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Soluções legais para a recuperação do presidiário no Brasil:

a proposta e a realidade

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2. PROPOSTAS LEGAIS PARA A RECUPERAÇÃO DO APENADO: A EDUCAÇÂO E O TRABALHO NA LEI DE EXECUÇÃO PENAL E SUA APLICAÇÃO PRÁTICA

Se a sociedade optou por não destruir o homem que cometeu um crime, então tem a obrigação de recuperá-lo; não há outra opção.

A Lei nº 7.210, de 11.07.1984, conhecida como Lei de Execução Penal - LEP[14], trata das normas estatais relativas à execução penal, e tem por objetivo "efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado" (Art. 1º; grifou-se).

O texto normativo reflete a intenção do legislador em reconhecer o condenado como parte integrante da sociedade, à qual deverá retornar, o que pode ser percebido em seu Art. 10, que prevê que "a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade", determinando ainda, em seu Art. 11, que "a assistência será material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa".

A assistência educacional (de 1º grau e profissionalizante) constitui um dos dois pilares de preparação do apenado para o retorno ao meio social, dispondo a LEP em seus Arts. 17, 18 e 19:

"Art. 17. A assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a formação profissional do preso e do internado.

Art. 18. O ensino de 1º grau será obrigatório, integrando-se no sistema escolar da Unidade Federativa.

Art. 19. O ensino profissional será ministrado em nível de iniciação ou de aperfeiçoamento técnico."

A oferta de trabalho e sua remuneração, obrigação do Estado em relação ao presidiário, conforme prevê o Art. 31 da LEP ("o condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de suas aptidões e capacidades") e, conseqüentemente, direito do preso, consoante o Art. 41 da mesma lei ("constituem direitos do preso...II – atribuição de trabalho e sua remuneração"), destina-se a pelo menos quatro finalidades:

    • manutenção da dignidade humana pela atividade produtiva (LEP, Art. 28, caput);
    • oferta de remuneração ao preso, nunca inferior a ¾ do salário mínimo e não sujeita ao regime da CLT (LEP, Art. 28, § 2º, e Art. 29, caput);
    • atendimento de diversas necessidades, tais como indenização dos danos causados pelo crime, assistência à família, pequenas despesas pessoais, ressarcimento ao Estado pelas despesas com o condenado e formação de poupança para auxiliar no retorno à liberdade (LEP, Art. 29, §§ 1º e 2º);
    • remição proporcional da pena, à razão de um dia de pena por três de trabalho (LEP, Art. 126, caput, e § 1º).

A intenção legislativa é clara e louvável: não apenas pretende que o condenado mantenha-se próximo a uma vida produtiva intra-muros, como forma de ligação com o mundo exterior, provendo, ainda que minimamente, suas necessidades e as de sua família por meio do trabalho, como procura facilitar a reinserção social do preso, buscando prepará-lo para as exigências básicas da competição social: formação e profissionalização.

Esse objetivo se materializou numa legislação avançada, alinhada à Constituição do país, quando se abandonou completamente a idéia – vigente desde os primórdios do Brasil colonial - de que a prisão se presta a dois únicos objetivos: punir o transgressor e amedrontar a sociedade. Pela nova legislação, o preso é tão cidadão quanto aquele que nunca cometeu um crime, apesar da perda provisória de alguns direitos, devendo apenas pagar pelo erro cometido, e ser preparado para ter melhores condições de não mais cometê-los.

Para essa preparação, a escolha óbvia foi utilizar as mesmas ferramentas usadas na formação do cidadão comum, quais sejam educação e profissionalização, até mesmo por que, em tese, a falta desses elementos teria contribuído para a ocorrência da atitude criminosa. Considerou-se – e não deixa de ser uma postura bastante razoável – que o presidiário deveria deixar a prisão em melhores condições do que quando entrou, inclusive no que concerne à preparação intelectual e profissional, para viabilizar seu retorno à sociedade.

Deve-se destacar inicialmente, por se tratar de aspecto essencial à análise proposta nessa monografia, que a educação prevista na LEP é caracteristicamente utilitária, a teor de seus artigos 18 e 19, que prevêem a obrigatoriedade do ensino de 1º grau e a oferta de ensino profissional. Tais ferramentas são parte do todo maior educacional, e não esgotam, absolutamente, as necessidades educacionais do presidiário, principalmente no que diz respeito à sua carência formativa.

Além disso, a proposta estatal se defronta com a realidade social brasileira, conforme relatado pela ONG Human Rights Watch (HRW), em seu relatório "O Brasil atrás das grades", de 1998, seção "O trabalho e outras atividades"[15], em que se relata a difícil realidade do presidiário brasileiro, não só em relação à observância do seu direito à educação e ao trabalho, como também quanto aos demais aspectos inerentes à sua condição humana.

Em que pese ter sido o trabalho realizado há oito anos, permanece desafortunadamente atual, a teor de outros relatórios da mesma organização, de junho de 2005, que retratam os abusos cometidos contra internos no Rio de Janeiro[16], o que não se distancia do cotidiano das demais capitais brasileiras.

Conforme relatado pela HRW, as conclusões do relatório baseiam-se no exame dos estabelecimentos penais nos estados do Amazonas, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, São Paulo e em Brasília. Além das prisões para os definitivamente condenados, também foram visitadas várias cadeias e delegacias, particularmente porque, dada a superlotação dos presídios, os presos normalmente passam anos em tais estabelecimentos.

No total, entre setembro de 1997 e abril de 1998, os pesquisadores daquela organização não-governamental visitaram cerca de quarenta presídios, cadeias e delegacias de polícia, entrevistando centenas de presos e também reunindo-se com autoridades, agentes penitenciários, membros da Pastoral Carcerária, juizes, advogados, promotores, deputados, estudiosos e representantes de organizações não-governamentais. Entre outros, reuniram-se com as autoridades máximas do sistema penitenciário em vários estados (na maioria das vezes, o secretário de Justiça), o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, o autor do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembléia Legislativa do estado de São Paulo sobre o sistema penitenciário, o coordenador nacional da Pastoral Carcerária, o Ouvidor da polícia do estado de São Paulo e o presidente do sindicato dos agentes penitenciários de São Paulo.

As conclusões não são animadoras, e demonstram a distância existente entre a teoria legislativa e a realidade prática, conforme se pode verificar nos excertos do relatório HRW, abaixo reproduzidos:

"Apesar das determinações legais, os estabelecimentos penais do país não oferecem oportunidades de trabalho suficientes para todos os presos. [...] Para citar alguns exemplos representativos entre os estabelecimentos visitados pela Human Rights Watch: cerca de 15% da população carcerária na Penitenciária Raimundo Vidal Pessoa, em Manaus, estavam empregados; cerca de 50 a 60% da população carcerária na Penitenciária Estadual de São Paulo estavam empregados; nenhum preso no Presídio de Segurança Máxima de João Pessoa estava empregado; cerca de 30 a 40 % da população carcerária do Penitenciária Regional de Campina Grande tinham emprego; cerca de 15% da população carcerária do Presídio Central de Natal estavam empregados, e cerca de 20% da população carcerária do Presídio Central de Porto Alegre tinham emprego."

"A situação é pior ainda nas delegacias policiais. A única oportunidade de trabalho que elas oferecem é serviço de faxina. Apenas poucos detentos em cada carceragem trabalham nesse serviço, geralmente de dois a seis detentos, dependendo do tamanho da delegacia. Todos os outros detentos, condenados ou não, ficam ociosos."

" Deve-se ressaltar que o reduzido número de detentos empregados é resultado da escassez de oportunidades de trabalho, e não de falta de interesse da parte dos detentos. Para começar, de acordo com a LEP o trabalho deveria ser obrigatório, e não opcional. Mas ainda mais convincente, na prática, é o incentivo criado pela própria lei para a redução de sentenças. De acordo com esse dispositivo legal, para cada três dias de trabalho, um dia deve ser debitado da sentença do detento. Ansiosos para sair da prisão o mais rápido possível, quase todos os detentos estão dispostos a trabalhar, mesmo sem receber. Na verdade, os detentos reclamaram muitas vezes da falta de oportunidades de trabalho. A escassez de trabalho nas carceragens das delegacias é uma das muitas razões pelas quais os detentos se revoltam para serem transferidos para as prisões."

"O salário dos detentos varia consideravelmente de prisão para prisão. A LEP determina que os detentos recebam três quartos do salário mínimo. De acordo com os índices em vigor, essa quantia seria de R$ 97,50 por mês."

"A Human Rights Watch encontrou poucas prisões que pagavam aos detentos uma quantia semelhante ou aproximada. Na verdade, algumas prisões não pagavam nada, violando assim as normas internacionais que regulam o trabalho prisional."

"Em diversos estabelecimentos penais, incluindo a Casa de Detenção e a Penitenciária Estadual de São Paulo, os detentos trabalham por peça e são pagos de acordo com sua produção. Os detentos que fazem cartões na Casa de Detenção, por exemplo, disseram-nos que recebem entre R$20 e R$25 por mês se trabalharem fazendo hora extra, e cerca de R$15 por mês se cumprirem o horário regular."

"O nível educacional geralmente baixo das pessoas que entram no sistema carcerário reduz seus atrativos para o mercado de trabalho. Isso sugere que programas educacionais podem ser um caminho importante para preparar os detentos para um retorno bem-sucedido à sociedade. Reconhecendo essa possibilidade, a LEP determina que os detentos recebam oportunidades de estudo, garantindo-lhes, em especial, educação escolar primária. A lei também promete aos detentos treinamento vocacional e profissional."

"Quanto mais superlotada, barulhenta e perigosa a prisão, é óbvio que menos estímulo à educação ela oferece. Algumas prisões de péssima reputação, tais como o Presídio do Róger, em João Pessoa, não oferecem aos detentos qualquer oportunidade educacional. Em outras prisões apenas uma fração da população carcerária pode estudar. Na Penitenciária Estadual de São Paulo, por exemplo, disseram-nos que por volta de 10 por cento dos detentos - cerca de 200 pessoas - estavam estudando em nível primário, enquanto que cerca de 5 por cento dos detentos da Casa de Detenção de São Paulo estariam estudando em nível primário ou secundário, assim como 8 por cento dos detentos da Penitenciária Raimundo Vidal Pessoa de Manaus. De maneira semelhante ao que acontece com a ausência de oportunidades de emprego, as delegacias policiais não oferecem aos detentos qualquer oportunidade de estudo."

"Embora alguns professores sejam trazidos para a prisão especialmente para ensinar, a maioria das aulas é dada pelos próprios detentos, normalmente aqueles que têm maior nível educacional ou apresentam habilidades especiais. Na Penitenciária Raimundo Vidal Pessoa de Manaus, por exemplo, encontramos um detento colombiano que dava aulas de espanhol."

"Durante nossas visitas, vimos diversas salas de aula vazias, mas poucas aulas de fato. Na Casa de Detenção, vimos uma aula de datilografia no pavilhão 6; o professor, um detento, disse-nos que cerca de setenta presos recebem aulas de datilografia de uma hora por dia durante seis meses."

Outro fator digno de atenção reside nas oportunidades de trabalho extra-muros, para os presos em regime semi-aberto. Como a LEP dispõe que o trabalho do preso não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho (Art. 28, § 2º), e a remuneração pode ser inferior a um salário mínimo (3/4 deste), a força de trabalho prisional é interessante para o empresariado nacional, pois, além da remuneração reduzida, não são devidos quaisquer encargos previdenciários, férias, décimo-terceiro salário, aviso prévio, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, horas-extras, etc.

Ainda assim, as oportunidades de trabalho surgem, quase que invariavelmente, em órgãos públicos ou pára-públicos. O relatório anual de 2005 da Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso do DF (FUNAP)[17] registra que, dos 719 condenados em regime semi-aberto que trabalham no Distrito Federal, extra-muros, apenas 28 o fazem em empresas privadas, estando todos os outros 691 detentos localizados em órgãos públicos, tais como administrações regionais do DF, ministérios, secretarias e a própria FUNAP.

Se as dificuldades para obter emprego para detentos resta comprovada, apesar das vantagens financeiras para o empresariado, a situação se torna ainda mais precária para os egressos: passando a concorrer em igualdade de condições com todos as pessoas, no que se refere ao salário e encargos devidos pelo empregador, o egresso é preterido em relação àquela pessoa que não cometeu crimes, e cai no desemprego.

A partir dos fatos acima relatados, pode-se inferir que a preparação do presidiário, intelectual e profissional, e a condição diferenciada de sua remuneração, sem encargos sociais, não são suficientes para atrair o empresariado brasileiro, ou que não existe um esforço eficiente da autoridade governamental no sentido de aproximar o detento e a empresa, destacando as vantagens práticas de se contratar um apenado em regime semi-aberto.

De todo modo, a análise da distância que se verifica entre a intenção do Estado, consubstanciada na Lei de Execução Penal, e a prática verificada dentro e fora das prisões brasileiras, é o problema que dá existência a esta monografia, cujas razões – e caminhos que possam levar a soluções – pretende-se demonstrar até o final do trabalho.


3. A EDUCAÇÃO E O TRABALHO: SUA IMPORTÂNCIA PARA A FORMAÇÃO E EXISTÊNCIA DO HOMEM SOCIAL

O homem é a única criatura que precisa ser educada (Kant)[18]

Para que se possa buscar o entendimento correto dos motivos que levaram o legislador a inserir a educação e o trabalho como ferramentas de recuperação e reinserção do presidiário no Brasil, a serem obrigatoriamente desenvolvidas no ambiente prisional, deve-se fazer uma análise, ainda que breve, do significado mais amplo de tais termos e dos seus efeitos no homem enquanto ser em contínua formação e destinado a viver em comunidade.

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Para além da concepção mais comum do que seja educação e trabalho, muitas vezes percebidos apenas pela sua utilidade imediata no dia a dia, deve-se buscar a compreensão do papel maior de tais instituições, aqui não mais circunscritas à realidade do cárcere, mas entendidas como ferramentas basilares para o ser humano que convive em sociedade, desde seu nascimento até sua maturação como ente produtivo e responsável, e durante todo o processo que se verifica a partir da assunção desses papéis.

Pode-se até mesmo inferir que essa foi a dimensão que norteou o legislador, ao buscar reproduzir na prisão, ainda que de forma limitada, tais elementos vitais à convivência humana. Por esse motivo, uma discussão teórica desses temas, vinculada às suas possibilidades totais na sociedade global, reservando-se o debate relativo à praxis observada no sistema prisional para um momento posterior, se faz oportuna e necessária para a compreensão do distanciamento entre teoria e prática, no que concerne às soluções legais para a recuperação do apenado.

3.1 A educação e sua pluralidade formativa

A educação representa um processo integral de formação humana, não devendo se limitar ao conceito menor de que educar é transmitir conhecimentos a serem armazenados no intelecto, para futura aplicação em uma atividade produtiva de bens e serviços. É também uma atividade plural, com a efetiva participação de diversos atores, voluntários ou não, que transmitem ou influenciam na transmissão de informações e valores para outros atores, que os recebem por diversos canais, e que por sua vez também podem assumir o papel de educadores.

É, portanto, atividade plural no que se refere à matéria, aos envolvidos, às formas de transmissão e de recepção, e até mesmo quanto ao posicionamento assumido pelos participantes.

Na prática do dia a dia, educação e educadores estão quase sempre ligados à visão pragmática e utilitária do conceito, pela qual conhecimentos e habilidades são transmitidos de geração em geração, acrescidos dos progressos tecnológicos alcançados, para propiciar a reprodução das condições humanas e a busca de novas possibilidades no campo do conhecimento. Ou seja, trabalho e pesquisa.

Tais aspectos, decerto, fazem parte do processo educacional, mas estão longe de representar a totalidade do processo, sequer a parte mais importante. A palavra educação encerra um significado bem mais amplo, por se tratar de um processo infinitamente mais complexo, envolvendo não apenas a questão dos conhecimentos e habilidades, mas a própria essência humana e sua transformação. Pela aquisição de valores e conhecimentos, o homem busca atingir a indispensável capacitação do ser humano à vida em sociedade, com especial ênfase para a questão da cidadania (e essa palavra é merecedora de uma análise bem mais acurada, por representar um dos pilares da própria existência de qualquer nação).

O professor Neidson Rodrigues[19] definiu de forma precisa o processo educacional, em sua visão ampla, inclusive sua íntima ligação com o sujeito-cidadão:

" Na esteira do que foi reafirmado sobre os fins da educação, podemos reconhecer que a ação educativa é um processo regular desenvolvido em todas as sociedades humanas, que tem por objetivos preparar os indivíduos em crescimento (crianças e adolescentes) para assumirem papéis sociais relacionados à vida coletiva, à reprodução das condições de existência (trabalho), ao comportamento justo na vida pública e ao uso adequado e responsável de conhecimentos e habilidades disponíveis no tempo e nos espaços onde a vida dos indivíduos se realiza. Ao redor desses aspectos se desdobra o conjunto das ações educativas a serem desempenhadas pelos sujeitos educadores, entre eles a escola." (grifos nossos)

" Ao redor dessas relações acredita-se que a Educação é o caminho necessário para a formação do sujeito-cidadão."

Segundo Kant[20], "a Educação é um ato intencional imposto de fora sobre uma criatura que deve ser formada como ser humano". Essa visão holística do filósofo, no que se refere à formação do homem, é o cerne do que hoje se entende por educação, qual seja aquela atividade que se destina a fornecer todas as informações e valores necessários ao homem para que este possa existir junto aos demais como um ser igual e completo. É um processo plural, que abrange diversas dimensões, além da intelectiva: a moral, a emocional, a valorativa, a cidadã, etc.

O último livro do educador Paulo Freire, "A Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários à prática educativa", citado por Caetano V. Serpa e Maria de Lourdes B.Serpa[21], contextualiza a educação como um processo global inerente à sociedade e ao homem individual, e manifesta otimismo quanto às suas possibilidades, principalmente no que se refere à formação positiva das pessoas:

" A Pedagogia da Autonomia é um livro pequeno em tamanho, mas gigante em esperança e otimismo, que condena as mentalidades fatalistas que se conformam com a ideologia imobilizante de que "a realidade é assim mesmo, que podemos fazer?" Para estes basta o treino técnico indispensável `a sobrevivência. Em Paulo Freire, educar é construir, é libertar o ser humano das cadeias do determinismo neoliberal, reconhecendo que a História é um tempo de possibilidades. É um "ensinar a pensar certo" como quem "fala com a força do testemunho". É um "ato comunicante, co-participado", de modo algum produto de uma mente "burocratizada". No entanto, toda a curiosidade de saber exige uma reflexão crítica e prática, de modo que o próprio discurso teórico terá de ser aliado à sua aplicação prática."

Deve-se entender a educação, por conseguinte, como um processo que interage com todas as dimensões do homem social, e não apenas com a intelectiva-ferramental-utilitária, embora esta represente a faceta mais visível em função de sua aplicabilidade pragmática e imediata. Cabe destacar, ainda, que o conceito de cidadania somente existe – e subsiste – mediante um efetivo processo educacional, uma vez que se trata de conhecimento eminentemente externo ao ser humano, e que contraria até mesmo sua própria natureza, caso se leve ao pé da letra o posicionamento hobbesiano[22] do estado de natureza dos homens.

Educa-se o homem com informações e valores, sendo que esta última faceta – valores – é de vital importância para a existência positiva do homem social. E aqui se percebe uma diferenciação maiúscula entre a educação que transmite valores e aquela que leva informações utilitárias ao intelecto humano, pois esta admite a figura do professor-tutor-educador, que pode atuar em locais e horários determinados, além de se submeter a medições e avaliações na escola e no desempenho profissional, enquanto aquela emana diuturnamente de todas as situações e grupos sociais percebidos pelo homem, com especial destaque para a entidade familiar.

Essa capacidade de perceber fatos e dados de forma axiológica, que é desenvolvida de forma independente da vontade humana, bastando para tal a

ocorrência da vida em grupo, representa nada menos que o conjunto de parâmetros que determinarão os comportamentos sociais, formando aquilo que se compreende como caráter do homem, responsável pela prática de atitudes louváveis ou merecedoras de reprovação.

A educação valorativa, ligada ao ser-cidadão, depende de inúmeros e complexos fatores para sua consecução de forma positiva, não bastando para

praticá-la, infelizmente, a aquisição e transmissão de conhecimentos técnicos ou pragmáticos. O cabedal de circunstâncias envolvidas nesse processo educacional leva à reflexão de que a sociedade nele se envolve como um todo, pelo que se deve priorizar a construção de um modelo educativo que destaque a parte positiva/construtiva dos conceitos e valores morais/sociais, objetivando sua transmissão contínua ("a parte boa") e o conseqüente incremento da cidadania, o que representará, ao final, a criação de um processo contínuo de retro-alimentação positiva entre educandos (seres-cidadãos) e educadores (a própria sociedade).

Esse modelo educacional valorativo-positivo, felizmente, não depende de todos os setores da sociedade para sua implementação, o que o torna possível, embora não sem grandes dificuldades. Caso dependesse de todos os setores sociais, o próprio pluralismo moral-valorativo impediria sua implantação, face à ausência de um modelo comum a todos e até mesmo à presença de valores frontalmente contrários, produzidos justamente pela falta de um modelo axiológico preponderante e efetivo.

Logo, existe uma possibilidade de se avançar no modelo educacional naquilo que se refere à formação valorativa do homem, inclusive dentro das prisões brasileiras, onde hoje a educação se limita à transmissão – e assim mesmo precária – de informações técnico/utilitárias. É por meio da disseminação de valores positivos que se poderá combater inúmeros conceitos niilistas ou negativos advindos dos mais diversos segmentos sociais, buscando-se de uma certa unidade valorativa (nunca a unanimidade, altamente prejudicial) que minimize a pluralidade moral hoje existente no Brasil, circunstância típica de países com forte exclusão social.

3.2 O trabalho como valor inerente ao homem social

A atividade laborativa pode provocar inúmeros efeitos na pessoa que a pratica, entre eles a auto-realização, o orgulho de produzir e receber riqueza, o incremento da competitividade, o desejo de evolução profissional, a satisfação de saber-se útil para o sustento familiar, bem como a revolta por julgar-se explorado, a sensação de impotência, o desejo de abandonar a atividade, a luta por sobressair-se no meio profissional mediante atitudes lícitas – ou não -, e, em muitos casos, a certeza e aceitação passiva do imaginado destino de trabalhar até morrer, como decorrência natural das necessidades da vida.

Independentemente do posicionamento da pessoa frente ao trabalho, este deve ser reconhecido como um valor intrinsecamente social, ou seja, advém da sociedade e a ela se destina, como meio de produção, criação, dominação, sobrevivência, reprodução das condições humanas e – aqui se tem o aspecto mais diretamente ligado a esta monografia – inserção do ser humano no grupo, por meio do reconhecimento de seu papel profissional (o degrau que conseguiu atingir), de sua capacidade de influenciar pessoas e fatos e sua habilidade em gerar riqueza para si e sua família.

No aspecto individual, o homem utiliza o trabalho, entre outras funções, para aferir sua capacidade de gerar riqueza (para si e para os seus) e de exercer a atividade com a qual mais se identifica, e é o resultado dessa medição que o leva aos mais variados estados de espírito, desde a auto-realização plena até o sentimento de absoluta impotência frente à realidade profissional.

No aspecto grupal, as pessoas exercitam um processo contínuo de avaliação das habilidades e capacidades do trabalhador, com especial destaque para sua adequação ao processo produtivo, sua capacidade de gerar riqueza e sua importância para o atingimento dos resultados almejados.

Qualquer que seja o enfoque utilizado – percepção individual ou social -, o trabalho se caracteriza pela sua essência eminentemente retributiva, na qual ambos os lados envolvidos se julgam com direito – e efetivamente o têm – de receber algo em troca de seus esforços, que se caracterizam, de forma costumeira, pela dedicação ao trabalho – do lado do profissional – e pelo pagamento de verbas salariais ou assemelhadas – do lado da entidade patronal. É uma troca, onde o homem oferece sua força para auferir algo para si, desde pagamento em dinheiro até a satisfação pessoal, e a sociedade igualmente oferta valores relevantes para o ser individual, desde sobrevivência (salário) até o reconhecimento social.

A percepção individual do que se pode – e se deve – esperar do trabalho, mantido o sentimento comum de que é algo necessário à sobrevivência e gerador de retribuição, se caracteriza por sua variabilidade e amplitude. Dita percepção – e sua profundidade – está ligada basicamente a fatores educacionais e sociais, posto que ao homem só é possível perceber as coisas à medida em que se lhe é dado o conhecimento de sua existência.

Exemplificando, a educadora da USP Maria Carla Corrochano demonstrou, tendo por objeto os jovens operários de São Bernardo do Campo[23], que "ganhar dinheiro suficiente para ajudar no sustento da família, não ser confundido com marginais e custear suas próprias despesas" são os motivos que levam tais pessoas a trabalhar, sendo a realização profissional relegada a um segundo – e distante – plano. Relata ainda a professora:

" Com baixos salários e ocupando cargos que exigem pouca qualificação e muita exigência física, mais de 50% dos entrevistados acham que ter um emprego é quase privilégio. Para reforçar essa idéia, todos possuem amigos desempregados, ou já estiveram nesta condição. Cerca de 80% também ocupou postos de trabalho informal e precário.

O resultado desta situação, segundo os dados, é que apesar dos jovens continuarem sonhando com a possibilidade de uma vida melhor, seus planos são, quase sempre, remotos, e o trabalho de hoje não possui relação com o sonho de amanhã.

O emprego é central na vida desses jovens e concretizar seus planos de futuro envolve um certo risco de desemprego. É difícil apostar numa possibilidade de mudança sem que haja políticas de formação e geração de postos de trabalho e renda".

A postura adotada, intelectual e emocionalmente, por esses trabalhadores, indica a evidente conexão entre as perspectivas profissionais das pessoas e seu grau de inclusão/exclusão social. Esta é mais uma evidência de que o trabalho só existe em função da sociedade, de onde emana e para onde se destina, e que as possibilidades oferecidas pela atividade laboral, tanto sob o ponto de vista individual como sob o aspecto social, estão intimamente ligadas à formação possível da pessoa humana, antes mesmo da formação do trabalhador.

Assim, o trabalho adquire uma dimensão cidadã, à medida em que trabalhar depende diretamente da formação das pessoas, não apenas quanto aos aspectos técnicos – que tornam o homem meramente capaz de reproduzir coisas – mas também em relação aos aspectos sociais, formadores, que trazem ao ser humano uma capacitação crítica em relação ao todo que o cerca, incluindo o trabalho.

É por meio desse senso crítico que o homem se habilita a entender seu trabalho, pensá-lo, planejá-lo, ao invés de tomar diariamente o caminho da fábrica – ou do escritório – simplesmente porque é assim que deve ser feito, por que todas as pessoas o fazem. É a capacidade axiológica do homem – e deve-se reconhecer que seu desenvolvimento esbarra em diversos interesses opostos à sua existência – que poderá transformar o trabalho e ampliar seus efeitos, a partir do melhor entendimento de suas possibilidades, retribuições justas e sua real importância para o mundo social, antes do mundo produtivo.

No Brasil, um entendimento mais amplo do que seja o trabalho está restrito a poucos profissionais, geralmente nos boards das grandes corporações e principalmente nas academias. O pulverização dessa consciência para um maior número de trabalhadores somente será possível por meio do processo educacional, considerado em sua visão ampla (formativa), aliado à imprescindível evolução das possibilidades e postos de emprego, vale dizer do processo econômico como um todo (de nada adianta formar pessoas para a plena consciência do papel do trabalho se este continuar escasso, gerando deformações e um mercado informal com normas e valores próprios).

Enquanto tais evoluções não se concretizam, a maior parte das pessoas que trabalham continuará buscando o emprego apenas como meio de sobrevivência (e isso inclui milhares de profissionais de nível superior que não obtêm colocação em suas áreas). Palavras como realização profissional, satisfação no emprego e planejamento de carreira permanecerão incomuns à grande maioria da população brasileira, incluindo os presidiários objeto desta monografia, para os quais se torna impossível almejar algo além do que o emprego-subsistência mal remunerado, em vista da igual realidade observada fora dos muros da prisão.

4. A PROPOSTA DA LEI E SUAS LIMITAÇÕES: ESTUDO DE CASO VIS A VIS A REALIDADE BRASILEIRA

O mundo real é um cemitério de intenções puras, que a ele se lançaram sem as necessárias armas para enfrentá-lo...

O estudo de caso aqui apresentado tem por objeto uma experiência pioneira levada a cabo em Brasília/DF desde 14.05.2002, quando a empresária Suzana Rodrigues entrou pela primeira vez na Penitenciária Feminina do Distrito Federal (localizada no Gama, cidade satélite de Brasília), conhecida como "Colméia", e enfrentou os olhares desconfiados de um grupo de presidiárias, ao convidá-las a aprender o ofício de artesãs, no ramo de bijuterias.

Dessa reunião até os dias de hoje, a experiência adquiriu conformação empresarial, sendo que atualmente a grande maioria da força produtiva empregada na atividade é constituída por internas daquele presídio (cerca de vinte), contratadas na forma da Lei de Execução Penal, que trabalham na fábrica de bijuterias e biojóias (definição para adereços fabricados com sementes naturais) mantida dentro da penitenciária.

As observações oferecidas pela empresária, fruto de sua convivência de quase quatro anos com a realidade prisional feminina de Brasília, as expectativas das detentas quanto ao futuro, a reincidência criminal, a mudança comportamental e a reação frente às oportunidades de trabalho dentro e fora da cadeia, corroboram de forma inequívoca as teses até então apresentadas nesta monografia, principalmente no que se refere aos efeitos da exclusão social e ao pluralismo ético-moral-comportamental daí decorrente.

Os dados colhidos representam a comprovação factual, em menor escala, da realidade verificada no sistema prisional brasileiro, e suas relações com a sociedade como um todo, num contínuo – e vicioso - processo de retro-alimentação.

Pode-se condensar os principais dados sobre o caso nas informações abaixo:

  • Descrição: treinamento e organização de presidiárias de Brasília para a produção diária de bijuterias e biojóias, objetivando sua comercialização em loja convencional e quiosques mantidos na região, além de exportação para diversos países, tais como França, Inglaterra, Espanha e Suíça;
  • Objetivo pessoal: transmitir conhecimento visando à formação profissional de pessoas pertencentes à classe mais desfavorecida da sociedade, e em temporária privação de liberdade, com todos os efeitos negativos daí decorrentes, buscando-se uma futura reinserção social;
  • Objetivo profissional: preparar e sustentar estrutura empresarial, baseada na força de trabalho de detentas, que permita a existência perene de negócio de adornos e biojóias em todas as suas fases (produção, suporte, comercialização, lucro e reinvestimento) com todos os efeitos sociais relacionados: emprego, remuneração digna, profissionalização e oferta de emprego após o cumprimento da pena;
  • Período temporal: de 14.05.2002 até hoje;
  • Localização: Penitenciária Feminina do Distrito Federal, localizada na cidade-satélite do Gama, nas cercanias de Brasília;
  • Abrangência: cerca de 300 presidiárias já participaram do projeto (por variados períodos de tempo) durante todo o período;
  • Método: fornecimento de toda a infra-estrutura necessária para a produção de bijuterias e biojóias (maquinário, matéria-prima, treinamento, etc) dentro da prisão, produção em quase todos os dias úteis (ressalvado o dia da visita semanal), remuneração variada por quantidade produzida/grau de dificuldade (variando de R$ 70,00 a R$ 450,00 mensais), oferta de emprego após o cumprimento da pena.

Dado o objeto desta monografia, as informações mais relevantes obtidas em relação ao caso são as seguintes:

- das cerca de 300 detentas que trabalham, ou já trabalharam, na fábrica de bijuterias e biojóias, aproximadamente 60% são reincidentes. Esse índice é semelhante ao grau de reincidência verificado na prisão como um todo;

- das cerca de 60 mulheres que cumpriram a pena e deixaram a prisão, apenas 7 procuraram emprego junto à empresária, sendo que 5 não trabalharam mais que um dia, uma trabalhou por quatro meses e uma por dois anos, sendo que essa última, tida como o único caso de reinserção social bem sucedida, deixou o emprego sob suspeita de falsificação de assinatura em cheque.

As demais informações fornecidas pela empresária, fruto de sua vivência junto ao sistema prisional, dão conta de diversas características comuns, ou pelo menos modais, a todas ou a quase todas as presidiárias, algumas surpreendentes, mas todas relacionadas à exclusão social e seus efeitos. Senão, vejamos:

  • todas as presidiárias da PFDF (cerca de 200), sem exceção, provêm da classe pobre ou miserável, sendo que este fato, além de gerar revolta nas detentas contra o Estado e a classe média, é encarado como motivo para a busca imediata, sem problemas de consciência, de soluções "alternativas" de vida (crime), como única possibilidade oferecida pela sociedade (que "merece" sofrer tais efeitos, como responsável pela discriminação sofrida pela classe menos favorecida);
  • a quase totalidade das presas foi levada a cometer delitos (quase que invariavelmente o tráfico de drogas) pelos maridos, namorados ou companheiros;
  • mais de 90% das egressas busca o tráfico de drogas como "atividade profissional" assim que deixam a prisão, sem procurar antes qualquer outra ocupação, face à significativa remuneração daquela atividade, que possibilita o atingimento rápido do maior objetivo de todas: comprar uma casa. O retorno ao tráfico é a primeira causa de reincidência criminal;
  • a segunda causa de reincidência criminal é o delito cometido com o único objetivo de propiciar o retorno rápido à prisão, onde a egressa deixou a "namorada". Cerca de 70% das internas da PFDF são homossexuais, sendo que a maioria adquiriu tal comportamento após ingressarem na prisão;
  • diversas detentas gostam de viver na penitenciária, pela existência de "casa, comida e roupa lavada". A prisão é conhecida como "hotel do tio Roriz" (ex-governador do Distrito Federal);
  • muitas internas têm prazer em praticar o tráfico de entorpecentes, e de portar armas de grosso calibre, por se sentirem "poderosas" com tal atitude;
  • a quase totalidade das detentas recebem tão-somente a visita da mãe, após alguns meses de prisão, sendo essa a única referência familiar disponível. O homem - marido-pai-irmão-namorado-companheiro - não faz parte do ideário apresentados pelas internas, que sentem falta apenas dos filhos, quando existentes;
  • como só é permitida a participação de 20 detentas na fabricação das peças, existe uma fila para participar da atividade, dada a ausência de opções suficientes de trabalho na prisão. Em 2003, essa fila chegou a 80 pessoas.

É de todo interessante proceder a uma análise mais detalhada de alguns fatos acima mencionados, não apenas por que se prestam ao entendimento da situação sócio-familiar-emocional das detentas, mas principalmente por sua contribuição para a correta visualização dos efeitos da sociedade naquelas pessoas, muito antes dos efeitos destas na sociedade.

De início, não existe ao menos uma única detenta que não pertença à classe pobre ou miserável. Como é sabido que não são apenas as pessoas dessas classes que cometem crimes (embora se possa inferir que são as que mais os cometem, em números relativos, fruto da exclusão social), é compreensível que esse fato atue como gerador de revolta, seguida do entendimento de que é "normal e até necessário" que se busque a via do crime para o atingimento de diversos objetivos de vida – dinheiro, poder, conforto – já que essa é a única maneira ofertada pela mesma sociedade que as limita.

É o "direito" ao crime, representativo de um pluralismo jurídico já mencionado neste trabalho, que se torna mais e mais preocupante à medida em que sua existência decorre da incapacidade da sociedade em atender as mínimas necessidades de uma parcela de si mesma, aliada ao fato de que esta parcela é crescente em números absolutos, como demonstrado pela realidade carcerária brasileira.

O tráfico de drogas é a grande "opção profissional" das detentas e também das egressas (fator primeiro da reincidência), pela remuneração que propicia, o que leva a pelo menos duas conclusões: primeiro, que o pluralismo jurídico-profissional é uma realidade cada vez mais consistente nas classes desfavorecidas, por representar o único caminho para o atingimento de objetivos; e segundo, que essa opção é alimentada por um novo ente coletivo igualmente crescente, o do usuário de drogas, igualmente preocupante mas que não é objeto desta monografia.

Por fim, e este é um aspecto relevante, tem-se a informação de que, após alguns meses, apenas as mães das detentas as visitam na prisão, sendo essa a única referência familiar disponível. Esse fato demonstra a inexistência da entidade familiar integral como substrato básico daquelas pessoas, por vezes (mal) substituída pelo marido-companheiro-namorado, responsáveis por levarem a quase totalidade das internas a cometerem crimes. E, dado que família é sinônimo de formação, e que formação é um dos pilares do processo educacional, deduz-se que existe uma íntima ligação entre a carência educacional-formativa-familiar e a prática delituosa, embora não se deva afirmar, pela ausência de um estudo mais aprofundado, que esta seja a causa principal.

De qualquer modo, o presente estudo de caso remete a um mundo "diferente", não por ser habitado por pessoas que podem – ou não – ter recebido valores diferenciados antes de ingressar na cadeia (considerando-se inclusive a carência de valores como um valor diferenciado), mas por que tais valores diferenciados são a elas impostos diariamente na realidade prisional, e de forma caracteristicamente violenta. A falta de liberdade, a superlotação, a exclusão absoluta, a constante vigilância, o ingresso num ambiente onde vigoram regras específicas – e muitas vezes radicais -, a obrigatória constatação da derrota sofrida para o Estado, que aplica sua força, e até mesmo a carência afetiva (o homossexualismo na PFDF gira no patamar de 70%, sendo que muitas detentas adquirem esse comportamento após o ingresso na penitenciária) são parte de um conjunto valorativo que necessariamente passa a integrar o caráter daquelas prisioneiras.

Essa convivência diária com os "valores prisionais" se torna uma peça-chave para que se possa aferir a eficácia do binômio educação-trabalho (como previsto na LEP) na recuperação das presidiárias, à medida em que sua existência é parte integrante do processo educacional das detentas, ao qual obrigatoriamente se incorpora. Uma vez que educação é um todo integrado – e integrante – entre pessoas, composto de insumos perceptíveis ou subliminares, aqueles valores adquirem relevância – até mesmo pela violência impositiva que os caracteriza – e influenciam de forma definitiva a formação das que a eles se submetem.

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Sobre o autor
Osmar Aarão Gonçalves de Lima Filho

bacharel em Direito em Brasília (DF), jornalista, bancário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA FILHO, Osmar Aarão Gonçalves. Soluções legais para a recuperação do presidiário no Brasil:: a proposta e a realidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1216, 30 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9101. Acesso em: 24 nov. 2024.

Mais informações

Monografia de conclusão do curso de Direito no Centro Universitário do Distrito Federal (UniDF), aprovada com nota máxima.

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