A Administração Pública, na qualidade de gestora por excelência dos interesses superiores da coletividade e de tutora do interesse público, por desempenhar um amplo leque de atividades que lhe são confiadas pelo ordenamento jurídico compreensivas da tutela do patrimônio público, do atendimento dos pleitos da sociedade mediante a prestação de serviços públicos e de tantos outros misteres de subida relevância, tem sua atuação jungida a princípios de envergadura constitucional (legalidade, impessoalidade, moralidade, eficiência, publicidade: art. 37, caput, Carta Magna de 1988) e outros não menos relevantes de magnitude infraconstitucional (razoabilidade, segurança jurídica, proporcionalidade, interesse público, motivação, dentre outros: art. 2º., caput, Lei de Processo Administrativo da União – L. 9.784, de 29.1.1999), determinantes de um regime jurídico próprio conformador dos atos administrativos por ela editados, do que segue a imperatividade da observância de um padrão de comportamento dos que titularizam função ou cargo público, sujeitos a um estatuto consagrador de regras disciplinares que lhes impõem deveres (comportamentos positivos, uma obrigação de agir) e proibições (abstenção de comportamentos) e lhes conformam a conduta funcional, em vista de que compete aos agentes públicos manifestar a vontade do Estado (teoria da imputação volitiva) perante os administrados e em face da ordem jurídica.
A responsabilidade administrativa dos servidores públicos decorre da violação dessas regras legais de procedimento no exercício funcional, conceito expresso na própria Lei federal nº 8.112/90 (Regime Jurídico dos Servidores Públicos da União) ao dispor que " a responsabilidade civil-administrativa resulta do ato omissivo ou comissivo praticado no desempenho do cargo ou função" (art. 124). A falta disciplinar é o comportamento do agente público atentatório da disciplina funcional, praticado no exercício das funções, representativo do desacato aos deveres e proibições estatutárias. Marcelo Caetano [01] explica que a infração disciplinar pode consistir em uma ação ou omissão, expressiva de conduta contrária àquela imposta pelo regular cumprimento do dever funcional, tanto pela prática de fato proibido como pela omissão de comportamento exigido, desde que por ato voluntário do agente administrativo.
Uma vez conhecida a infração de deveres ou proibições funcionais por parte de agente público com a conseqüente quebra da disciplina interior administrativa, rende-se ensejo ao exercício do poder disciplinar da Administração Pública, que constitui o poder-dever de impor sanções administrativas previstas em lei aos servidores faltosos, com vistas a corrigir os seus desvios de comportamento nos casos de infrações não expulsórias ou desligar do serviço público os transgressores nas hipóteses mais graves passíveis de demissão, justificando-se " no interesse e na necessidade de aperfeiçoamento progressivo do serviço público", segundo Hely Lopes Meirelles [02].
Com efeito, a regularidade da execução das atividades do Estado restaria comprometida se aqueles que agem em nome dele e a ele se ligam por um vínculo especial de sujeição de natureza institucional incorressem, de forma impune e sem controle, em condutas ilícitas, afrontadoras da legalidade, da moralidade, da probidade e de outros preceitos informadores da condigna gestão da coisa pública, determinantes de parâmetros de conduta funcional aos agentes públicos, de sorte que a punição dos infratores acarreta exemplo para os demais servidores e se destina a preservar, em última instância, os interesses administrativos e da sociedade no regular funcionamento da Administração Pública, em harmonia com os princípios e valores aos quais adstrita sua atividade.
Por conseguinte, a apuração das irregularidades verificadas em seus serviços é dever da Administração Pública, como capitulado no texto da L. 8.112/90: " Art. 143. A autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa", tanto que configura fato criminoso a condescendência do superior hierárquico que deixa de punir subordinado por sentimento pessoal (art. 320, Código Penal). Daí que esse mister apuratório constitui a ação disciplinar, que é a " faculdade de promover a averiguação dos fatos que possam ser qualificados como infrações, para efeito de eventual repressão", na cátedra de Marcelo Caetano [03]. Alberto Bonfim [04] explica que a apuração dos ilícitos disciplinares mediante procedimentos legais não se destina apenas como meio de preservação da boa ordem do serviço público, mas como instrumento de garantia dos servidores e da justiça: " não deve o funcionário ser punido senão quando ficar provado que, de fato, cometeu o delito de que é acusado" .
No direito positivo federal, pois, a apuração dos fatos irregulares pode ultimar-se por meio de sindicância ou de processo administrativo disciplinar, restringindo-se o presente estudo ao primeiro instituto. Em sua feição própria, José Cretella Júnior [05] sustenta que a sindicância é meio sumário para investigação de anormalidades no serviço público, haja ou não indiciados conhecidos, para coletar os elementos suficientes para indicação de autoria e seguida abertura de processo disciplinar contra o funcionário público responsável, não sendo informada pelas garantias do contraditório e da ampla defesa segundo o mesmo administrativista [06], " porque não conclui por uma decisão contra ou em favor de pessoas, mas pela instauração de processo administrativo ou pelo arquivamento da sindicância", instituto cuja disciplina na L. 8.112/90, enquanto procedimento investigativo desprovido de contraditório e de ampla defesa porque de seu final não surge penalidade imposta, foi sobejamente analisada pelo Superior Tribunal de Justiça [07] .
Mas a Lei 8.112/90 adotou sistema próprio, por força do qual da sindicância pode resultar, além da ordinária instauração de processo administrativo disciplinar, a imediata punição do servidor investigado (art. 145, II): " Art. 145. Da sindicância poderá resultar: I - arquivamento do processo; II - aplicação de penalidade de advertência ou suspensão de até 30 (trinta) dias; III - instauração de processo disciplinar".
José Armando da Costa [08] anota, a propósito, que a Lei 8.112/90 abraçou três tipos de sindicância: a meramente investigativa ou inquisitorial (aquela instalada para apuração de irregularidades e identificação da respectiva autoria, visto que aberta sem a presença de acusados); a conectiva (a que serve de meio de instauração de processo administrativo disciplinar nos casos passíveis de penas mais graves do que a suspensão de até 30 dias) e a autônoma ou punitiva (aquela instaurada com acusação formal contra determinado servidor e na qual assegurada ampla defesa aos imputados, por destinar-se à imposição, ao seu final, de ato punitivo de advertência ou suspensão de até 30 (trinta) dias).
É a sindicância nominada punitiva e as respectivas regras de competência para o seu processamento que interessam ao vertente estudo. Ao ensejar a possibilidade de apenação do servidor acusado, porque também ornado pelas garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, esse procedimento sindicante sumário adquire natureza jurídica de autêntico processo administrativo disciplinar.
José dos Santos Carvalho Filho [09], exemplificando com a hipótese prevista no art. 145, II, da Lei 8.112/90, pontua que, apesar de denominado sindicância, o procedimento deve ser tratado como processo disciplinar [10], porquanto só deste pode resultar aplicação de penalidades, em vista do caráter acusatório do feito e da obrigatória incidência nele dos princípios da ampla defesa e do contraditório, taxando de inconstitucionais quaisquer dispositivos estatutários que dispensarem a exigência. Léo da Silva Alves [11] anota que a sindicância da qual pode brotar punição, a despeito da denominação que se lhe confira, é verdadeiro processo administrativo, como tal sujeita às garantias deste. José Raimundo Gomes da Cruz [12] endossa a tese, juntamente com Diógenes Gasparini [13], que destaca: " na esfera federal, a sindicância é, na realidade, processo administrativo disciplinar". Em sua excelente tese de doutorado, Romeu Felipe Bacellar Filho [14] pondera que " a possibilidade de aplicação de sanções disciplinares como resultado da sindicância converte-a em processo, com a exigência da presença do contraditório e da ampla defesa".
Uma vez com natureza de processo administrativo, inevitável a conclusão de que a sindicância apenadora deverá observar os mesmos contornos constitucionais daquele, eis que adstrita aos ditames da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LV, CF 1988; arts. 143, caput; 153 e 156, caput, L. 8.112/90), do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF 1988), como sedimentado pelo Supremo Tribunal Federal [15], pelo Superior Tribunal de Justiça [16] e pela doutrina [17], e, em particular, do juiz natural ou do administrador competente, por cujo efeito a Administração Pública deverá respeitar as franquias constitucionais e legais deferidas ao sindicado acusado, no que tange à composição dos colegiados processantes, órgãos de instrução com competência e requisitos de formação previstos em lei, em nome dos postulados da imparcialidade e isenção (art. 150, caput, L. 8.112/90). Romeu Felipe Bacellar Filho [18] asserta: " O princípio estende-se obrigatoriamente à autoridade que desempenha o ofício da acusação; à autoridade que conduz o processo ou, na acepção técnica, detém competência instrutória". Nisso reside o grande valor de que o princípio do administrador competente se aplique não apenas à autoridade que julga e instaura o processo, mas ainda sobre os órgãos coletores da prova e do processamento da sindicância, dado o caráter decisivo da atividade probatória para o desfecho do procedimento punitivo, porquanto nela deverá basear-se o julgamento.
Sempre pertinente, Romeu Felipe Bacellar Filho [19] sublinha a aplicabilidade do princípio do juiz natural no processo administrativo (no disciplinar e na sindicância apenadora) por entender que, quando a Constituição Federal consagra (art. 5o., incisos XXXVII e LIII) as garantias de que "não haverá juízo ou tribunal de exceção" e de que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente", o texto da Carta se harmoniza tanto com a idéia de juízo administrativo, presente e instaurado no julgamento do processo administrativo disciplinar, como com o termo tribunal, que pode ser estendido a colegiados administrativos e outros órgãos não judiciais, como o Tribunal de Contas. Agrega que processado engloba o processo administrativo disciplinar, por força da expressa previsão constitucional de contraditório e ampla defesa na sede administrativa (art. 5o., LV, CF 1988), além de que autoridade competente desborda da instância judicial e alcança a esfera do processo administrativo e a competência para seu processamento e julgamento. Demarca que a hermenêutica proclama o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, adotando-se o sentido que maior eficácia lhes dê, sobretudo em se cuidando de garantias individuais.
E o que é o princípio do juiz natural na esfera administrativa, também nominado de princípio do administrador competente? Marcos Porta [20] doutrina que dele dimana a idéia de que o administrador natural é aquele cuja competência para processar e julgar o processo administrativo é previamente determinada pelo ordenamento jurídico, antes mesmo da ocorrência do fato. Lúcia Valle Figueiredo [21], ponderando pela incidência do postulado do juiz natural na esfera administrativa em razão do próprio princípio do devido processo legal, refere que administrador competente é " aquele dotado de competência para processar e julgar o processo administrativo", igual juízo de Elizabeth Maria de Moura [22]. Fábio Medina Osório [23], a seu turno, enuncia que o reflexo do princípio do devido processo legal no procedimento administrativo é a garantia de " resolução motivada pela autoridade competente".
Assim sendo, revela-se como tema da maior relevância para o direito administrativo, por representar uma das garantias asseguradas aos servidores públicos investigados e processados, o da competência dos órgãos processantes e respectivos membros de sindicância punitiva, haja vista que, ao final do procedimento (art. 145, II, L. 8.112/90), poderá resultar a inflição de penalidades administrativas de advertência ou suspensão de até 30 (trinta) dias ao sindicado.
Cediço que nenhum agente público, sob pena de invalidade de sua atuação, pode praticar ato para o qual não seja competente, porquanto encimada a competência como requisito primeiro de validade dos atos administrativos, maiormente em sede de procedimento de exercício do poder disciplinar da Administração Pública, como é o caso da sindicância da qual possa resultar punição, na medida em que a lei colima empenhar ao servidor acusado a garantia de que será processado por conselho sindicante isento e imparcial (art. 149, § 2º., c.c. art. 150, caput, da L. 8.112/90), imbuído da decisiva função de coleta de provas (art. 155, L. 8.112/90) e de apreciação delas ao final dos ofícios processuais para formação de juízo acerca da responsabilidade administrativa ou inocência do sindicado, em vista da proposta de julgamento a ser submetida à autoridade julgadora no relatório (art. 165, caput e §§ 1º. e 2º., L. 8.112/90).
Efetivamente, dispõe a Lei 8.112/90:
" Art. 149. O processo disciplinar será conduzido por comissão composta de três servidores estáveis designados pela autoridade competente, observado o disposto no § 3º do art. 143, que indicará, dentre eles, o seu presidente, que deverá ser ocupante de cargo efetivo superior ou de mesmo nível ao do indiciado.
§ 2º Não poderá participar de comissão de sindicância ou de inquérito, cônjuge, companheiro ou parente do acusado, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral até o terceiro grau".
O preceptivo legal é expresso: a sindicância punitiva não poderá ser processada senão por comissão, trio disciplinar, o órgão natural competente para praticar atos no procedimento apenador, incidindo, nesse particular, o princípio do administrador competente ou natural. Daí que inválido o processamento de sindicância apenadora por sindicante singular. Para aplicar penalidade administrativa em sindicância, imperioso seja constituído conselho sindicante (art. 149, § 2º, L. 8.112/90), por força do princípio do juiz natural (art. 5º, XXXVII, LIII, CF 1988), que se reflete sobre o processo administrativo e a sindicância disciplinar no sentido de que ninguém será processado nem julgado senão pela autoridade competente – o órgão administrativo competente, que é, repita-se, o colegiado disciplinar, não o sindicante singular.
José Armando da Costa [24], arrimando-se na dicção literal do dispositivo em apreço, sufraga o entendimento de que a sindicância punitiva sempre deverá ser processada por comissão. Romeu Felipe Bacellar Filho [25] adere ao posicionamento para pontificar que a prática dos ofícios processuais da sindicância punitiva por meio de colegiado disciplinar é corolário da incidência do princípio do juiz natural no procedimento, identificando o trio sindicante com a comissão de inquérito em virtude da natureza jurídica de processo administrativo disciplinar da sindicância apenadora. Edmir Netto de Araújo [26], de igual modo, encampa o ensinamento de que, no sistema da Lei federal 8.112/90, " a sindicância será realizada por comissão" .
É o quanto se depreende da exegese do texto do art. 149, § 2º, da Lei 8.112/90. Por que o legislador se refereria a um conselho sindicante, inserindo a regra nos dispositivos alusivos ao processo administrativo disciplinar, se a sindicância pudesse ser conduzida por autoridade singular?
Léo da Silva Alves [27] alinha que a validade dos atos administrativos pressupõe a competência de quem os pratica em sede de processo administrativo disciplinar, especialmente de quem colhe a prova, menção do doutrinador à qualidade de juiz da instrução própria do colegiado na sindicância punitiva. Calha, nesse ponto, a memorável lição de Hely Lopes Meirelles [28]:
" Para a prática do ato administrativo, a competência é a condição primeira de sua validade. Nenhum ato – discricionário ou vinculado – pode ser realizado validamente sem que o agente disponha de poder legal para praticá-lo. Entende-se por competência o poder atribuído ao agente da Administração para o desempenho específico de suas funções. A competência resulta da lei e por ela é delimitada. Todo ato emanado de agente incompetente, ou realizado além do limite de que dispõe a autoridade incumbida de sua prática, é inválido, por lhe faltar um elemento básico de sua perfeição, qual seja, o poder jurídico para manifestar a vontade da Administração. Daí a oportuna advertência de Caio Tácito de que ´não é competente quem quer, mas quem pode, segundo a norma de Direito".
É atividade administrativa vinculada a nomeação de quem deverá oficiar como juiz da instrução na sindicância apenadora: o órgão processante do feito será necessariamente um colegiado, não sindicante singular, ex vi legis (art. 149, § 2o., L. 8.112/90). A discricionariedade da autoridade administrativa instauradora do procedimento restringe-se à indicação dos servidores estáveis, não sujeitos a causas de impedimento ou suspeição, que integrarão o conselho disciplinar. A mera designação ilegal de sindicante único pela autoridade competente para instaurar o feito não tem o condão de prorrogar a competência, ainda que o agente nomeado venha a principiar ou mesmo encerrar atos instrutórios, visto que a competência não pode ser alterada ou modificada ao alvedrio de quem quer que seja, senão por força de lei. Nem se poderia admitir que, por essa via indireta, fosse diretamente violada a garantia legal dos acusados quanto ao órgão competente para processá-los. Por sinal, a própria Lei 9.784/99 (regula o processo administrativo da União) capitula que " a competência se exerce pelos órgãos administrativos a que foi atribuída como própria" (art. 11). Marcelo Caetano [29] corrobora: " Cada órgão só tem os poderes que a lei lhe confira, expressa ou implicitamente. A competência vem sempre da lei". Maria Sylvia Zanella Di Pietro [30] salienta que a competência é inderrogável, mesmo pela vontade da Administração. José dos Santos Carvalho Filho [31] assinala: " Os atos só podem considerar-se legais se emanarem do órgão ou agente competente".
A competência é tema cardeal no direito administrativo por condicionar a validez dos atos administrativos editados, na medida em que nenhum servidor pode agir em nome da Administração Pública sem ser competente, o que se irradia na questão da atividade de processar sindicância punitiva, deferida por lei a comissão, não a sindicante singular. O imperativo (art. 149, § 2o., L. 8.112/90) dimana da feição jurídica da sindicância apenadora enquanto autêntico processo administrativo disciplinar. Por esse motivo que a Lei 8.112/90 tratou da sindicância punitiva no capítulo do processo disciplinar, delimitando a competência para processamento do feito sindicante por tríade disciplinar e declinando as causas de impedimento dos respectivos membros, paralelamente às da comissão de inquérito.
José Cretella Júnior [32] ensina que (negrito não original): " a comissão processante desempenha papel de relevo no processo administrativo e o maior cuidado deve cercar-lhe todos os aspectos. Sendo incompetente a Comissão de Inquérito, deve ser anulado o processo administrativo que serviu de base para a aplicação de pena disciplinar".
E não é debalde a advertência do administrativista consagrado. Consigne-se que o problema da competência de colegiado para desempenho do ofício instrutório em sindicância punitiva e em processo administrativo disciplinar não radica em questão meramente formal, ainda que não se possa, em absoluto, relegar a segundo plano o preceito da competência para fins de exame da validade da prática de atos administrativos, menos ainda quando editados em sede de processo punitivo desenvolvido no seio da Administração Pública, eis que sob a égide de princípios e garantias constitucionais e legais. A Administração Pública está jungida ao princípio da legalidade (art. 37, caput, Constituição Federal de 1988; art. 2º, caput, L. 9.784/99), inclusive no que concerne à outorga de poderes para processamento de apuratório sindicante a quem de direito, mesmo porque a lei estatui que o processo administrativo será informado pelo critério de atuação conforme a lei e ao direito e de observância das formalidades de garantia dos direitos dos administrados (art. 2º., par. único, I e VIII, L. 9.784/99).
Ademais, a idéia da observância do princípio do administrador competente ou do juiz natural, no âmbito da sindicância punitiva, prende-se à compreensão do fundamental papel desempenhado pelo conselho processante nos atos processuais, tal como emoldurado no sistema da Lei federal 8.112/90. Compete-lhe, com efeito, colher todas as provas no curso do procedimento [33] e apreciá-las, oportunizando o desforço de defesa ao acusado para, ao final dos trabalhos, propor, se o caso, a imposição de penalidade disciplinar à autoridade administrativa competente para o julgamento. Mais que consabida a importância dos opinativos dos conselhos disciplinares para a formação do juízo decisório do processo, a despeito da vigência do princípio do livre convencimento do julgador também na esfera administrativa.
Considerando a qualidade do conselho sindicante como órgão com competência para proceder a instrução do procedimento e propor relatório final com juízo conclusivo sobre a imposição de penalidade ao sindicado, dessume-se que o princípio do juiz natural se reflete com o efeito de assegurar ao processado em sindicância que o juízo acerca da prova colhida em torno dos fatos de que é acusado seja exercitado por uma comissão sindicante, composta por três membros independentes, isentos e imparciais, tendo a Lei 8.112/90 adotado a pressuposição de que há maior segurança jurídica e alcance da justiça com o convencimento de tríade do que a apreciação por sindicante único, máxime quando se percebe a viciosa interferência da autoridade instauradora sobre o agente solitário designado, mais passível de pressões, quando não atua já com caminhos traçados ou busca angariar simpatia ou promover-se na carreira às duras penas que proponha como algoz dos sindicados, abusos recorrentes na Administração Pública brasileira que o sistema legal visou a coibir por intermédio da competência de colegiado independente, livre para formar opinião sobre a responsabilidade ou não do acusado, de molde a empenhar a observância do princípio da impessoalidade e da moralidade no processo administrativo com efetividade.
Carlos S. de Barros Júnior [34] encarece que os colegiados disciplinares prestam-se a garantir uma apuração imparcial, alheia à condescendência ou arbítrio das autoridades hierárquicas superiores, concorrendo para a acertada repressão das faltas disciplinares, com a aplicação de penas justas e adequadas, sublinhando que a oitiva de comissões consubstancia " garantia de justiça para os acusados e de acertada repressão por parte do poder público".
A importância da independência e imparcialidade real do exame da responsabilidade do acusado em sindicância ou processo disciplinar por tríade processante foi considerada de tal monta que o colendo Superior Tribunal de Justiça proferiu julgado ultra legem no sentido de que as exigências de qualificação de nível hierárquico do presidente da comissão se estenderiam também para os demais membros vogais, a bem do efetivo concurso colegial na consideração da responsabilidade administrativa do processado (5ª. Turma, RESP 152224/PB, DJ 7/8/2000, p. 126, RSTJ vol. 137, p. 564, relator o Ministro Jorge Scartezzini), em acórdão desta forma ementado: " ADMINISTRATIVO - RECURSO ESPECIAL - PROCURADOR AUTÁRQUICO – PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR - COMISSÃO - CONSTITUIÇÃO IRREGULAR (ARTS. 149, C/C 150, LEI 8.112/90) - NULIDADE. 1 - É nulo o processo administrativo disciplinar cuja comissão seja constituída por servidores que, apesar de estáveis, não sejam de grau hierárquico superior ou igual ao indiciado. Preserva-se, com isso, o princípio da hierarquia que rege a Administração Pública, bem como a independência e a imparcialidade do conselho processante, resguardando-se, ainda, a boa técnica processual. Inteligência dos arts. 149 e 150, ambos da Lei nº 8.112/90, com as alterações trazidas pela Lei nº 9.527/97".
Apesar desse entendimento do Tribunal não ser majoritário devido à superveniência de decisões suas no sentido de restringir a exigência de qualificação hierárquica superior só ao presidente do colegiado processante, não aos demais membros, tem-se que o legislador federal não andou bem ao limitar o quesito apenas a um dos integrantes do conselho, haja vista que o próprio sistema legal é, como predito, de proporcionar ao acusado a garantia de não somente ser julgado por autoridade imparcial e isenta, mas ainda de que a formação do juízo em torno de sua responsabilidade administrativa seja proferida por um órgão colegial independente, composto por servidores estáveis, desimpedidos e insuspeitos, os quais colherão com liberdade as provas do fato apurado e deferirão oportunidade de defesa prévia ao sindicado para só depois concluir pela culpabilidade ou inocência do processado e, por fim, formular proposta de julgamento à autoridade administrativa competente.
Cumpre agregar que o estatuto colima seja formado juízo acerca da responsabilidade administrativa do acusado pelo concurso de vontades de três servidores, cada qual em condições reais de proferir seu juízo de valor isento e imparcial sobre os fatos apurados, o que pode restar prejudicado em face do grau hierárquico ou de escolaridade inferior dos vogais em face do sindicado, porquanto se pode chegar a um controle técnico da vontade do colegiado pela pessoa do presidente, em virtude de sua supremacia intelectual ou profissional sobre os outros dois membros subalternos ou inferiores na escala funcional ou hierárquica, como se vê no caso, por exemplo, de suposto erro de técnica cirúrgica cometido por médico servidor público, processado por tríade disciplinar composta por outro médico e dois auxiliares de enfermagem ou atendentes hospitalares. Mais que evidente que a dupla de profissionais de nível inferior não ostenta, à míngua de conhecimento científico exigido, condições técnicas de apreciar se os atos médicos praticados constituem ou não uma imperícia profissional, configuradora de infração disciplinar. Do mesmo modo se constata na hipótese de colegiado sindicante, integrado por funcionários sem habilitação jurídica, constituído para apurar suposta infração disciplinar consubstanciada em atos praticados por Procurador do Estado no exercício de suas funções, ilícito administrativo cuja análise implica o exame do conteúdo das peças processuais ou de atos privativos de advocacia.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro [35] ressalta que a apuração disciplinar por intermédio de comissões colima salvaguardar maior imparcialidade na instrução do processo, em vista de que o colegiado se põe como órgão estranho entre o funcionário e o superior hierárquico. Idêntico o escólio de Ernomar Octaviano e Átila J. Gonzalez [36], os quais consignam o destacado papel dos colegiados sindicantes com membros dotados de espírito de justiça e isenção como forma de coibir interferências políticas e injunções tendenciosas prejudiciais à investigação e tendentes a distorcer julgamentos futuros.
Conclui-se, do quanto exposto, que a sindicância de que resulta punição ao servidor, por força de lei (art. 149, § 2o., L. 8.112/90) e do princípio constitucional do juiz natural no âmbito administrativo (administrador competente), deverá ser instalada e processada por comissão, trio disciplinar, e não por autoridade sindicante, sob pena de reconhecimento de vício de competência no processamento por agente único, a determinar declaração de nulidade do feito, em caráter insanável, inclusive com a anulação de pena eventualmente imposta, por se ultimar violação de garantia do devido processo legal do servidor acusado quanto às regras subjetivas processuais próprias do procedimento punitivo.