resolutivos, e designando os tipos de questões jurídicas atinentes a serem resolvidas, como a do locupletamento; e, por não reportar-se a Lei Geral (CPC) a essa matéria, sem dúvida que a aplicação daquela impõe-se, com substrato mesmo em fundamento lógico, sem receio de violar o fim social da Lei; primeiro, à luz do Princípio da Isonomia, que contempla a um só tempo credor e indigitado devedor; segundo, conforme apotegma de Norberto Bobbio, cit., págs. 243 e segs., o critério da especialidade "representa a aplicação do princípio da justiça no sentido estrito da palavra, quer dizer, no sentido clássico do suum cuique tribuere, ao passo que os critérios cronológico e hierárquico obedecem antes à exigência de salvaguardar a ordem pública".

Nota-se que a Lei do Cheque não só dispôs sobre o Direito adjetivo, fazendo-o também relativamente ao Direito material, estabelecendo como efeito do não-pagamento de cheque prescrito, com as conseqüências decorrentes da inércia do pretenso credor, não simples inadimplemento, mas, enriquecimento sem causa, sujeito à prova em dilação apropositada, o que não realiza-se pela monição, vez que o procedimento monitório em si alcança o seu desígnio logo que expedido mandado de pagamento, não havendo nele azo à instrução superveniente, pois que, suspenso "in initio litis", aguarda ocasião de expedição de título executivo ou decisão dos embargos desconstituindo-o (art. 1.102 "c", § 3º, do CPC) (Cfr. artigo de nossa lavra, "in" Revista de Processo, RT, 84/18).

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

E parece exsurgir contradição a ressair do desprezo à Lei do Cheque para os efeitos aqui indicados, se os partidários dessa idéia sufragam a prescrição, que é determinada exclusivamente na própria Lei do Cheque.

E, respeitantemente à vigência de lei geral em concomitância com a especial, o Prof. Vicente Ráo, "in" O Direito e a Vida dos Direitos, S. Paulo, Resenha Universitária, 1976, vol. I, tomo II, pág. 297, lembra: "A disposição especial não revoga a geral, nem a geral revoga a especial, senão quando a ela, ou ao seu assunto, se referir, alterando-a, explícita ou implicitamente. Em conseqüência, a lei nova que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior."

Em outro plano constata-se equivocidade no que diz sobre possibilidade amiúde reconhecida, de conversão, "ex officio", pelo juiz,do Cheque em instrumento de Confissão de Dívida, regulada esta por outra Lei Especial.

Nesse aspecto resulta que decisão nesse sentido viria "extra petita", visto que o réu da monitória é conclamado a pagar por cheque, regulado pela Lei do Cheque, com esteio na qual busca defender-se, deixando de fazê-lo relativamente a confissão de dívida em que muitas vezes vem convertido supervenientemente (surpreendentemente), em seu prejuízo. De feito, conforme decidiu o TACSP, "E se o autor não pode modificar a causa de pedir depois da contestação (art. 303 do CPC), pois ao réu cabe manifestar-se precisamente sobre os fatos narrados na petição inicial (art. 302 do CPC), com maior razão é vedado ao Juiz considerar causa de pedir diversa daquela constante da petição inicial, para impor, como ocorreu no caso dos autos, decreto condenatório do réu (cf. art. 128 do CPC). (...) Daí por que, reconhecendo a inépcia da inicial, extinto o processo sem julgamento de mérito (art. 267, I, do CPC), deram provimento ao recurso, como acima enunciado." (Ac. 1º TACSP, de 13/10/82, Apel. 297.269 – Rel. Juiz Álvaro Lazzarini, JTACSP – Saraiva, 79/70).

Finalmente, o cheque, na maioria das vezes não especifica a amplitude e alcance do débito, sendo o seu texto genérico. Para o caso, assim se posiciona o TAPR: "Ação de cobrança ordinária – Triplicatas e Cheques – Prova dos negócios subjacentes – ... Confissão de Dívida formulada em texto genérico, sem especificar abrangência e alcance dos débitos, pede dilação probatória. Afigura-se cerceamento de defesa o julgamento antecipado da lide sem que os contornos da relação causal sejam perfeitamente delineados." (Ac. TAPR, de 20/12/95 – Apel. 77315500 – Rel. Juiz Clayton Camargo, Jurispr. Inform. Saraiva, 14, gr.).

Em conclusão, tem-se que a cobrança de cheque prescrito sujeita-se ao procedimento antevisto na lei especial, não sendo lícito o uso da monitória para o desiderato. E ainda, que o cheque não tem como ser convertido em confissão de dívida diretamente em embargos à monitória.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Eulâmpio Rodrigues Filho

advogado, professor titular de Direito Processual Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES FILHO, Eulâmpio. Monitória e cheque prescrito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 43, 1 jul. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/895. Acesso em: 22 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos