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Homeschooling e a Constituição Federal: voluntariedade política ou impossibilidade normativa?

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O ensino domiciliar para crianças e adolescentes é compatível com a Constituição? Pode ser regulado pelos estados federativos ou requer regulamentação nacional?

Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção. (Paulo Freire)

O homeschooling, também chamado de educação domiciliar, nas palavras de Thomas Spiegler[1], Professor de Sociologia e Pesquisa Social Empírica da Universidade Adventista de Friedensau, estudioso da temática, pode ser definido como[2]: “A abordagem formativa em que o aprendizado se dá (temporária ou permanentemente) no próprio ambiente doméstico dos jovens, sem que se frequente uma escola estatal ou privada. Esse processo de aprendizagem é normalmente realizado pelos pais ou, em menor frequência, por familiares ou pessoas próximas”.

A Associação Nacional de Educação Domiciliar – ANED estima que no ano de 2019 aproximadamente 11 mil famílias utilizam dessa forma de ensino no Brasil[3]. A prática vem crescendo na sociedade brasileira e, com isso, surgem preocupações para os adotantes desse método quanto às implicações jurídicas da escolha, bem como acende um alerta para as autoridades responsáveis por fiscalizar o cumprimento do dever dos pais em efetivar o direito à educação com seus descendentes. As questões têm sido levadas para o campo jurisdicional para que se possa dar uma interpretação da norma jurídica e, assim, pacificar as tensões ali envolvidas.

Dado o viés constitucional do tema (direito à educação), a discussão chegou até a mais alta corte do país, oportunidade em que o Supremo Tribunal Federal foi instado a se manifestar em um caso concreto para verificar se os pais teriam direito de pleitear uma autorização perante a Secretaria de Educação Municipal para que não matriculassem sua filha em recinto escolar, mas garantindo sua educação pelo método de ensino domiciliar, inclusive mediante avaliações seriadas a serem realizadas pelo Município. Originariamente o direito foi pleiteado pela via do Mandado de Segurança, chegando à Suprema Corte por meio do Recurso Extraordinário 888.815/RS[4].

Posteriormente à tese fixada pela Corte Suprema no Tema 822 da Repercussão Geral[5], quando da análise do referido RE, a Câmara Legislativa do Distrito Federal aprovou e o Governador do DF sancionou, a Lei Distrital Nº 6.759/2020[6] que expressamente dispõe: Institui a educação domiciliar no Distrito Federal e dá outras providências. O quadro levanta uma discussão a respeito das competências legislativas dos entes públicos. Poderia o Distrito Federal, com amparo do Art. 24, IX e §3º, legislar sobre ensino domiciliar, ante a ausência de norma federal sobre a matéria? A questão será explorada nas próximas linhas.

Cumpre destacar que todo o debate deve ser lido e interpretado sob a ótica da moderna doutrina da Proteção Integral, introduzida pelo ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente[7], em substituição ao antigo Código de Menores, que estabelecia a Doutrina da Situação Irregular, a fim de equalizar as normas infraconstitucionais que regem o direito infanto-juvenil com o sentido normativo dado pela Constituição Federal sobre o tema.


Direito à Educação: Direito do Menor ou Direito dos Genitores?

O tema Direito à Educação para Crianças e Adolescentes abrange normas de natureza constitucional e infraconstitucional. Em virtude da relevância do seu conteúdo material, o direito à educação ocupa posição ímpar em relação aos demais direitos fundamentais. Traduz-se, em verdade, no direito fundamental que instrumentaliza todos os demais direitos, possibilitando que cada um possa se dar conta de seu papel social, do seu local de fala, do seu poder de questionar e exigir, de ser tratado e respeitado como cidadão[8]. Dessa forma, somente por meio da educação, poderá o titular de direitos fundamentais compreender e exercer os seus demais direitos em sua plenitude.

Nessa linha, Mendes e Branco (2013; p. 655) apresentam uma relação intrigante entre a educação e os impactos desta para o desenvolvimento da democracia[9]:

Nesse ponto, é interessante ressaltar o papel desempenhado por uma educação de qualidade na completa eficácia dos direitos políticos dos cidadãos, principalmente no que se refere aos instrumentos de participação direta, como o referendo e o plebiscito. Isso porque as falhas na formação intelectual da população inibem sua participação no processo político e impedem o aprofundamento da democracia.

Katia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel, em seu Curso do Direito da Criança e do Adolescente[10], diz: “É por meio do processo educacional que cada pessoa começa a forjar sua identidade com a absorção das lições tiradas da convivência diária no ambiente escolar, do conhecimento material e dos valores morais e éticos perpassados”. E encerra[11]:

O dever de educar não se limita a matricular o filho na escola. Vai muito além. Exige acompanhamento constante dos trabalhos, frequências, avaliações, comparecimento às reuniões de pais, enfim, o saudável exercício da paternidade/maternidade responsável, buscando integral formação do menor.

Mais do que apenas estabelecer direitos, os dispositivos constitucionais da matéria também versam sobre a participação solidária do Estado, família e sociedade em concretizar o acesso à educação dos menores (Art. 227 – CRFB/88), estabelece princípios específicos aplicáveis ao direito à educação (Art. 206 – CRFB/88), objetivos a serem alcançados (Art. 205 – CRFB/88 parte final) bem como deveres aos pais (Art. 229 - CRFB/88) e ao Estado (Art. 208 – CRFB/88).

O Art. 205 da Carta Magna dispõe[12]:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (grifos nossos).

Do texto já é possível extrair que tarefa de concretizar o direito à educação é dever do Estado e da Família, conjuntamente, e que esse mister possui fins pré-definidos, quais sejam: (i) o pleno desenvolvimento da pessoa; (ii) preparo para o exercício da cidadania; (iii) qualificação para o trabalho.

Ademais, o Art. 206, estabelece os princípios em que o ensino será ministrado e, dentre eles, encontra-se no inciso II: liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber. Portanto, compreendida a educação domiciliar como uma metodologia de ensino, aparentemente, esta estaria abrangida dentre o leque de possibilidades de caminhos a serem perseguidos para a efetivação do direito previsto no artigo anterior.

Segundo Ferreira (1986; apud Maciel, 2021, p. 128), conceitua-se educação como “o processo de desenvolvimento da capacidade física, intelectual e moral da criança e do ser humano em geral, visando à sua melhor integração individual e social[13]”. A doutrina de Maciel (2021, p. 146) apresenta um conceito de educação à luz do ordenamento jurídico brasileiro: “A educação básica obrigatória é direito público subjetivo indisponível, liquido, certo e exigível do Poder Público e dos pais[14]”.

Já o Art. 227 do Diploma Maior reforça a responsabilidade solidária entre o Estado, família e sociedade para alcançar a plenitude desse direito a crianças e adolescentes, verbis[15]:

Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, (...) à educação (...) à profissionalização (...), além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O Art. 229, por sua vez, reforça a predominância da família nesse papel[16]: Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.

Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2020, p.692), comentam que existem duas faces desse direito, uma universalizante e outra impositiva, reforçando a qualidade normativa do direito à educação na Constituição Federal. Vejamos[17]:

O Art. 205, ao dispor que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade” assume, de plano, uma dupla dimensão, pois tanto reconhece e define um direito (fundamental) de titularidade universal (de todos!), quanto possui um cunho impositivo, na condição de norma impositiva de deveres (...)

Em âmbito infraconstitucional, duas legislações predominam sobre o assunto: o ECA – Lei 8.069/90[18] e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) – Lei 9.394/96[19]. Para fins práticos, não iremos esgotar a literatura desses diplomas, mas apenas delinear os artigos envolvidos, com o intuito de dar ao leitor um horizonte da extensão e complexidade da problemática posta.

Dentro do ECA podemos mencionar o Art. 4º, que reforça o comando constitucional de se assegurar, com absoluta prioridade, o direito à educação de crianças e adolescentes; o Art. 22 impondo a obrigação dos pais com os filhos menores, sobretudo quanto ao seu sustento, guarda e educação e a consequente responsabilidade pela negligência dessas obrigações no Art. 24.

O Capítulo IV de maneira minuciosa regula o Direito à Educação, à Cultura, ao Esporte e ao Lazer. O Art. 53 detalha os direitos relacionados à educação que a criança e o adolescente possuem, temperando com seu parágrafo único[20] os direitos do menor com o direito dos pais no processo educacional.

Cumpre ressaltar que a inscrição do direito à educação no ECA, à luz do principio da proteção integral, é direcionado à criança e ao adolescente. Aos pais e ao Estado cabem os deveres para concretizar esse direito, além de se oportunizar uma participação ativa em sua consecução. Todavia, não são eles os destinatários da norma garante. Circunscreve com clareza a questão Wilson Donizeti Liberati[21] (2004, p.222 apud Maciel):

(...) a obrigatoriedade do ensino fundamental desdobra-se em dois momentos: do Poder Público, que deve oferecer (obrigatoriamente) o serviço essencial e básico da educação; e dos pais, que devem (obrigatoriamente) matricular seus filhos. Temos, portanto, dois atores responsáveis pela garantia do direito à educação, e temos a criança e o adolescente, que são protagonistas de seu direito de acesso, à permanência e ao ensino de qualidade no ensino fundamental.

Na sequência, o Art. 54 determina quais são os deveres do Estado em garantir o direito à educação de crianças e adolescentes. Nesse ínterim, o Art. 55 é taxativo ao prescrever o dever dos genitores[22]: Art. 55. Os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino.

O Estatuto Juvenil, portanto, trata do tema apenas sobre a perspectiva da educação escolarizada, não existindo margem semântica no texto para interpretação extensiva, ampliando as formas de ensino que não na rede regular escolarizada, ainda que se trate diploma eminentemente protetivo dos menores. Quanto a isso, o Fórum Nacional de Justiça Protetiva – FONAJUP, organizado e apoiado pela Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude – ABRAMINJ, debateu o ensino domiciliar no âmbito do ECA, que culminou na elaboração do Enunciado 18 do Fórum. In verbis[23]:

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O ensino domiciliar (homeschooling) viola o direito à convivência comunitária e ao principio do melhor interesse da criança, uma vez que impede sua socialização e controle de evasão escolar pelo Conselho Tutelar, como determinado no Art. 12, VII da Lei 9.394/96. Cabe aos entes federativos oferecer escola pública, gratuita, integral, próxima à residência, da creche ao ensino superior, com valorização dos professores, visando ao pleno desenvolvimento da criança e do adolescente, preparando par ao exercício da cidadania e qualificação para o trabalho.

A LDB é mais incisiva ao versar sobre a frequência escolar. O Art. 5º trata do acesso à educação básica como questão obrigatória (ressaltando o caráter do acesso à educação como direito indisponível) e prevê que o Poder Público deverá, junto aos pais e responsáveis, zelar pela frequência na escola (Art. 5º, §1º, III). O Art. 6º em maior detalhamento do que o Art. 55 do ECA, impera[24]: Art. 6º É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos 4 (quatro) anos de idade.

Nessa linha de se estabelecer uma proposta de escolarização no ordenamento infraconstitucional para o cumprimento da tarefa hercúlea de garantir acesso universal a uma educação de qualidade, o Art. 12, VII da LDB cria uma nova obrigação. Dessa vez, aos estabelecimentos de ensino, que diz[25]:

Art. 12. Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência de:

VII - informar pai e mãe, conviventes ou não com seus filhos, e, se for o caso, os responsáveis legais, sobre a frequência e rendimento dos alunos, bem como sobre a execução da proposta pedagógica da escola;

A determinação legal ressalta a relação entre escola e família para efetivar essa proposta, jungindo o direito dos pais previsto no Art. 53, parágrafo único do ECA, com o dever dos estabelecimentos de ensino de informar sobre a proposta pedagógica utilizada, a fim de viabilizar essa participação ativa da família no processo educacional e promover um diálogo entre o recinto escolar e a família do aluno.

Ainda que se falasse do ensino domiciliar como uma proposta experimental a ser introduzida no país, a premissa esbarra no Art. 81 da LDB que diz[26]: Art. 81. É permitida a organização de cursos ou instituições de ensino experimentais, desde que obedecidas as disposições desta Lei. Somam-se a ele os Art. 30, em relação à educação infantil e o Art.34, a respeito do ensino fundamental. Em relação ao ensino médio há uma flexibilização quanto ao cumprimento da carga horária em sala de aula, admitindo-se o ensino a distância (Art. 36, §11, VI – LDB). Todavia, essa modalidade deve ser realizada mediante uma instituição credenciada, logo, não se adequa à proposta de ensino domiciliar.

Em suma, esse é o panorama normativo positivado no ordenamento que envolve a questão. Podemos concluir, a partir da leitura sistemática dos diplomas apresentados, que a Constituição estabelece o direito à educação como direito de todos (crianças, adolescentes, jovens e adultos) e, ao mesmo tempo, estabelece deveres a serem cumpridos e princípios próprios a esse direito social. Já, do ponto de vista de uma análise conjunta entre as normas infraconstitucionais (LDB e ECA), verifica-se que o destinatário, nesse caso, passa a ser a criança e o adolescente, sendo o Estado e a família agentes garantidores do pleno usufruto desse direito pelo menor, não podendo, todavia, interferir no processo educacional infantil além do previsto e estabelecido em lei, tendo assim ingerência limitada sobre a forma na qual o processo educacional infanto-juvenil será levado a cabo. Tanto não pode o Estado se abster de prover os meios adequados para o acesso à educação, quanto à família não lhe é facultada a decisão de efetuar ou não a matrícula em escola da rede regular de ensino, seja ela pública ou privada.  Assim sendo, para se discutir a questão do ensino domiciliar de crianças e adolescentes, espera-se que sejam levadas em consideração as ponderações expostas a acima, destacadamente a compreensão de que a demanda deve ser solucionada sob o prisma de serem a criança e o adolescente os destinatários da norma jurídica, sendo estes os reais titulares do direito e não a família no exercício de seu poder familiar, consagrando assim a doutrina da proteção integral, afastando-se a possibilidade de se causar um desvirtuamento do diploma protetivo.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NICOLAIDIS, Alexandre Rezende. Homeschooling e a Constituição Federal: voluntariedade política ou impossibilidade normativa?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6575, 2 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91479. Acesso em: 22 dez. 2024.

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