Você diria que um automóvel a 80 km/h viaja em alta velocidade? Sensato, você responderá: depende. Depende, por exemplo, das condições da estrada. Se bem pavimentada, sinalizada e sem curvas perigosas, 80 km/h não é uma velocidade alta. Agora, se for uma estrada de terra, com buracos e sem condições de visibilidade, 80 km/h pode significar um pesadelo.
Na segurança pública acontece algo semelhante. Você diria que a criminalidade num país a 23 homicídios/100 mil habitantes é alta? Se mantiver a sensatez, você responderá: depende. Depende, por exemplo, das condições socioeconômicas do país. Se for uma nação com ótimas condições educacionais, de saúde e sanitárias, de trabalho e renda, moradia, 23 homicídios/100 mil habitantes representa um pesadelo. Por outro lado, se o país tem péssimas educação, saúde etc, então aquela taxa pode até ser alta, mas é compatível com a situação.
A ONU diz que mais de 10 homic/100 mil hab representa criminalidade endêmica, o que induz países a tentarem reduzir taxas de homicídios sem atentarem para condições socioeconômicas internas.
Se você for o condutor do automóvel e pretender manter o carro viajando a 80 km/h na estrada precária, você será candidato a ver o veículo se desmanchar, soltando parafusos e peças, e a sofrer um acidente. Da mesma maneira, se a polícia for chamada a manter a criminalidade abaixo dos 10 homic/100 mil hab num país com preocupantes índices educacionais, de saúde etc, ela também se submeterá a perigos. A tentativa de manter a criminalidade aquém do compatível com o país fará com que a polícia incida em riscos, especialmente o da prática de abusos, excessos policiais.
Para que o automóvel possa viajar a 80 km/h, das duas uma, ou o Estado melhora as condições de trafegabilidade, ou então se sujeitará a acidentes. De igual forma, para se ter a criminalidade abaixo dos 10 homic/100 mil hab, ou as condições socioeconômicas do país são melhoradas, ou então o esforço redundará em mais excessos policiais.
Ao volante do automóvel viajando pela estrada de terra você manteria o carro em velocidade compatível com as condições do terreno, certo? Pergunto, então, se você está entre os que acham que a criminalidade no Brasil deve ser inferior a 10 homic/100 mil hab, mesmo sabendo que esta taxa não é compatível com as deficitárias condições do país? Se a sua resposta é sim, você não está só. Ao seu lado estão alguns dos mais renomados especialistas em segurança pública que afirmam, dia e noite, sem qualquer relativização, que a criminalidade no Brasil é extremamente alta, que a polícia não cumpre seu papel, e fazem discursos falaciosos como o em prol da desmilitarização das PMs.
Vejo que você e seus companheiros perderam - momentaneamente, espero - a sensatez. Polícia, digo eu, existe para manter a criminalidade em patamar condizente com as condições do país. Se não forem melhoradas as condições educacionais, de moradia, de saúde, de emprego e renda etc, a criminalidade será mantida em nível com elas compatível, dura realidade a ser assumida, mas que muitos preferem não ver ou fingir que não sabem. Noutras palavras, cumpre à polícia apenas controlar a criminalidade, não solucioná-la.
O senso comum infelizmente, e por vezes também o pensamento da própria polícia, não é este. É por isso que excessos policiais são notícia diária na imprensa, a refletir o elevado grau de desconfiança da sociedade na polícia. Inadmitidos os abusos por serem ilegais, a polícia arrefece e a criminalidade recrudesce, num processo cíclico aparentemente infindável. Por isso, após anos e anos, a segurança pública no Brasil patina. Quanto mais a polícia é colocada no centro da solução da criminalidade e da violência, menos se avança rumo à efetiva resolução da questão: melhoria geral e paulatina das condições socioeconômicas do país.
Mas, para finalizar, por que então nos acostumamos a ver polícia como solução da criminalidade? Respondo: porque somos viciados em copiar modelos de países com boas condições socioeconômicas. Lá, como aqui, polícia é controle de criminalidade, e não solução. No entanto, como as condições socioeconômicas por lá são satisfatórias, fica a parecer que é a polícia quem soluciona os problemas de criminalidade. Além disso, no Brasil, tirar a solução do colo da polícia não dá voto, entendeu?