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Ainda sobre a carta-protesto: comentários sumários sobre sua aplicação prática

13/04/2021 às 14:30
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A carta-protesto não pode ser um biombo da responsabilidade do transportador pelos danos causados, mas há de ser instrumento de proteção da vítima, do credor insatisfeito.

Mais uma vez escrevo sobre a carta-protesto, também conhecida como protesto do recebedor. Sem dúvida alguma, protagonista de acalorados debates e alvo de especial interesse do Direito de Transportes e do Direito de Seguros.

Resolvi comentar os artigos do Código Civil que tratam do contrato de transporte e, entre eles, com especial interesse, o que regula a carta-protesto. O comentário é enxuto, objetivo e eminentemente prático, voltado mais ao exercício diário do que ao engrandecimento acadêmico.

Não que o segundo seja menos importante que o primeiro, mas é neste que tento ajudar todos os que enfrentam o tema cotidianamente, não raro de forma acidentada, e com enormes reflexos no seguro de transportes e na responsabilidade civil.

Vejamos:

Art. 754. As mercadorias devem ser entregues ao destinatário, ou a quem apresentar o conhecimento endossado, devendo aquele que as receber conferi-las e apresentar as reclamações que tiver, sob pena de decadência dos direitos.

Fala-se, aqui, da carta-protesto, também conhecida como protesto do recebedor.

O recebedor, que não precisa ser necessariamente o consignatário da carga, tem que externar seu inconformismo oportunamente. Quando não o faz, fala-se em decadência de direitos.

Entendemos, em boa-fé, que a decadência de direitos não é absoluta. Se o recebedor – seja quem for – não externar o inconformismo imediatamente, ela não se operará se houver algum outro meio probatório do incumprimento da obrigação de transporte.

Seria contraditório e até antijurídico falar em decadência por ausência de carta-protesto diante de comprovação efetiva e idônea da responsabilidade do transportador. A forma não pode se sobrepor à substância, jamais. Nem a regra legal ser interpretada e aplicada para afrontar o direito e a justiça.

O interessado perderá a presunção legal de responsabilidade em caso de não apresentação tempestiva da carta-protesto, não o direito em si, se – e somente se – conseguir provar a responsabilidade do transportador por algum outro meio.

Haverá nova inversão da carga dinâmica da prova, de tal modo que não deverá mais o transportador provar a existência de alguma causa legal excludente da sua presunção legal de responsabilidade por faltas ou avarias, mas o interessado é que tem o ônus da provar o dano.

A regra é rigorosa, de fato, mas não pode de modo algum corromper a verdade fenomênica, nem beneficiar o causador de danos, o protagonista de ato ilícito. Interpretar de forma literal a decadência de direitos seria o mesmo que lesar a vítima uma segunda vez.

A inexistência de ressalva, formal e tempestiva, será efetivamente causa de decadência de direitos e aproveitará corretamente ao transportador se o interessado não demonstrar incontroversamente a responsabilidade do transportador.

Também por isso que a jurisprudência, desde antes do Código Civil de 2002, quando a carta-protesto era regulada pelo antigo sistema processual civil, entende que a carta-protesto pode ser caracterizada por qualquer documento emitido por terceiros quando do desembarque da coisa.

Assim, documentos como o Termo de Faltas e Avarias, o Mantra e o Boletim de Ocorrência fazem regularmente as vezes do protesto do recebedor.

É verdade que um terminal de cargas ou um depositário aeroportuário emitem os referidos documentos em defesa dos seus próprios e legítimos interesses, e é fato que o Boletim de Ocorrência objetiva registrar ato-fato jurídico relevante, mas não é menos verdade que todos podem e devem valer como cartas-protesto, porque comprovam a ilicitude obrigacional no calor dos fatos.

Todos tratam de registros fiéis dos danos logo após o desembarque ou durante a execução da obrigação de transporte, de tal forma que não é razoável negar-lhes a força da previsão do art. 754.

Em caso de transporte internacional, a carta-protesto só pode ser exigida se a obrigação tiver que ser cumprida no Brasil, ou seja, em importação. O artigo não projeta efeitos jurídicos no exterior e, portanto, sua ausência ou de instrumento equivalente em outro país não prejudica o contratante ou o dono da carga.

Uma casuística importante é a que envolve o segurador sub-rogado no direito original do dono da carga. Se litigar contra o transportador faltoso e porventura não houver a caracterização da carta-protesto, o direito de regresso persistirá normalmente, não se cogitando qualquer prejuízo, decadência, porque o art. 754 não lhe é oponível.

O segurador até pode recusar o pagamento de indenização de seguro ao segurado que não houver providenciado tempestivamente a carta-protesto, que não cuidou de obter algum meio de prova da responsabilidade civil do transportador, mas no momento em que paga em boa-fé a indenização de seguro tampouco pode ver prejudicado seu direito de regresso por causa de algo fora do seu domínio fático.

Cabe sempre lembrar que o direito do segurador sub-rogado, o grande protagonista dos litígios de responsabilidade civil de transportadores de carga, não deriva do contrato de transporte inadimplido, mas da constatação de um dano, do pagamento da indenização de seguro, da sub-rogação legal.

Exigir a regra do art. 754 contra o segurador sub-rogado é exigir algo de alguém que nada pode fazer previamente em defesa dos seus legítimos direitos e interesses; é comprometer a saúde do negócio de seguro e prejudicar diretamente o colégio de segurados que forma o mútuo e acompanha sempre o segurador.

Esta afirmação se ancora na jurisprudência.

O Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que a regra do art. 754 do Código Civil não se aplica ao segurador sub-rogado, mas apenas ao proprietário da carga:

Apelação nº 1092486-85.2017.8.26.0100

Ementa: Ação regressiva. Transporte de mercadorias. Ocorrência de avarias nos produtos transportados. Decadência prevista no artigo 754 do Código Civil que não atinge as seguradoras. Incidência do disposto no artigo 1.013, parágrafo 4º do CPC. Responsabilidade civil da transportadora. Não caracterização. Recurso desprovido. 

No tocante ao contrato de transporte incide o disposto no artigo 754, caput e parágrafo único, do Código Civil que dispõem o seguinte:

As mercadorias devem ser entregues ao destinatário, ou a quem apresentar o conhecimento endossado, devendo aquele que as receber conferi-las e apresentar as reclamações que tiver, sob pena de decadência dos direitos.

Parágrafo único. No caso de perda parcial ou de avaria não perceptível à primeira vista, o destinatário conserva a sua ação contra o transportador, desde que denuncie o dano em 10 (dez) dias a contar da entrega”.

Vê-se, e claramente visto, que o disposto no artigo 745 do CC refere-se ao destinatário da carga, não sendo, portanto, aplicável em relação à seguradora.

Há entendimento deste E. Tribunal, no sentido de que a decadência prevista no artigo 754 do Código Civil não atinge as seguradoras:

“AÇÃO REGRESSIVA - CONTRATO DESEGURO - RESSARCIMENTO DE INDENIZAÇÃO PAGA A SEGURADA CONTRA O CAUSADOR DO DANO – SUBROGAÇÃO EM TODOS OS DIREITOS DA SEGURADA -

DECADÊNCIA - Sentença que reconheceu a decadência do direito, diante da falta de protesto específico no prazo de 10 dias. NÃO OCORRÊNCIA: O parágrafo único do artigo 754 do Código Civil é claro ao determinar que é o destinatário final da mercadoria quem deve denunciar o dano em dez dias a contar da entrega para assegurar seu direito de ação contra o transportador e não a seguradora. Decadência afastada - Sentença anulada.

RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO” (cf. Apel. 0028727-54.2008.8.26.0562, Comarca de Santos, 37ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Israel Góes dos Anjos, j. em 28-6-2012).

Portanto, afastada a decadência, não há óbice à análise do mérito, como permite o art. 1.013, § 4º, do CPC, uma vez que o processo está devidamente instruído.

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Nota-se pela decisão acima parcialmente reproduzida, que se reporta a outra, que a jurisprudência de fato ampara o entendimento de o segurador não se submeter aos termos do contrato de transporte, tampouco ao rigoroso art. 754.

Reconhecemos que muita tinta será consumida no debate sobre a carta-protesto, mas acreditamos que as posições aqui assumidas são corretas e merecem ser defendidas.

Em suma:

  1. A regra da carta-protesto há de ser interpretada com especial cuidado, sendo relativa à decadência de direitos prevista em seu “caput”.
  2. Tem poderes para efetuar a ressalva qualquer pessoa com legítimo interesse na obrigação de transporte.
  3. Não se falará em decadência de direitos se houver algum outro meio de prova atestando idoneamente a responsabilidade civil do transportador por incumprimento da obrigação de transporte e/ou danos na coisa que lhe foi confiada.
  4. Documentos emitidos por terceiros, como o Termo de Faltas e Avarias, o Mantra e o Boletim de Ocorrência fazem regularmente as vezes da carta-protesto, satisfazendo assim ao caput do art. 754.
  5. Não se exige do segurador sub-rogado a carta-protesto em litígio contra o transportador de carga causador de dano (o que não significa que o segurador não possa exigir do segurado, dono da carga, a emissão do protesto contra o transportador a fim de não prejudicar o direito de regresso nem o seu próprio, de indenização de seguro).
  6. Em transportes internacionais, a carta-protesto só é exigível quando a obrigação de transporte tiver que ser cumprida no Brasil, ou seja, caso de importação.
  7. A carta-protesto apresentada contra um dos atores da cadeia de transportes aproveita a todos. Basta que um seja protestado e todos os transportadores responsáveis também o serão quando solidária a responsabilidade.

E sobre o parágrafo único, comenta-se:

Parágrafo único. No caso de perda parcial ou de avaria não perceptível à primeira vista, o destinatário conserva a sua ação contra o transportador, desde que denuncie o dano em dez dias a contar da entrega.

O prazo de dez dias para a apresentação da carta-protesto conta-se a partir da entrega da coisa a quem de direito. Ocorre que o legislador consignou esse prazo aos casos de perda parcial da carga ou de avaria não perceptível à primeira vista.

A pergunta que não quer calar: e em caso de perda total ou de avaria imediatamente perceptível?

Ao que parece, o legislador disse menos do que deveria. Daí a necessidade de sofisticada exegese, levando-se sempre em conta princípios importantes como proporcionalidade, razoabilidade, isonomia, equidade, entre outros.

Por mais que o art. 754 tenha natureza rigorosa, sua interpretação não pode favorecer o causador de dano, o devedor inadimplente. Deve proteger os legítimos direitos e interesses da vítima, do credor insatisfeito. Assim, repudia-se de plano qualquer interpretação no sentido de a apresentação da carta-protesto ser imediata, dentro de 24 horas, por exemplo. A omissão do legislador tem que ser abrandada, não agravada.

Diante disso, defendemos, convictamente, que se a perda for total ou a avaria perfeitamente perceptível à primeira vista, facilmente identificada, a carta-protesto será dispensável.

A obviedade comunga em benefício do interessado na perfeita satisfação da obrigação de transporte. Ou se pensa desse modo ou se entende que o prazo de dez dias também se aplica nestas hipóteses e não apenas naqueles expressamente mencionadas no parágrafo.

Reiteramos que a interpretação tem que favorecer sempre a vítima do dano ou quem legalmente lhe fizer as vezes, jamais o causador. Interpretação gravosa e desfavorável ao credor insatisfeito ofenderia a ortodoxia jurídica e, mesmo, a ordem moral.

Em conclusão:

Diante do que exposto, é de se considerar que a regra do art. 754 é relativa, não absoluta, apesar de falar em decadência.

Levando-se em elevada consideração a interpretação e a aplicação sistêmica do Direito, só se poderá realmente falar em decadência se o dono da carga não puder mostrar de algum outro modo a responsabilidade do transportador pelo dano.

Pensar de modo diferente é colocar a forma acima da substância e apequenar princípios fundamentais do Direito, como os da proporcionalidade, equidade, isonomia, razoabilidade, todos vetores e inafastáveis quando do estudo de qualquer regra legal.

Nesse sentido a jurisprudência, que, mesmo antes da atual regra (art. 754), assim já dispunha em favor da primazia da substância e da ampla defesa dos legítimos direitos e interesses do credor insatisfeito, da vítima do dano ou do segurador sub-rogado.

Considerando a intersecção do Direito de Transportes e do Direito de Seguros, é absolutamente correto afirmar que o fato de a decadência prevista no art. 754 ser relativa, o dono da carga, ainda que por meio de interpostas pessoas, na condição de segurado (seguro de transportes) não está desonerado de apresentar o competente protesto contra o transportador.

Passou do tempo de se exigir do legislador a revogação do art. 754 do Código Civil, pelos transtornos que causa nas relações negociais, de transportes e de seguros, porque onera operações importantes para a economia do país e, quando indevidamente interpretado pelo Poder Judiciário, prejudica as vítimas de danos, beneficiando indevidamente seus causadores.

A carta-protesto não pode ser um biombo da responsabilidade do transportador pelos danos causados, mas há de ser instrumento de proteção da vítima, do credor insatisfeito.

Quando usado para proteger o transportador lesador, por muito que esteja comprovada sua responsabilidade, a carta-protesto perde todo o sentido e deforma a própria essência do Direito.

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Sobre o autor
Paulo Henrique Cremoneze

Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CREMONEZE, Paulo Henrique. Ainda sobre a carta-protesto: comentários sumários sobre sua aplicação prática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6495, 13 abr. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89738. Acesso em: 22 dez. 2024.

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