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Homeschooling e a Constituição Federal: voluntariedade política ou impossibilidade normativa?

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Supremo Tribunal Federal: A análise feita no RE-RG 888.815/RS[27]

No ano de 2018, a Suprema Corte Brasileira teve a oportunidade de debater a questão em âmbito plenário e com a incidência de repercussão geral da matéria, i.e. dando efeitos erga omnes à decisão, para que seja aplicado o mesmo entendimento nos demais casos semelhantes. O caso concreto discutia se uma mãe do Município de Canela/RS poderia deixar de cumprir os comandos normativos de matrícula obrigatória da filha por, dentre varias razões, liberdade de crença e de consciência (Art. 5º, VI), liberdade religiosa (Art. 5º, VIII), liberdade pedagógica (Art. 206, II) e melhor interesse para a criança. O mandamus foi impetrado na origem no ano de 2012 e julgado pelo STF somente em 2018, quando a menor já estava com 18 anos.

Em sede plenária a discussão se deu em torno de dois pontos principais: (i) existe dispositivo normativo que ampare a concessão do direito subjetivo de ensino domiciliar?; (ii) o ensino domiciliar é compatível com os objetivos da CRFB/88 em relação ao ensino (pleno desenvolvimento da pessoa, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício da cidadania)?

Diferentes linhas de interpretação foram apresentadas, partindo desde uma mais abrangente (em que existe dispositivo e o método é compatível[28]) a outra mais restritiva (não existe dispositivo e, caso existisse, seria incompatível com a Constituição Federal[29]). A tese que logrou prevalecer no colegiado foi intermediária a essas duas, proferida pelo Min. Alexandre de Moraes, redator para acórdão.

O Min. Luís Roberto Barroso, relator do RE analisado, iniciou o julgamento reconhecendo a prática como compatível com as finalidades e valores constitucionais do direito à educação. Para o ministro, não só o ensino domiciliar estaria de acordo com as prescrições da Constituição Federal como, dentro da quadra de dispositivos apresentados, pode-se concluir que já existe o direito das famílias em requerer a autorização para o ensino em casa. Ante a ausência de lei infraconstitucional específica que regule a matéria, o ministro disserta sobre alguns parâmetros a serem observados pelas Secretarias Municipais de Educação para a concessão do pleito em âmbito administrativo. Fixando a sua tese para o caso no sentido de que, para a realização desse direito, devem ser satisfeitos esses mesmos parâmetros pelo ente público municipal.  

Em sentido oposto ao do relator, outra corrente inaugurada pelo Min. Luiz Fux vai além. Não só inexiste atualmente dispositivo normativo que ampare a concessão do ensino domiciliar, bem como, ainda que o Congresso Nacional editasse lei nesse sentido, a lei já seria inconstitucional em sua nascença. A literalidade do texto constitucional, o principio do pluralismo ideológico, religioso e moral e os deveres de tolerância, bem como a função socializadora da escola vista sob a ótica do principio do melhor interesse da criança, inviabilizariam que o ensino domiciliar fosse compatível com a Carta Magna por não conseguir abarcar esses pressupostos do direito à educação que direcionam o caminho para a conquista dos objetivos traçados no Art. 205 da CRFB/88.

Uma tese intermediária, escorada na solidariedade entre Estado, sociedade e família para a consecução do direito à educação, foi elaborada pelo Min. Alexandre de Moraes. Para ele, da leitura conjunta dos artigos da Constituição envolvidos (Art. 205, 206, 208, 226, 227 e 229), não há, nem implicitamente, a previsão dessa modalidade de ensino, nem tampouco, uma proibição de se aventar o ensino domiciliar como uma possibilidade de direitos. E até o momento, trata-se apenas disso, de uma possibilidade de direitos, cabendo à casa legislativa debater o assunto e chegar a um texto normativo que possa reger essa alternativa dentro do ordenamento jurídico.

Contudo[30], para o ministro, a Constituição Federal só admite uma espécie de “homeschooling condicionado” ou “utilitarista”, como ele mesmo denomina[31]. O ensino domiciliar só poderia ser implementado em decorrência de uma “conveniência circunstancial” e desde que realizado com fiscalização e acompanhamento do Estado, de maneira a viabilizar o direito à educação junto com o dever solidário do Estado em cumprir seu papel nesse assunto.

Quanto à compatibilidade do método com a Constituição Federal, o ministro declara:

A espécie utilitarista da educação domiciliar não é vedada pela Constituição Federal, porém não configura direito público subjetivo do aluno ou de seus pais, uma vez que inexiste sua previsão constitucional expressa, tampouco é autoaplicável. O ensino domiciliar somente existirá se houver criação e regulamentação pelo Congresso Nacional, por meio de lei federal. A criação dessa modalidade de ensino não é uma obrigação congressual, mas sim uma opção válida constitucionalmente na citada modalidade utilitarista e desde que siga todos os princípios e preceitos que a Constituição estabelece de forma obrigatória para o ensino público ou para o ensino privado.

Os demais membros da Corte se aliaram a uma das três correntes, em maior ou menor grau de intensidade, mas o julgamento foi traçado dentro dessas saídas expostas acima, prevalecendo a tese do Min. Alexandre de Moraes. Em síntese, a Corte em exercício de autocontenção declarou que não existe direito público subjetivo do aluno ou de sua família ao ensino domiciliar, inexistente na legislação brasileira[32]. Com isso, estaria o ensino domiciliar condicionado a regulamento federal específico e desde que realizado dentro da esfera do “ensino domiciliar utilitarista”.

Percebe-se que a doutrina, ao discorrer sobre uma eventual compatibilidade do homeschooling para crianças e adolescentes com a Constituição Federal e demais normas do ordenamento, não é uníssona.

Pela linha estritamente constitucional dos Professores Ingo Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, entende-se que a proibição absoluta de alguma modalidade de ensino domiciliar não soa legítima do ponto de vista constitucional[33].

Já pela doutrina do direito infanto-juvenil capitaneada pela Professora Katia Regina, voltada para a análise do diploma infraconstitucional, entende não ser possível a harmonização em decorrência do dever legal dos pais de matricular a criança ou o adolescente sob sua responsabilidade no ensino fundamental, bem como de mantê-lo na escola. Soma-se a essa leitura das normas legais, os dispositivos constitucionais do Art. 208, I e §3º da CRFB/88[34].


Competência legislativa plena na omissão do Poder Legislativo da União?

Apesar de uma discussão secundária travada em plenário, se o ensino domiciliar era ou não compatível com a Constituição, o debate concentrou-se em saber se já existe dispositivo normativo para amparar a opção por essa metodologia. A tese fixada, na linha do redator p/ acórdão Min. Alexandre de Morais, é de não ser possível o ensino domiciliar no Brasil por ausência de norma jurídica que especificamente o regule, tratando-se, portanto, de mera oportunidade de direito que, à conveniência política do legislador federal (e há projetos de lei nesse sentido[35]), poderia ser estabelecido e regulado. Desse modo, a viabilidade do ensino domiciliar no Brasil estaria condicionada a um juízo de voluntariedade política.

Atenta ao entendimento fixado no STF, a Câmara Legislativa do Distrito Federal produziu regramento regional[36] instituindo o homeschooling e estabelecendo outras disposições acerca do tema, tais como cadastro, avaliações, fiscalização e benefícios a esses estudantes como o passe livre estudantil[37].

 Quando da tramitação nesta casa legislativa, três propostas[38] sobre a matéria foram apresentadas após o ano de 2018. Uma de iniciativa do Governador do DF[39], originária de mensagem encaminhada pela Secretaria de Educação ao chefe do poder executivo (PL 423/2019), e as demais de iniciativa parlamentar[40] (PL 1.167/2020 e PL 1.268/2020). Dessa forma, formaram-se duas linhas distintas de justificativa nos projetos de lei, apesar de que em todas elas era mencionada a competência concorrente do Distrito Federal com a União para legislar na matéria de ensino (Art. 24, IX – CRFB/88).

Sobre o tema de competência legislativa concorrente, interpreta a doutrina de Moraes[41] (2006, p.287):

A Constituição Brasileira adotou a competência concorrente não-cumulativa ou vertical, de forma que a competência da União está adstrita ao estabelecimento de normas gerais, devendo os Estados e o Distrito Federal especificá-las, através de suas respectivas leis. É a chamada competência suplementar dos Estados-membros e DF (Art. 24, §2º - CF/88).

No projeto apresentado pelo Poder Executivo, a competência concorrente exercida pelo DF se revestiria de competência plena (Art. 24, §3º - CRFB/88) ante a suposta inexistência de normas gerais de ensino estabelecidas pelo ente federal, e conclui:

(...) Desta forma, a medida de que ora se cuida está amparada pelo texto constitucional, tendo sua eficácia garantida até que ocorra superveniência de lei federal sobre normas gerais, o que suspenderia sua eficácia, no que lhe for contrário, como estabelece o § 4º, do art. 24, da Carta Magna.

Como visto acima, o argumento inserido na justificativa desse projeto de lei não procede, vez que existe norma geral que regula a educação nacional na forma do Art. 22, XXIV da Constituição Federal. A norma, todavia, não comporta a educação domiciliar como metódica de ensino válida de aplicação em todo o território nacional, não cabendo falar de inexistência de lei geral de ensino domiciliar quando já existe lei geral de educação, mas que não admite o ensino domiciliar por incompatibilidade com as disposições ali contidas.

Nesse sentido, a doutrina de Mendes e Branco (2013, p. 804) define com clareza o modelo federativo de competências em matéria legislativa estabelecida pela Carta Magna. Segundo os autores[42]:

A divisão de tarefas esta contemplada nos parágrafos do Art. 24, de onde se extrai que cabe a União editar normas gerais – i.e, normas não exaustivas, leis quadro, princípios amplos, que traçam um plano, sem descer a pormenores. Os Estados-membros e o Distrito Federal podem exercer, com relação às normas gerais, competência suplementar (Art. 24, §2º), o que significa preencher claros, suprir lacunas. Não há falar em preenchimento de lacuna, quando o que os Estados ou o DF fazem é transgredir lei federal já existente. Na falta completa da lei com normas gerais, o Estado pode legislar amplamente, suprindo a inexistência do diploma federal. (...) Caberá ao Estado, depois disso, minudenciar a legislação expedida pelo Congresso Nacional.

Já os projetos de iniciativa parlamentar possuem uma construção mais complexa. Em ambos encontra-se na justificativa do projeto a seguinte redação:

Em que pese competir à União legislar privativamente sobre as diretrizes e bases da educação, é competência concorrente dos Estados e do DF legislarem sobre educação, ensino, e cultura e desporto na forma do art. IX, art. 24 da CF.

Temos, portanto, um federalismo de cooperação assimétrico com autonomia politica dos entes, fato de não haver norma geral da União com tais diretrizes, não pode impedir a oferta da educação de qualidade a uma gestão mais eficiente e particularizada.

(...) Quanto as correntes que divergem sobre o tema adotamos aquela denominada: aceitação com mutação legislativa. Neste sentido, dada aos entraves legislativos é necessário inovar no campo jurídico para que o fenômeno possa ser legítimo.

(...)Sobre o assunto também é o posicionamento da Associação Nacional de Educação Domiciliar -- ANED. Segundo Aguiar, Diretor Jurídico da associação, o ensino domiciliar, como substitutivo do ensino escola, não é proibido expressamente por nenhuma norma no ordenamento jurídico brasileiro, seja constitucional, legal ou regulamentar.

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   Quanto à primeira parte, ainda que se sustente que o federalismo brasileiro seja assimétrico, essa assimetria não encontra guarida na Constituição Federal para o estabelecimento de desigualdades entre brasileiros, como se extrai da leitura do Art. 19, III da Carta Magna. Jose Afonso da Silva (2014, p. 480), ao tratar especificamente sobre esse inciso não deixa duvidas sobre tanto[43]:

A vedação de criar distinções entre brasileiros coliga-se com o princípio da igualdade. Significa que um Estado não pode criar vantagem a favor de seus filhos em detrimento de originários de outros, como não poderá prejudicar filhos de qualquer Estado em relação a filhos de outros, nem filhos de um Município em relação a filhos de outros. A União não poderá beneficiar nem prejudicar filhos de uns Estados ou Municípios ou do Distrito Federal mais do que filhos de outros. Tampouco os Municípios poderão fazê-lo. O ato discriminativo será nulo e a autoridade responsável por ele poderá incidir no crime previsto no art. 5º, XLI. A paridade federativa encontra apoio na vedação de criar preferências entre um Estado federado e outro ou outros, ou entre os Municípios de um Estado e os de outro ou do mesmo Estado, ou entre Estado e Distrito Federal.

  Em relação a uma autonomia do Distrito Federal que não poderia ser restringida para ofertar uma educação de qualidade e particularizada, cabe destacar que a manutenção do pacto federativo implica em renúncia de porções da autonomia dos entes e de suas competências administrativas, legislativas e tributárias. Os limites e a extensão dessas renúncias encontram-se definidos na Constituição Federal pelo legislador constituinte[44]

A respeito da premissa de inexistir vedação legal à instituição do ensino domiciliar como substituto do ensino escolar, a questão já foi abordada na primeira parte deste artigo onde restou demonstrado que o ensino domiciliar não se coaduna com as disposições infraconstitucionais de obrigatoriedade de matricular os menores na rede regular de ensino escolarizada. Os comandos são taxativos a respeito. É verdade que não há a expressão “é vedado o ensino domiciliar” em qualquer norma do ordenamento jurídico legal, mas a substancialidade dos comandos que regem a educação nacional opera em afastamento dessa possibilidade de ensino por incompatibilidade entre as condutas até a existência de legislação federal permissiva superveniente, que modifique o quadro normativo atualmente em vigência.

Por fim, justificam os autores do projeto de lei a existência de mutação legislativa da matéria. Aqui não está claro em saber se o significado foi de uma mutação constitucional pela via legislativa ou de uma mutação do ordenamento jurídico como um todo, introduzindo regramento outrora não previsto. Ficamos com a segunda, vez que é expressamente dito pelos autores que “é necessário inovar para o campo jurídico para que o fenômeno possa ser legitimo”.

A inovação no ordenamento jurídico por meio de regramento regional comporta em preencher lacunas normativas ante a preexistência de norma federal, encontrando aí limites para a inovação jurídica por parte dos Estados e do Distrito Federal. Os dispositivos regionais devem, portanto, estar em consonância com as normas já existentes em âmbito federal sobre a mesma matéria, sob pena de usurpação de competência.

Em acórdão referência sobre essa discussão no âmbito de controle concentrado de constitucionalidade, o Min. Carlos Velloso, relator da ADI 927, aprofunda o significado da expressão “normas gerais” prevista no Art. 24, §1º da CRFB/88 durante seu voto na Medida Cautelar da ação. Segue[45]: Essas “normas gerais” devem apresentar generalidade maior do que apresentam, de regra, as leis. (...) ‘Norma Geral’, tal como aponta a Constituição, tem o sentido de diretriz, de princípio geral.

Como demonstrado acima, a LDB preenche o papel de norma geral, diretriz e principio geral em matéria de educação. O Art. 1º, caput e §1º[46] deixam bem claro o que se compreende por educação e quais formas de exercício do direito à educação estão disciplinados na lei. Da leitura ordenada do propósito da lei com os seus dispositivos inaugurais, temos que a base da educação nacional e suas diretrizes são fundadas na educação escolar e, somente por meio da educação escolarizada, se apresenta uma proposta válida (aos ditames da lei) de concretização desse direito. Essa interpretação é reforçada pela leitura do §2º do Art. 1º, ao aliar a lei infraconstitucional com os objetivos previstos no Art. 205, caput da CRFB/88.

Portanto, não poderia a lei distrital estabelecer o ensino domiciliar sob a alegação de legislar em competência concorrente, quando a norma regional se encontra em dissonância com a norma geral sobre a mesma matéria. Em verdade, trata-se de situação, à luz da doutrina de competências legislativas e da jurisprudência do STF, de transgressão da norma geral preexistente.

Verifica-se uma situação de desacordo material do diploma distrital em relação à LDB e uma inconstitucionalidade formal orgânica em relação à Constituição Federal, por adentrar em competência privativa da União que é a de alterar as bases da educação nacional (Art. 22, XXIV – CRFB/88), possibilitando que essa seja concretizada por outro mecanismo que não o ensino escolar. Somente a União, pelo seu próprio Parlamento, poderia promover essa alteração para alargar as opções, bases e diretrizes da educação nacional e assim incluir a educação domiciliar.

  Em julgado sobre a mesma temática, a ADI 2.667/DF, que discutiu norma distrital que autorizou a emissão de certificado de conclusão de curso e fornecimento de histórico escolar a estudantes do ensino médio aprovados no vestibular, o STF se manifestou no sentido de constatar invasão de competência da União, em acórdão assim ementado[47]:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI DISTRITAL Nº 2.921/2002, QUE DISPÕE SOBRE A EMISSÃO DE CERTIFICADO DE CONCLUSÃO DE CURSO E QUE AUTORIZA O FORNECIMENTO DE HISTÓRICO ESCOLAR PARA ALUNOS DA TERCEIRA SÉRIE DO ENSINO MÉDIO QUE COMPROVAREM APROVAÇÃO EM VESTIBULAR PARA INGRESSO EM CURSO DE NÍVEL SUPERIOR – ATO LEGISLATIVO QUE REDUZ O TEMPO MÍNIMO PARA A CONCLUSÃO DO ENSINO MÉDIO, INSTITUINDO BENEFÍCIO A QUE NÃO TÊM ACESSO OS DEMAIS ESTUDANTES DOMICILIADOS EM OUTRAS UNIDADES DA FEDERAÇÃO – USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA LEGISLATIVA OUTORGADA À UNIÃO FEDERAL PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – CONSIDERAÇÕES EM TORNO DAS LACUNAS PREENCHÍVEIS – NORMA DESTITUÍDA DO NECESSÁRIO COEFICIENTE DE RAZOABILIDADE – OFENSA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE – ATIVIDADE LEGISLATIVA EXERCIDA COM DESVIO DE PODER – INCONSTITUCIONALIDADES FORMAL E MATERIAL DECLARADAS – AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE.

O relator, Min. Celso de Mello, destacou em seu voto (que foi acompanhado de forma unânime pelo plenário) o aspecto da situação não se tratar de lacuna preenchível pela norma distrital, vez que essa inverteu a lógica estabelecida na LDB, criando situação anômala não prevista pela norma federal e garantindo um beneficio apenas aos estudantes do DF, o que não se justifica como peculiaridade de interesse local (Art. 24, §3º). Seguem trechos do voto:

Entendo inexistir, no caso, no que concerne ao tema posto em questão, situação caracterizadora de lacuna preenchível, eis que a União Federal – como se demonstrará – estabeleceu, de modo integral, normas gerais sobre a mesma e específica matéria que foi indevidamente veiculada, pelo Distrito Federal, no diploma legislativo ora impugnado[48].

(...)

Cumpre enfatizar que a Lei distrital ora questionada fez instaurar, no âmbito do Distrito Federal, uma situação anômala que desconhece o significado das diretrizes básicas em tema de ensino – como a obrigatoriedade de currículos e de conteúdos mínimos e a necessidade de observância da carga horária mínima anual de 800 horas, distribuídas por um mínimo de 200 dias de efetivo trabalho escolar – e que introduz , em claro desrespeito ao postulado da isonomia, um inaceitável tratamento discriminatório entre cidadãos brasileiros das diferentes unidades da Federação, pois, nestas, estão eles sujeitos às normas fundamentais sobre ensino e educação legitimamente editadas e concebidas, pela União Federal, para viger, no plano nacional, com o objetivo de assegurar a todos – independentemente de sua localização espacial no território brasileiro – uma formação básica comum . Na realidade, caso mantidas a vigência e a eficácia da Lei distrital nº 2.921/2002, esta culminaria por permitir aos que estudam no Distrito Federal o gozo de direitos a que não têm acesso aqueles que cursam escolas de ensino médio nos demais pontos do território nacional[49].

(...)

E se assim efetivamente o é, não pode a unidade federada (Estado- -membro ou Distrito Federal), mediante legislação autônoma, agindo “ultra vires”, transgredir, como no caso, a legislação fundamental ou de princípios que a União Federal fez editar no desempenho legítimo de sua competência constitucional, de cujo exercício deriva o poder de fixar, validamente, diretrizes e bases gerais pertinentes a determinada matéria (educação e ensino, na espécie). Não vejo como identificar na edição do diploma legislativo ora questionado a existência de razões que pudessem justificar a necessidade de atendimento a peculiaridades locais (que, curiosamente, existiriam apenas na Capital da República!!!), em ordem a autorizar o Distrito Federal a conceder, no plano normativo, aos alunos que aqui estudam benefício extraordinário a que não teriam acesso, em outros pontos do território brasileiro, os demais alunos domiciliados em unidades federadas diversas[50].

Situação diversa não poderia ocorrer em uma eventual análise da Lei Distrital 6.759/2020 em sede de controle concentrado de constitucionalidade, vez que podemos enquadrar os mesmos pressupostos da ratio decidendi da ADI 2.667/DF na norma regional, quais sejam: (i) situação anômala não prevista pela norma federal (LDB); (ii) estipulação legal contrária à lógica instituída de maneira comum a todos os estudantes em âmbito nacional de educação; (iii) criação de benefício/opção exclusiva aos alunos do DF, consubstanciando tratamento desigual aos demais membros da federação; (iv) transgressão da norma regional ao diploma federal sobre a mesma matéria, sob o argumento de legislar de maneira concorrente (Art. 24, IX).

Dessa forma, a norma distrital incide em flagrante inconstitucionalidade formal orgânica, uma vez que contraria disposições expressas da lei federal e a própria lógica normativa estabelecida pela LDB da construção de um ensino escolarizado de forma comum a todos os estudantes brasileiros, invadindo competência privativa da União. Quando se analisa o ensino domiciliar direcionado a crianças e adolescentes, soma-se à equação normativa o Estatuto Juvenil, notadamente em seus artigos 22, 24 e 55, que também obstam para que a norma regional atinja validade normativa plena em harmonia com o ordenamento jurídico em nível federal.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NICOLAIDIS, Alexandre Rezende. Homeschooling e a Constituição Federal: voluntariedade política ou impossibilidade normativa?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6575, 2 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91479. Acesso em: 23 abr. 2024.

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