RESUMO:O presente artigo tem por objetivo propor a reflexão sobre a educação sexual na infância como um meio de prevenção e combate ao abuso sexual infantil. A construção do presente artigo se dará através da análise de dados obtidos como respostas de um questionário online, formulado em conjunto com profissionais da educação e da psicologia, tendo por base, ainda, estudos científicos anteriormente publicados com temas correlatos, doutrina e Legislação Brasileira aplicável. Trata-se da busca pelo entendimento da assimilação social acerca da necessidade da aplicação da educação sexual desde o ensino primário como forma de prevenção e combate ao abuso sexual infantil.
Palavras-Chave: Educação sexual. Família. Prevenção. Combate. Abuso Infantil.
1. INTRODUÇÃO
Pesquisar a educação sexual infantil em escolas em parceria com a comunidade familiar foi pensada no intuito de prevenir e combater atos de violência sexual contra crianças.
O abuso sexual é um crime que possui consequências físicas e psicológicas, deixando marcas para sempre na vida da vítima. Dessa maneira, faz parte dos objetivos gerais desta pesquisa, a necessidade de conscientizar as crianças de que seu corpo é inviolável, e desmistificar o conceito preexistente na sociedade de que a educação sexual se traduz em ensinar, de fato, a prática sexual para a criança, ou que a educação sexual irá despertar curiosidades antes do tempo considerado adequado.
O tema pode ser apresentado de forma sutil e natural, envolvendo família e escola, visando orientar e apresentar para as crianças as partes do seu corpo, quais são seus nomes, o porque que algumas delas não devem ser tocadas por outras crianças e por adultos além de seus pais e/ou responsáveis, sempre com respeito à faixa etária e utilizando-se de meios pedagogicamente adequados.
Como objetivos específicos incluem a aplicação da educação sexual na infância, visando proporcionar o aprendizado sobre o próprio corpo e a compreensão da importância da preservação e higienização do mesmo, além de trabalhar o diálogo com os pais e/ou responsáveis sobre qualquer tipo de violação, por menor que possa ser, possibilitando, assim a redução e o combate à violência sexual de crianças.
A criança deve ser capaz de reagir à eventual violação, pois poderá obter a compreensão de que “no meu corpo, não se toca sem a minha permissão". Sendo válido ressaltar, que a educação sexual deve ser considerada como responsabilidade tanto da escola quanto da família.
2. INFÂNCIA E EDUCAÇÃO INFANTIL
Antes do início da abordagem acerca da educação sexual na infância, é essencial conceituar e contextualizar o que é considerado criança pelo ordenamento jurídico brasileiro.
“A palavra infância, é originária do latim infantia e significa “incapacidade de falar” (MELLO, et al; 2013) sendo que o conceito de infância vem sendo construído ao longo da história, tratando-se ainda hoje, de uma palavra de difícil conceituação.
Considera-se criança a pessoa com até 12 anos de idade incompletos, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei n°8.069/90. Ariès(1973) retrata que no século 12, Idade Medieval, as crianças a partir dos 07 anos de idade, após tardio desmame, passavam a ser independentes de suas mães, ingressando no mundo adulto, e vivendo da forma como estes viviam, nas noites de jogos, e trabalhando como estes trabalhavam, como se fossem mini adultos. De acordo com Aline Melo, “quando as crianças eram representadas através de pinturas, elas eram frequentemente retratadas numa perspectiva de um adulto em miniatura.” (MELLO, et al; 2013)
Entre os séculos XV e XVII, na idade moderna, a preocupação com a educação foi tomando força, tornando-se essencial na sociedade. (ARIÈS, 1973). Já durante o século XX, na Europa, havia uma preocupação dominante em encaminhar as concepções sobre a infância a um estudo mais rigoroso. No período seguinte à Primeira Guerra Mundial, destacaram-se na psicologia e na pedagogia as idéias a respeito da infância como fase de valor positivo e de respeito à natureza. (OLIVEIRA, 2011. Pág.77).
No Brasil, aprovada em 1961, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional aprofundou a perspectiva apontada desde a criação dos jardins de infância com a sua inclusão no sistema de ensino. (OLIVEIRA, 2011. Pág 97 a 102). Além disso, determina em seu artigo 2°, a educação como dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tendo por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, reforçando o dever do Estado e da família em promover o acesso das crianças à educação, sendo esta uma forma de desenvolvimento saudável da criança.
Ressalta-se que a Constituição de 1988 prevê em seu artigo 208, inciso IV, a garantia da educação infantil em creche e pré- escola, até os 5 anos de idade, ou seja, de 0 (zero) aos 5 (cinco) anos de idade.
Ainda no artigo 205 da Constituição Federal, está descrito que além de dever do Estado, a educação é também um dever da família e da sociedade. No mesmo sentido, expressa-se o Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 4º, prevendo que a família, a sociedade em geral e o poder público tem o dever de assegurar com absoluta prioridade, o acesso das crianças aos direitos fundamentais que incluem a educação e a dignidade, baseando-se a presente discussão no segundo.
2.1 A educação como garantia do direito à dignidade humana
Segundo Barroso (2010), a dignidade da pessoa humana teve origem inicialmente no âmbito religioso, e após, com o surgimento do Iluminismo e a centralização do homem, este conceito migra para a filosofia, fundamentando-se na busca pela razão, e no século XX passa a ser um objetivo político e social. Após a 2ª Guerra Mundial, a dignidade humana começa então a fazer parte da esfera jurídica.
A dignidade humana é protegida no âmbito nacional através da Constituição Federal, e fundamenta o Estado Democrático de Direito (Art.1°, III, CF/88).
Vê-se que a expressão “dignidade humana” é de difícil conceituação, mas trata-se de garantia que visa proporcionar ao ser humano uma vida em que possa usufruir com liberdade e integridade de todos os seus direitos e deveres. Mencionada em incontáveis documentos, inclusive de alcance internacional, como constituições, leis e tratados, a dignidade da pessoa humana é um dos poucos e grandes consensos éticos do mundo ocidental e, embora possua inúmeras variações, remete a situações de discussão acerca do controle sobre o próprio corpo, direitos igualitários, exercício de crenças, limites científicos e limites a penalidades a serem aplicadas em condenações criminais, além da definição do que é considerado vida, e suas implicações.
Este Princípio Constitucional trata da valorização da pessoa humana de múltiplas formas, buscando a garantia do exercício dos direitos do ser social sem que haja a necessidade de termo específico como referência em cada campo de vida e convivência social. Embora amplo, é parte fundamental da construção do direito contemporâneo, desde o resguardo aos direitos fundamentais constitucionalmente protegidos até às relações internacionais advindas da globalização. Ressalta-se que embora não haja uma especificação do modo de aplicação deste princípio presente na Carta Magna brasileira, é inquestionável o dever de observar essa garantia em todas as decisões no âmbito judicial, em qualquer relação em âmbito público e particular, devendo ser resguardado os direitos individuais, desde físicos aos culturais.
O Estado, quando garante à educação desde o primeiro ano de vida, proporcionando o resguardo dos direitos constitucionalmente garantidos, promove a dignidade humana, sendo que a escola exerce um importante papel de complementação da educação infantil. Nas palavras de Pedro Goergen, percebe-se que a educação vem evoluindo conforme a sociedade, e a evolução é capaz de proporcionar melhorias na vida das crianças e consequentemente, nas novas gerações.
A educação, antes destinada a aprimorar a conformidade do ser humano com os desígnios divinos, passa a ser concebida como um instrumento de aprimoramento de uma racionalidade que seja capaz de, desvendando os segredos da natureza tanto humana, quanto material, alcançar uma vida melhor para o ser humano, aqui mesmo, na Terra.(GOERGEN, 2005, p. 59)
Os números mostram que o abuso sexual contra crianças vem aumentando desde 2018. De acordo com dados disponíveis no site do governo brasileiro, de 2018 para 2019, o aumento foi de 14%, um grande aumento, conforme demonstra dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde:
Dos 159 mil registros feitos pelo Disque Direitos Humanos ao longo de 2019, 86,8 mil são de violações de direitos de crianças ou adolescentes, um aumento de quase 14% em relação a 2018.
Com a crescente estatística de abusos sexuais cometidos contra crianças, é necessária a evolução no sentido de tratar o assunto de forma mais efetiva com as próprias crianças, de modo preventivo.
A proposta de incluir a educação sexual desde a infância tem o intuito de educar a criança a respeito de seu corpo e de suas características, levando-a a compreender os limites do contato físico com outras crianças e até mesmo com outros adultos. Isso extrapola o âmbito educacional, sendo relevante discussão com o objetivo de minimizar a ocorrência e a sensação de impunidade quanto aos crimes previstos no ordenamento jurídico brasileiro que visam a proteção da dignidade sexual pela ausência de informação àquelas que são as maiores vítimas, as crianças.
2.2 Senso comum acerca do tema
Para complemento deste estudo, foi realizada uma pesquisa via preenchimento de formulário com diversas pessoas com idades entre 14 e 67 anos, as quais terão suas identidades preservadas em sigilo.
Quando indagados com a seguinte pergunta: “Você poderia explicar resumidamente, a diferença entre as expressões "educação sexual" e "incentivo a sexualidade"?” - do total de respostas obtidas, aproximadamente 86.54% se manifestaram no sentido de traduzir a educação sexual como um meio de orientação acerca do corpo, entendendo ser o autoconhecimento um meio de proteção, e tratando o incentivo à sexualidade como uma forma de incentivar a criança à prática do ato sexual propriamente dito.
Com relação à pergunta: “Você considera interessante que as escolas infantis abordem assuntos relacionados à sexualidade e abuso sexual?” - aproximadamente 18,5% dos entrevistados se manifestaram total ou parcialmente contra, expressando que seria dever da família abordar este assunto, sendo que entre os entrevistados, 59,23% não possuem filhos e apenas 18,44% não possui convivência próxima com crianças. Dos que se manifestaram a favor, alguns reconhecem que essa tratativa desde a infância pode prevenir algumas situações de abuso, e que muitas vezes o abuso pode ocorrer no próprio seio familiar.
Das respostas obtidas, aproximadamente 36,89% dos entrevistados afirmaram que não abordaram com crianças assuntos como toques indevidos, e daqueles que apresentaram justificativas, algumas foram no sentido de que ainda não consideram o momento de abordar esse assunto, e outros entendem que essa abordagem é de responsabilidade das mães dos infantes.
Diversas respostas afirmativas quanto à concordância da prática da educação sexual, se manifestaram no sentido de que essa abordagem deve ser feita de uma forma lúdica, leve ou de forma adaptada para o fácil entendimento.
3. ABUSO NA INFÂNCIA
Atualmente, o termo abuso sexual é utilizado de forma ampla para classificar diversos atos de violação sexual em que não há manifestação ou possibilidade de consentimento da outra parte. Compõe o rol de atos que caracterizam esse tipo de violência a prática de atos sexuais que sejam forçados, dentre eles, os atos libidinosos, de forma a qual a vítima resta impossibilitada de discernir a prática do ato, ou que, não possa oferecer resistência.
A Childhood Brasil caracteriza Abuso Sexual como “toda forma de relação ou jogo sexual entre um adulto e uma criança ou adolescente, com o objetivo de satisfação desse adulto e/ou de outros adultos. Pode acontecer por meio de ameaça física ou verbal, ou por manipulação/sedução.”
No presente estudo, antes da análise direta da legislação aplicável, destaca-se que o bem juridicamente protegido face os crimes a serem mencionados, é a dignidade sexual, que é uma das ramificações protegidas pelo Princípio da Dignidade Humana, sob o objetivo da busca pelo respeito ao corpo humano, constituindo parte importante na formação da personalidade de qualquer indivíduo.
A dignidade sexual é um conjunto dos fatos e ocorrências que está ligada ao direito à inviolabilidade do próprio corpo, autoestima e intimidade da vida privada, estando diretamente ligada a sexualidade humana, ou seja, a vida sexual de cada um, independentemente de idade, raça, etnia, classe social, gênero ou qualquer forma de separação. Nesse sentido, é socialmente abominável a prática de qualquer tipo de constrangimento ilegal visando a prática de ato com conotação sexual.
A legislação brasileira prevê diversos crimes que atentam contra a dignidade sexual, porém, para o presente estudo considerando-se que o objetivo é o debate acerca da prevenção ao abuso sexual infantil, os crimes a serem abordados, para fins de fundamentação, são os que atentam contra a dignidade sexual dos infantes, quais sejam, o estupro de vulnerável, a corrupção de menores, e a satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente. O Código Penal prevê outros crimes que ferem a dignidade sexual do vulnerável, e que tratam de formas de abuso mediante exploração sexual do vulnerável, porém estes não serão objeto do presente estudo. Os crimes sexuais contra o vulnerável estão dispostos no Capítulo II, do Título VI do Decreto Lei 2848/40, Código Penal em vigência no Brasil.
3.1 Dos crimes sexuais contra o vulnerável
O Código Penal proíbe a prática de ato sexual por vulnerável, sendo estes os menores de 14 anos e o doente mental que não possua discernimento para a prática do ato, ou por algum motivo não possa oferecer resistência.
Vulnerável é qualquer pessoa em situação de fragilidade ou perigo. A lei não se refere aqui à capacidade para consentir ou à maturidade sexual da vítima, mas ao fato de se encontrar em situação de maior fraqueza moral, social, cultural, fisiológica, biológica etc. Uma jovem menor, sexualmente experimentada e envolvida em prostituição, pode atingir à custa desse prematuro envolvimento um amadurecimento precoce. Não se pode afirmar que seja incapaz de compreender o que faz. No entanto, é considerada vulnerável, dada a sua condição de menor sujeita à exploração sexual. Por esse motivo, não se confundem a vulnerabilidade e a presunção de violência da legislação anterior. São vulneráveis os menores de 18 anos, mesmo que tenham maturidade prematura. (CAPEZ, 2019. P. 157)
Entre os crimes sexuais contra o vulnerável, estão o estupro de vulnerável, cometido por aquele que pratica conjunção carnal ou ato libidinoso com menor de 14 anos; corrupção de menores, quando o sujeito induz menor de 14 anos a satisfazer lascívia de outrem - de acordo com PIMENTA (2016) lascívia é o “comportamento de quem apresenta uma inclinação para os prazeres do sexo, despudor; característica daquilo que está destinado à libidinagem ou do que possui uma inclinação para a sensualidade”, podendo ser conjunção carnal ou outro ato libidinoso; e satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente,
O tipo penal pune a ação de praticar, na presença de alguém menor de 14 anos, ou induzi-lo (convencê-lo, persuadi-lo, aliciá-lo, levá-lo) a presenciar conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem. Incrimina-se, dessa forma, a realização de conjunção carnal ou de ato libidinoso diverso, pelo agente com outrem, na presença de menor de 14 anos. Da mesma maneira, incrimina-se a ação de persuadir menor a assistir a prática da conjunção carnal ou outros atos libidinosos levados a efeito por terceiros. Em ambas as condutas típicas, não há qualquer contato corporal do menor com o agente ou com outrem. (CAPEZ, 2019. P. 172)
Observa-se, que conforme expressado por Capez, nesta modalidade, não há a necessidade de haver qualquer tipo de contato físico da vítima com o agente do delito ou com terceiro, bastando apenas que a vítima presencie a prática do ato mencionado.