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A proteção do consumidor em razão do fato e do vício do produto ou serviço

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21/10/2006 às 00:00
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O CDC encampou como fundamento da responsabilidade do fornecedor a teoria do risco da atividade: quem explora atividade com o potencial de gerar danos a outrem deve ser responsabilizado por tornar indenes as eventuais vítimas.

1. A RESPONSABILIDADE CIVIL NO CDC

A responsabilidade civil, tal como tratada no CDC, traz algumas peculiaridades em relação à regra geral do Código Civil; isso não quer dizer que não se apliquem aqui as mesmas regras que se aplicam lá a fim de se configurar a existência da responsabilidade.

Tanto no trato da responsabilidade contratual – "pelo vício do produto ou do serviço" – como da responsabilidade extracontratual – "pelo fato do produto ou do serviço" – estarão presentes os três elementos da responsabilidade: dano, ação ou omissão antijurídica (aqui identificada com a colocação no mercado de produto ou serviço viciado), e o nexo de causalidade entre eles.

O CDC encampou como fundamento da responsabilidade do fornecedor a teoria do risco da atividade (ou do empreendimento [1]), segundo a qual aquele que explora atividade com o potencial de gerar danos a outrem deve ser responsabilizado por tornar indenes as eventuais vítimas, independentemente de haver vontade do fornecedor em produzir o dano. Note-se que essa teoria foi adotada com certo tempero, pois há situações em que o elemento subjetivo é levado em conta pela lei.

"Este dever é imanente ao dever de obediência às normas técnicas e de segurança, bem como aos critérios de lealdade, quer perante os bens e serviços ofertados, quer perante os destinatários dessas ofertas. A responsabilidade decore do simples fato de dispor-se alguém a realizar atividade de produzir, estocar, distribuir e comercializar produtos ou executar determinados serviços. O fornecedor passa a ser o garante dos produtos e serviços que oferece no mercado de consumo, respondendo pela qualidade e segurança dos mesmos." [2]

1.1 A regra geral

A responsabilidade imposta pelo sistema do CDC é objetiva, independe de culpa. Basta a demonstração da existência de nexo causal entre o dano experimentado pelo consumidor e o vício ou defeito no serviço ou produto.

Esse tratamento legislativo reflete a adoção feita pelo legislador da teoria do risco do negócio, segundo a qual aquele que explora atividade econômica deve arcar com os danos causados por essa exploração, ainda que não tenha concorrido voluntariamente para a produção dos danos. [3]

Assim, a presença do aspecto subjetivo no elemento "ato antijurídico" do tripé da responsabilidade civil (ato antijurídico + nexo de causalidade + dano), mostra-se desnecessária, e nem mesmo chega a ser investigada para fins de apuração da responsabilidade do agente. Ainda que ele tenha pautado sua atuação com diligência, não incorrendo em culpa em momento algum, poderá vir a ser responsável pelo vício do produto ou serviço, ou ainda pelo acidente de consumo causado pelo produto ou serviço.

1.2 A exceção

Uma exceção é feita para a responsabilidade subjetiva: a responsabilidade extracontratual (por fato do serviço) dos profissionais liberais depende da demonstração da culpa (CDC 14, §4º). A responsabilidade contratual (pela adequação do serviço) é regulada pelo art. 20, onde não há referência a qualquer exceção em favor dos profissionais liberais; admitir que nos casos de descumprimento contratual a responsabilidade fosse subjetiva enquanto a extracontratual é objetiva seria um contra-senso. [4]

Esse "privilégio", de somente responder se demonstrado o elemento subjetivo, e essa é a posição prevalente na doutrina [5], limita-se à responsabilização pessoal do profissional liberal, não se estendendo às pessoas jurídicas formadas por eles. Divergente é posicionamento de Rizzatto [6], entendendo que "o que descaracteriza a atividade como liberal não é a existência da pessoa jurídica, simplesmente, mas a constituição de pessoa jurídica que passe a explorar a atividade que era de prestação de serviços liberais de maneira típica desenvolvida na sociedade de massa pelos naturais exploradores: escolha da atividade, exame de mercado, cálculo do custo, do preço, avaliação do risco, tendo em vista o binômio custo/benefício, prestação do serviço em escala e utilização dos instrumentos do marketing, especialmente a publicidade". De forma semelhante, Denari [7] entende que ficam fora da incidência do §4º as relações de consumo contratadas por adesão.

Porém, a doutrina não encontra um consenso ao definir quem é profissional liberal. Para Cavalieri Fº. [8] "é aquele que exerce uma profissão livremente, com autonomia, sem subordinação. Em outras palavras, presta serviço pessoalmente, por conta própria, independentemente do grau de escolaridade." Rizzatto [9] prefere defini-lo, sem, no entanto, fornecer parâmetros precisos, "pelas características de sua prestação de serviço e não pelo enquadramento na regulamentação legal".

É importante ressaltar que a exceção contida no §4º não quebra a regra da solidariedade entre os integrantes da cadeia produtiva – ainda que a sua responsabilidade dependa da demonstração de culpa, o profissional liberal segue solidariamente ligado àqueles que respondem objetivamente pelos danos causados ao consumidor.

Entendemos, outrossim, que a exceção inserida pelo §4º não autoriza a classificação das obrigações entre de meio e de resultado para fins de expandir o rol dos salvaguardados por esta regra. A lei somente faz referência aos profissionais liberais, e em momento algum menciona o tipo da obrigação. [10] Não obstante, a jurisprudência tem entendido que a partir do momento que o profissional liberal assume uma obrigação de resultado sua responsabilidade passa a ser objetiva; na verdade, seria mais correto fundamentar a responsabilidade nessas hipóteses como vinculação do fornecedor à oferta – CDC, art. 30 – e aí estamos dentro do campo da responsabilidade contratual (há descumprimento do avençado), que é sempre objetiva.

Cavalieri Fº. [11] entende que nas situações em que o profissional liberal assume obrigação de resultado a culpa é presumida, mas a responsabilidade segue sendo subjetiva. A conseqüência desse posicionamento é permitir ao fornecedor a possibilidade de se eximir da responsabilidade pela simples demonstração de inexistência de culpa.

É importante ressaltar, por fim, que esse tratamento diferenciado dado aos profissionais liberais se limita ao fundamento da responsabilidade, estando sujeitos da mesma forma que os demais fornecedores a todas as demais regras do CDC, tais como observância aos direitos básicos do consumidor (inclusive quanto à inversão do ônus da prova), práticas comerciais e proteção contratual do consumidor.

1.3 O dano indenizável

Os danos indenizáveis são todos aqueles sofridos pelo consumidor, sejam de natureza material ou imaterial – CDC, art. 6º, VI.

Entre os danos materiais estão os lucros cessantes (perda patrimonial já sentida) e os lucros cessantes (aquilo que deixou de auferir como conseqüência direta do ilícito).

Entre os danos imateriais temos o dano à imagem, o dano estético, e o dano moral. Este último é "aquele que afeta a paz interior de cada um. Atinge o sentimento da pessoa, o decoro, o ego, a honra, enfim, tudo aquilo que não tem valor econômico, mas que lhe causa dor e sofrimento. É, pois, a dor física e/ou psicológica sentida pelo indivíduo." [12]

Outrossim, a "pessoa jurídica não pode sofrer violação em sua honra, nem em sua intimidade. Não sofre, também, dano estético. Mas pode sofrer violação em sua privacidade, bem como dano à sua imagem. (...) como de resto pode ter sua imagem utilizada sem autorização (...)" [13].


2. RESPONSABILIDADE PELO FATO DO PRODUTO OU SERVIÇO

A responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço é extracontratual, não estando relacionada ao correto adimplemento do contratado. Como conseqüência disso, temos que poderá ser vítima do acidente de consumo não só aquele que contratou, mas qualquer um que tenha sofrido danos, materiais ou imaterias, em razão do evento – CDC, art. 17.

Cavalieri F°. [14] define o fato da produto como "um acontecimento externo, que ocorre no mundo exterior, que causa dano material ou moral ao consumidor (ou ambos), mas que decorre de um defeito do produto. Seu fato gerador será sempre um defeito do produto; daí termos enfatizado que a palavra-chave é defeito."

Rizzatto [15] também adverte que o fato do serviço pressupõe o defeitovício, segundo a terminologia que adota –, que por sua vez é uma característica intrínseca do produto.

Ressalte-se que defeito, ou vício, do produto, deve ser compreendido não apenas inerente ao produto em si, mas de forma mais abrangente como "os defeitos de concepção, os defeitos de fabrico ou os defeitos de informação" [16]. Assim, também poderá ser causa do fato do produto ou do serviço a informação ou a publicidade insuficiente ou enganosa [17] – Cavalieri F°. os denomina defeitos de comercialização.

2.1 A responsabilidade do fabricante, construtor, produtor, ou importador

Nas hipóteses do art. 12, a lei não responsabiliza indiscriminadamente o "fornecedor", mas somente algumas categorias do gênero fornecedor. Assim, ocorrendo acidente de consumo, a lei atribui a responsabilidade tão somente ao fabricante, ao construtor, ao produtor, e solidariamente, quando for o caso, ao importador. [18]

Na definição de fabricante, é importante sublinhar, que também estão abarcados os montadores, que utilizando produtos prontos criam um novo, e o fabricante aparente, encontrado sobretudo no campo das licenças de uso de marca comercial, como nas franquias – nessa situação, tanto o fabricante aparente como o real terão responsabilidade solidária pelos danos causados ao consumidor, tanto os contratuais como os extracontratuais. [19]

Rizzatto [20] acrescenta que também a oferta, a publicidade e a informação podem vir a causar danos no patrimônio do consumidor, se forem inadequadas, insuficientes, ou mesmo inexistentes ou inverídicas. Assim, expande-se a aplicação da responsabilidade extracontratual regulada pelo art. 12, do CDC, abrangendo também aqueles que veicularam a oferta, publicidade ou informação danosa.

É importante ainda ressaltar a lição de Rizzatto [21] de que quando a lei "designa o fabricante, o construtor e também o importador, está apontado apenas o responsável direito e, muito provavelmente, aquele a quem o consumidor lesado dirigirá seu pleito. Porém, os outros produtores envolvidos indiretamente não estão excluídos [arts. 7º e 25, §§1º e 2º]. São todos responsáveis solidários na medida de suas participações."

2.2 A responsabilidade do prestador de serviços

Na disciplina dos art. 14 e 20, que tratam da prestação de serviços não há diferença de tratamento na responsabilização pelo dano contratual ou extracontratual – o prestador será sempre o responsável.

Ainda que o serviço não seja propriamente "defeituoso", o dano que tenha origem no serviço poderá ser indenizável se for decorrente de defeito da informação – seja por inadequação, insuficiência ou inexistência.

No caso de haver uma cadeia de fornecedores, como nas situações de terceirização de serviços, ou de contratos coligados, o consumidor também poderá se prevalecer da solidariedade que se formará entre os prestadores de serviço. [22]

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2.3 A responsabilidade do comerciante

O comerciante será objetivamente responsabilizado sempre que se configurar uma das hipóteses do art. 13, do CDC: subsidiariamente, quando a identificação do construtor, produtor ou importador, for impossível, inexistente ou insuficiente (I e II); ou ainda solidariamente [23] quando não conservar adequadamente os produtos perecíveis (III) – havendo dúvida quanto ao momento da deterioração do produto, o melhor entendimento, no sentido de garantir a proteção do consumidor (art. 6º, VI), é defender a solidariedade entre todos os participantes da cadeia produtiva. [24]

Entendemos, outrossim, que permanece a possibilidade de o comerciante ser acionado diretamente, com base em responsabilidade subjetiva, nos casos não incluídos no referido artigo.

2.4 Excludentes da responsabilidade

Como a lei estabelece como regra a responsabilidade objetiva, sendo irrelevante o elemento culpa, não cabe a discussão da culpa do fornecedor na ocorrência do evento danoso.

Assim, cabe ao fornecedor demonstrar a inexistência do dano, do ato antijurídico, ou do nexo causal entre eles – por mais taxativo que possa parecer o rol do §3°, do art. 12, e §3°, do art. 14, [25] não é verdade que a lei não admite outras hipóteses para se excluir a responsabilidade do fornecedor; oras, demonstrado que não houve dano ou que não foi o fornecedor apontado quem praticou o ato antijurídico causador do dano, não há que se falar em responsabilidade, ainda que essas situações não estejam elencadas na lei.

Excluem a responsabilidade, por eliminarem o nexo de causalidade entre o dano resultante e a conduta do fornecedor, a culpa exclusiva do consumidor ou terceiro (estranho à relação de consumo [26]). Exclusiva apenas, pois se for concorrente, ainda assim haverá a responsabilidade do fornecedor pela integralidade do dano causado.

Outra situação que leva à irresponsabilidade é a demonstração por parte do fornecedor que o alegado defeito do produto ou serviço inexiste – em outras palavras, é a demonstração de que não foi praticado ato antijurídico pelo fornecedor.

Por fim, não há responsabilidade do fornecedor quando ele demonstra não ter colocado o produto no mercado. Por meio dessa disposição a lei cria uma presunção de que o fornecedor colocou seu produto no mercado. [27] Para Rizzatto [28] tal hipótese somente será configurada nos casos de falsificação do produto, não se admitindo a irresponsabilidade por produtos que tenham sido, p. ex., roubados das dependências do fornecedor – haveria aí culpa in vigilando. Tal situação não deve ser confundida com a ilegitimidade de parte, matéria processual, que existiria se, p. ex., o consumidor, com fundamento em defeito no produto da empresa A, acionasse empresa diversa, que não está inserida na cadeia produtiva do produto defeituoso.

É de se notar, porém, que o Código não menciona o caso fortuito e a força maior como excludentes da responsabilidade. Nery Jr. entende que nem o poderia fazer, ou derrubaria toda a sua coerência interna, visto que são situações que eliminam a culpa:

"O caso fortuito e a força maior não excluem o dever de indenizar porque são circunstâncias que quebram o nexo de causalidade na conduta do agente. Só são válidas para excluir a responsabilidade subjetiva, mas não a objetiva. Como o sistema do CDC é fundado na responsabilidade objetiva, não se aplicam, aqui, o caso fortuito e a força maior como excludentes do dever de indenizar. Caso fortuito e força maior excluem a culpa, elemento estranho e irrelevante para a fixação do dever de indenizar no regime do CDC." [29]

Ocorre que a colocação do caso fortuito ou de força maior como excludente da culpabilidade não encontra amparo entre os doutrinadores da área obrigacional, que dão solução diversa à questão.

Fernando Noronha apresenta essas situações como atuando sobre a relação de causalidade:

"(...) o caso fortuito ou de força maior poderá ser melhor caracterizado como sendo todo acontecimento inevitável e independente de qualquer atividade da pessoa de cuja possível responsabilidade civil se cogita, que constitui causa adequada do dano verificado.

Considerado nessa acepção, caso fortuito ou força maior é expressão sinônima de fato excludente da causalidade. Neste sentido, ele abrange três categorias diversas de excludentes: o fato de terceiro, o fato do lesado e o caso fortuito ou de força maior em sentido estrito." [30]

E acrescenta:

"Todos os fatos que caibam na noção de caso fortuito ou de força maior em sentido amplo, abrangendo o próprio fato do lesado e ainda o de terceiro, excluem o nexo causal entre o fato atribuído ao indigitado responsável e o dano ocorrido. Excluem a causalidade, não a culpa. A invocação do caso fortuito ou de força maior significa afirmar que o dano se ficou devendo a algo que por definição é independente da atuação, culposa ou não, da pessoa a quem em princípio ele era atribuído.

"Não é correta a afirmação, muito corrente, de que a ocorrência de caso fortuito ou de força maior exclui a culpa. A existência ou ausência de culpa diz respeito a um requisito da responsabilidade civil, o nexo de imputação (que aponta a pessoa a quem pode ser ligado um determinado fato gerador de danos, seja a título de culpa ou de risco), ao passo que a ocorrência ou não de caso fortuito ou de força maior, fato de terceiro ou fato do próprio lesado, diz respeito a outro requisito, o nexo de causalidade (que indica quais são os danos que podem ser considerados conseqüência do fato que esteja em questão). Aliás, em termos lógicos, a apuração do nexo de causalidade precede o juízo de imputação. Verificado um determinado dano, primeiro é preciso apurar qual foi a sua causa. Só depois de determinado o fato causador, levanta-se a questão de saber se este pode ser imputado a alguém." [31]

Ele faz a ressalva de que nas hipóteses que batiza de "responsabilidade civil agravada", não se exige a demonstração do nexo de causalidade "entre a atuação ou atividade desenvolvida pelo indigitado responsável e o dano ocorrido", "embora sempre se exija especial conexão entre a atividade e o dano, em termos tais que se possa considerar este como risco inerente, característico ou típico da atividade em questão" [32]. Mas aí, o autor entende que nem mesmo o fato de terceiro ou da própria vítima teriam o condão de excluir a responsabilidade.

Caio Mário também tende a colocar o caso ou fortuito ou de força maior fora do campo da culpa:

"A tese central desta escusativa está em que, se a obrigação de ressarcimento não é causada pelo fato do agente mas em decorrência de acontecimento que escapa ao seu poder, por se filiar a um fator estranho, ocorre a isenção da própria obrigação de compor as perdas e danos. Neste sentido é que alguns autores somente consideram como escusativa a força maior externa (Philippe Le Tourneau, Agostinho Alvim). Por tal razão, não se enquadram na força maior os fatos que sejam direta ou indiretamente inerentes a ela, como a ruptura dos freios do veículo, o furo do pneu ou o rompimento da barra de direção (Alex Weill e François Terré, Droit Civil, Les Obligations, nº 731, p. 740). Invocando a teoria inglesa da frustration, Malaurie e Aynès enunciam uma fórmula genérica para definir a força maior como um acontecimento irresistível, imprevisível e exterior (Droit Civil, Les Obligations, nº 477), conceito expendido também por Philippe Le Tourneau, Responsabilité Civile, nº 383, p. 157)." [33]

Mais adiante [34] o autor resume a posição de Agostinho Alvim, pertinente ao presente estudo:

"Agostinho Alvim, um tanto na linha de Colin e Capitant, vê no caso fortuito um impedimento relacionado com a pessoa do devedor enquanto que a força maior é um acontecimento externo (Da Inexecução das Obrigações, nº 208). Daí extrai conclusões de ordem prática: na teoria da culpa o caso fortuito exonera o agente, e com maioria de razão a força maior o absolverá. Para os que se atêm à doutrina do risco, o simples caso fortuito não exime o agente. Somente estará liberado este se ocorrer o acontecimento de força maior, ou seja, ‘o caso fortuito externo’. Nesta hipótese, acrescenta ele, os fatos que exoneram vêm a ser: culpa da vítima, ordens das autoridades (fait du prince), fenômenos naturais (raio, terremoto) ou quaisquer outras impossibilidades de cumprir a obrigação por não ser possível evitar o fato derivado da força externa invencível: guerra, revolução etc. Adverte, entretanto, Agostinho Alvim que, mesmo nestes casos, ‘é preciso indagar se o fato não é devido a qualquer culpa do autor do dano, ainda que indireta ou remota, como no caso de morte pelo raio’ (Da Inexecução das Obrigações, nº 208)."

Cavalieri Fº., seguindo essa doutrina, refuta a impossibilidade de se invocar o caso fortuito como excludente da responsabilidade, pois assim se estaria impondo "uma responsabilidade objetiva fundada no risco integral, da qual o Código não cogitou". O autor dá a seguinte solução à questão:

"O fortuito interno, assim entendido o fato imprevisível e, por isso, inevitável ocorrido no momento da fabricação do produto ou da realização do serviço, não exclui a responsabilidade do fornecedor porque faz parte da sua atividade, liga-se aos riscos do empreendimento, submetendo-se à noção geral de defeito de concepção do produto ou de formulação do serviço. Vale dizer, se o defeito ocorreu antes da introdução do produto no mercado de consumo ou durante a prestação de serviço, não importa saber o motivo que determinou o defeito; o fornecedor é sempre responsável pelas suas conseqüências, ainda que decorrente de fato imprevisível e inevitável.

"O mesmo já não ocorre com o fortuito externo, assim entendido aquele fato que não guarda nenhuma relação com a atividade do fornecedor, absolutamente estranho ao produto ou serviço, o que, a rigor, já estaria abrangido pela primeira excludente examinada – inexistência de defeito (art. 14, §3º, I)." [35]

No mesmo sentido, embora tratando sobre a responsabilidade extracontratual objetiva do Estado, é a posição de Almiro do Couto e Silva, entendendo primeiramente que o caso fortuito ou de força maior é excludente do nexo causal, e depois que nas situações de responsabilidade objetiva o fortuito interno não pode ser invocado como excludente da responsabilidade, mas o externo sim, salvo nas hipóteses de responsabilidade pelo risco integral como nos casos de dano nuclear. [36]

Também o regramento da Comunidade Européia sobre a responsabilidade do produtor (Diretiva nº 85/374/CEE, de 25 de Julho de 1985) nada menciona sobre a força maior como excludente da responsabilidade. O direito português incorporou essa Diretiva ao seu ordenamento interno através do Decreto-Lei nº 383/89, e eis o que diz Calvão da Silva sobre a questão:

"O Dec.-Lei nº 383/89 não menciona, entre as causas de exclusão da responsabilidade indicadas no art. 5º, o caso de força maior. Quererá isto dizer que o produtor não pode eximir-se à responsabilidade objectiva, alegando e provando um caso de força maior?

"A norma correspondente da Directiva, o art. 7º, não indica a força maior entre as causas de exclusão de responsabilidade. Mas, percorrendo os trabalhos preparatórios, chegamos à conclusão de que a omissão se deve ao entendimento de ser supérflua a sua explicitação. É o que resulta da exposição de motivos da Proposta de 1976 da Directiva, na qual, depois de ser considerada desnecessária uma disposição que previsse a regra de a culpa concorrente da vítima levar à redução ou exclusão da responsabilidade do fabricante, pode lêr-se: ‘Il en va de même de l’exoneration de responsabilité en cas de force majeure, que le fabricant peut invoquer, d’après le droit de tous les États membres, pour se défendre contre les allégations de la victime’. [37] O mesmo se diga da Convenção de Estrasburgo, de que a Directiva é herdeira.

"Sendo assim, porque a regra de direito comum é a oponibilidade à vítima da força maior, se o legislador comunitário pretendesse revogá-la devia tê-lo feito expressamente. Como não o fez e a lei portuguesa se limitou a incorporar a Directiva, não consagrando, portanto, a excepção à oponibilidade da força maior ao lesado, deve valer a regra comum. Equivale isto a dizer, em suma, que a força maior – acontecimento imprevisível, irresistível ou inevitável e exterior ao produto – é igualmente causa de exclusão da responsabilidade objectiva do produtor instituída pelo Dec.-Lei nº 383/89." [38]

Vale dizer que a legislação européia, porém, não dá ao tema um tratamento codificado, abrangente, tal como faz a nossa legislação de defesa do consumidor [39], havendo leis pontuais para temas específicos. Por exemplo, a responsabilidade extracontratual do fornecedor (produtor) é regulada por lei especial (Decreto-Lei nº 383/89), mas a responsabilidade contratual é resolvida pela legislação comum.

De qualquer forma, entendemos equivocada a opinião daqueles que vêem no caso fortuito uma hipótese de exclusão da culpabilidade, e, portanto, incompatível com o sistema de defesa do consumidor. É, conforme exaustivamente debatido pelos citados autores acima, excludente do nexo de causalidade, podendo, apesar do silêncio legislativo, ser invocada pelo fornecedor para se eximir da responsabilidade de reparar o dano.

Não obstante, acompanhamos o entendimento de que o fortuito interno está abrangido pela teoria do risco da atividade adotada pela legislação do consumo, não podendo ser invocado como excludente da responsabilidade.

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Sobre o autor
Marcelo Azevedo Chamone

Advogado, Especialista e Mestre em Direito, professor em cursos de pós-graduação

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAMONE, Marcelo Azevedo. A proteção do consumidor em razão do fato e do vício do produto ou serviço. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1207, 21 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9069. Acesso em: 19 abr. 2024.

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