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Soluções legais para a recuperação do presidiário no Brasil:

a proposta e a realidade

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CONCLUSÃO

Durante todo o período de produção desta monografia, a preocupação central – em que pesem todas as dilações de tema levadas a efeito, por necessárias a uma abordagem mais completa do assunto escolhido – foi a de pesquisar e analisar, da forma mais sistematizada possível, os motivos que levam à existência do seguinte problema: a visível – e cada vez maior – distância entre a proposta estatal, de propiciar a recuperação da maior parte dos apenados via educação e trabalho, e a crescente reincidência criminal verificada em nosso país, hoje em níveis próximos a 80% do total de egressos, conforme estatísticas aceitas pelas autoridades que tratam do tema.

Para subsidiar as linhas de condução do trabalho, foram formuladas três hipóteses relativas à eficácia das mencionadas ferramentas estatais de recuperação de presidiários – educação e trabalho -, que não esgotam as possibilidades relativas ao assunto, mas que podem representar os vetores mais prováveis para o tratamento da questão:

  • tais soluções são inadequadas em sua essência, indicativo da necessidade de sua substituição;
  • ou são adequadas e suficientes para a solução do problema, devendo apenas serem intensificadas em nível nacional;
  • ou então são adequadas e insuficientes frente a uma realidade maior, na qual outras variáveis vêm impedindo que tais "remédios legais" atinjam o resultado esperado, o que exigiria uma nova abordagem do tema.

    Como premissa inicial, adotou-se o posicionamento de que não se deveria cingir a análise às ferramentas em si, vale dizer à previsão legal de educar e oferecer o direito/dever do trabalho ao apenado. Ao contrário, dever-se-ia proceder a um estudo que abrangesse a complexa realidade brasileira, com foco no fato social mais diretamente ligado às questões aqui abordadas: a exclusão social, que vem a ser justamente a contrapartida do sistema prisional, à medida em que este representa o momento de maior intensidade daquela: a exclusão absoluta, "garantida" por muros e grades, a "resolução" do problema que aflige a comunidade das "pessoas de bem".

    Por conseguinte, a aplicabilidade e eficácia dos remédios estatais – educação e trabalho – são analisadas num contexto maior, buscando-se dissociar seu valor intrínseco – quando são vistos apenas de per si – de sua aplicação na vida real, qual seja na presença de todos os valores e contradições da sociedade brasileira. Em outras palavras, estudou-se o problema admitindo-se a possibilidade – e não poderia ser de outra maneira – de que intenções, valores e leis podem ser bons em si, indiscutivelmente, mas que nem sempre são úteis, ou suficientes, dentro de uma realidade global, motivo pelo qual o enfoque utilizado buscou a abrangência como premissa fundamental.

    Para responder à questão aqui colocada – que se resume na simples pergunta "por que as ferramentas estatais para a recuperação do presidiário não funcionam?" -, estruturou-se este trabalho em quatro capítulos, que buscam oferecer uma visão global do problema ao reinseri-lo em sua própria fonte: a sociedade.

    No primeiro, apresenta-se o sistema prisional brasileiro, desde seu viés histórico até a brutal realidade dos dias de hoje, destacando-se a arguta análise do professor Wunderlich, consubstanciada na expressão "as instituições totais reproduzem a violência da própria sociedade, oficializando e estigmatizando as categorias sociais excluídas". Ao oficializar essa exclusão, o sistema prisional brasileiro, além de reafirmar a violência que já existe fora do cárcere, corrobora definitivamente o pluralismo ético-moral que se verifica, de forma eloqüente, nas categorias sociais mais desfavorecidas: ao mesmo tempo em que convivem com os padrões comportamentais da sociedade "oficial", essas pessoas admitem e experimentam seu "direito ao crime", até mesmo como única forma de vida indicada pela própria comunidade que as excluiu, que não lhes oferece qualquer outro meio de sobrevivência e busca de seus objetivos.

    Procura-se demonstrar que, ao ingressar no sistema prisional, o condenado percebe de imediato que aquela instituição solidifica, até mesmo pela violência, pelas regras próprias, pela ausência de condições dignas etc, sua condição de excluído da sociedade. Ou seja, a cadeia reproduz, de forma bem mais incisiva, o próprio conjunto de fatores que levaram o apenado a nela ser inserido, e reafirma, por via de conseqüência, a necessidade de uma alternativa ético-moral que propicie, por vias "não-oficiais", a busca dos objetivos básicos inerentes a qualquer ser humano: conforto material e poder.

    Em simples palavras, conclui-se que a prisão brasileira dos dias de hoje, já que não cumpre nem mesmo sua função primária, a de conter a prática criminosa de seus internados, se presta tão-somente a confirmar o que eles já aprenderam: que devem buscar caminhos "diferenciados" para suas vidas, por ser esta a alternativa viável para sua condição de excluídos.

    No segundo capítulo, aborda-se a legislação pertinente ao tema, qual seja a Lei nº 7.210/1984 (Lei de Execução Penal) e sua previsão de educação e trabalho como direito e dever dos presidiários. Destaca-se, no capítulo, o relatório da organização Human Rights Watch, sobre o não cumprimento da lei, à vista da realidade observada nas prisões brasileiras.

    O terceiro capítulo se dedica à análise da importância da educação e do trabalho, enquanto valores considerados apenas "em si", para o homem social. Em que pesem os diversos aspectos fundamentais desse capítulo, destaque maior deve ser dado à visão de Neidson Rodrigues, para quem a "ação educativa é um processo regular desenvolvido em todas as sociedades humanas, que tem por objetivos preparar os indivíduos em crescimento para assumirem papéis sociais relacionados à vida coletiva, a reprodução das condições de existência (trabalho), ao comportamento justo na vida pública [...]". O enfoque do professor Neidson coloca o próprio trabalho como uma das atividades humanas a serem ensinadas, bem como a amplitude de como pode ser percebido, e demonstra – sendo essa uma das pedras fundamentais para as conclusões deste trabalho – que educação é um processo global, amplo, que envolve todas as informações que chegam ao ser humano, e que deste passam a fazer parte, formando uma escala de valores.

    De modo resumido, este capítulo procura demonstrar que educação deve ser entendida, de forma mais completa, como formação. E que a formação, para além de significar a recepção de inúmeras informações, refere-se sempre à criação de uma escala valorativa, formada a partir de todos os dados que chegam ao ser humano desde seu nascimento, de forma implícita ou explícita, consciente ou subliminar. É pela educação-formação que o homem aprende a valorar as coisas, e é por meio dos valores que se faz a vida em sociedade, pelo que se pode perceber a vital necessidade de arquétipos valorativos positivos, oriundos do Estado, independentes de casos ou grupos pontuais, como condição básica para a continuidade do sistema ético-moral estabelecido (e aqui se tem outro ponto fundamental para a resposta à questão colocada nesta monografia).

    O último capítulo traz a realidade de uma experiência envolvendo os três temas anteriores (sistema prisional, ferramentais legais de reinserção, educação e trabalho na cadeia). Pela iniciativa da empresária Susana Rodrigues com internas da Penitenciária Feminina do Distrito Federal, criando uma lucrativa fábrica de bijuterias e biojóias dentro da prisão, bem como pelas características e comportamento observados nas "operárias", pode-se contrapor – com resultados marcantes - a proposta estatal de recuperação das presidiárias com seus valores pessoais, fruto da educação a elas proporcionada antes e durante sua estada na cadeia (e não se deve entender educação na cadeia apenas como as aulas de 1º grau eventualmente oferecidas).

    Em última análise, esse capítulo remete ao confronto entre os sistemas éticos-morais "oficial" e "dos excluídos", que evidencia o abismo entre a proposta estatal para reinserção dos apenados e a realidade maior que se observa, esta oriunda da formação de uma vida inteira, estando portanto a exigir providências bem mais profundas e abrangentes que a obrigação de ministrar educação de 1º grau e oferecer trabalho manual para os presidiários.

    Assim, com base em todos os dados coligidos ao longo deste trabalho, e destacando-se o enfoque abrangente escolhido, com ênfase para o aspecto global da educação e a ausência do Estado, pode-se concluir que para a recuperação dos presidiários no Brasil, educação e trabalho, na forma como previstos na legislação relacionada, são ferramentas adequadas apenas quando vistas em si, por seus valores intrínsecos, porém completamente insuficientes frente à realidade social brasileira, tipificada por uma forte exclusão social e por um processo educacional-formativo que leva a uma realidade ético-moral pluralista.

    Dois são os fatores que levam a essa conclusão (embora ambos sejam faces da mesma moeda), referindo-se à própria educação (aqui vista sob o aspecto abrangente de formação da capacidade valorativa) oferecida às pessoas mais desfavorecidas, e ao relacionamento do Estado com essas pessoas

    O primeiro se refere ao processo formativo de caráter (educação em sua forma mais abrangente) das pessoas excluídas socialmente, que representam a quase totalidade dos presidiários no Brasil. Desde seu nascimento, expressões como pobreza, ignorância, desemprego, impunidade, esfacelamento familiar, ausência de referenciais positivos, existência abreviada, falta de assistência e de dignidade, corrupção, insalubridade e outras fazem parte de seu cotidiano. Esse é o verdadeiro processo educativo-formativo por que passam essas pessoas, gerador de deformações sociais, e que se verificam pelo menos em três níveis, caso elas venham a ser condenadas por algum crime cometido:

    - no nível inicial, a falta de oportunidades leva ao crime, geralmente o tráfico de drogas, como única maneira oferecida pela sociedade para atingir conforto material e poder; já se instala, nessa fase, certo pluralismo moral consubstanciado pelo "direito ao crime", como maneira de exercer o direito de sobreviver em melhores condições;

    - caso atingida pelo Estado pela única maneira com que este se apresenta, qual seja a pena de restrição de liberdade, a pessoa excluída vê reafirmada, de forma induvidosa, sua condição de ser humano indesejado, que deve ter suas forças reduzidas ao máximo, para não causar problemas à comunidade oficial; independentemente do discurso oficial, prossegue assim o processo educacional oferecido pelo Estado, que "ensina" ao apenado que ele não é apropriado enquanto membro da sociedade, e talvez fosse melhor que nem existisse, o que corrobora a necessidade de obtenção de meios alternativos de sobrevivência;

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    - ao deixar a prisão, o egresso tem duas opções: tentar uma colocação profissional de baixa renda, assim mesmo tendo que enfrentar o preconceito contra ex-presidiários, ou voltar para sua atividade anterior, bem mais lucrativa. Não é uma opção difícil no Brasil.

    Desse modo, a deformação inicial, típica do processo educacional-formativo dos excluídos, é aperfeiçoada e corroborada pelo Estado, vez que tal deformação ocorre por força da violência social reproduzida no ambiente carcerário, e pelo preconceito verificado após o cumprimento da pena. É a reafirmação do "direito ao crime", novo arcabouço ético-moral que evidencia um pluralismo decorrente das necessidades criadas pela exclusão das pessoas.

    De forma irônica em função do tema de que se trata – e isso merece um momento de reflexão – pode-se constatar que a cadeia educa, sim, mas não com os ensinamentos previstos pelo legislador, e sim com a violência oriunda da própria sociedade, que a prisão apenas reproduz de forma mais perceptível.

    O sistema prisional ensina, de forma competente, uma única lição ao preso: a de que deve aceitar sua volta ao meio degradado onde se encontrava, após cumprir a pena, e lá permanecer sem incomodar a sociedade, ou retornar à prática criminosa como alternativa de evolução material e "social". Na verdade, trata-se tão-somente de instrumento para aperfeiçoar as deformações já verificadas quando do ingresso do preso, que sempre buscou novos meios de sobreviver numa comunidade que não deseja sua existência.

    O segundo fator é a ausência do Estado que, ao não oferecer condições mínimas de existência para uma parcela da população, impede o estabelecimento de um padrão básico de comportamento moral, uma vez que essa parcela populacional é impelida à criação de novos padrões, que possam atender às suas necessidades básicas, sem qualquer viabilidade de atendimento pelos meios oficiais.

    Esses dois fatores – educação deformadora em vários graus e ausência do Estado frente a uma parcela significativa da população – representam o substrato de novas regras, criadas por excluídos para atender aos excluídos, gerando um novo regramento ético-moral que se reflete até mesmo na flexibilização de regras oficiais (por exemplo, no Rio de Janeiro é lícito desrespeitar os semáforos a partir das 20 horas, num reconhecimento explícito da incapacidade estatal de evitar os assaltos nesses locais).

    Contra essa realidade social, as soluções da Lei de Execução Penal para a recuperação de criminosos muito pouco ou nada representam, por que se torna inútil oferecer educação profissionalizante se não se oferece cidadania aos apenados, cidadania esta que, na imensa maioria dos casos, já é negada desde o nascimento dessas pessoas.

    As soluções para esse problema crescente – ineficácia dos meios de reinserção e conseqüente incremento da recidiva criminal – têm que ser tão amplas quanto o problema. Não cabe analisá-las a fundo no âmbito desta monografia de graduação, até mesmo por que não foi esse o objetivo proposto, mas parece evidente que as providências devem ser tomadas principalmente sob o aspecto social, porquanto este é a causa maior do aspecto penal.

    Entretanto, e até mesmo por parecer obrigatória – embora não o seja – uma sugestão mais particularizada, inerente à realidade prisional verificada no país, um passo inicial e gigantesco a ser dado consiste na melhoria das condições das prisões no Brasil, que devem passar a representar locais de repressão e correção, em que o preso é visto como um problema a ser corrigido, e não uma anomalia a ser eliminada. Deve-se ter sempre presente que a amplitude do problema, qual seja a correlação entre a exclusão social e a criminalidade no país, não pode servir de justificativa para a não-adoção de providências singulares e menos abrangentes, como por exemplo a revisão física e institucional das cadeias brasileiras. A inércia em relação ao tema, comumente justificada por sua própria complexidade, não impede que ele continue a existir, e tampouco elide seus efeitos, que se apresentam de forma crescente na realidade brasileira.

    Nesse diapasão, se a sociedade começar a perceber que a cadeia é local para corrigir cidadãos-criminosos, parte de si mesma, e não para esconder pessoas anormais, e dotar as prisões de meios para tal, talvez o problema passe a ser enfrentado. Enquanto isso, como qualquer problema de segurança cuja existência é negada, a reincidência criminal continuará a propiciar, ao homem comum, o medo mal assumido, as grades na rua, os custos de blindagem e a incômoda sensação da eterna impotência.

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    Sobre o autor
    Osmar Aarão Gonçalves de Lima Filho

    bacharel em Direito em Brasília (DF), jornalista, bancário

    Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

    LIMA FILHO, Osmar Aarão Gonçalves. Soluções legais para a recuperação do presidiário no Brasil:: a proposta e a realidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1216, 30 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9101. Acesso em: 26 abr. 2024.

    Mais informações

    Monografia de conclusão do curso de Direito no Centro Universitário do Distrito Federal (UniDF), aprovada com nota máxima.

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