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A polêmica (i)legalidade do aborto de feto anencéfálico

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4. Problemas médicos suscitados em torno da gestação do feto anencefálico

LUÍS ROBERTO BARROSO [19] procura definir a anencefalia e explicar as razões éticas para a "antecipação terapêutica do parto" antes de relacionar as razões pelas quais a gravidez de um feto anencefálico seria muito mais arriscada do que uma gravidez normal, o que colocaria a vida da mãe (ou, ao menos, sua saúde) em risco.

A anencefalia é conceituada [20] como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico.

Tal situação é incompatível com a vida extra-uterina, sendo fatal em todos os casos. Embora haja relatos esparsos sobre fetos anencefálicos que sobreviveram alguns dias fora do útero materno, o prognóstico é de sobrevida de apenas algumas horas após o parto, sendo que aproximadamente 65% (sessenta e cinco por cento) dos fetos morrem ainda no período intra-uterino [21].

Seria possível identificar o feto anencefálico por meio de uma simples ecografia, com confortável certeza médica.

O ponto alto da argumentação médica apresentada é o de que não há nada que a ciência médica possa fazer quanto ao feto inviável, mas há muito que se possa fazer pelo quadro clínico da gestante, dado que a permanência do feto anencefálico, considerando, sobretudo, os altos índices de óbito intra-uterino, é potencialmente perigosa para a saúde e até para a vida da gestante.

Para ilustrar esta afirmação, são relacionadas diversas complicações no processo gestacional, durante e após a gravidez (observando-se que são listados não apenas argumentos médicos, mas também argumentos sobre inconvenientes práticos) [22]:

a) a manutenção da gestação de feto anencefálico tende a se prolongar além de 40 (quarenta) semanas;

b) sua associação com polihidrâminio (aumento do volume de líquido amniótico) é muito freqüente;

c) associação com doença hipertensiva específica da gestação (DHEG);

d) associação com vasculopatia periférica de estase;

e) alterações do comportamento e psicológicas de grande monta para a gestante;

f) dificuldades obstétricas e complicações no desfecho do parto de anencéfalos de termo;

g) necessidade de apoio psicoterápico no pós-parto e no puerpério;

h) necessidade de registro de nascimento e sepultamento desses recém-nascidos;

i) necessidade de bloqueio de lactação (interromper a amamentação);

j) puerpério com maior incidência de hemorragias maternas por falta de contratilidade uterina;

k) maior incidência de infecções pós-cirúrgicas devido às manobras obstetrícias do parto de termo.

É interessante observar que a argumentação médica articulada por LUÍS ROBERTO BARROSO como base de sua tese jurídica não apresenta dados estatísticos que permitam concluir que, em número realmente significativo de casos, se tenha verificado efetivos danos à saúde ou à vida da gestante. E é de rigor observar que a maioria das complicações médicas descritas não são passíveis de ocorrer apenas na gestação de fetos anencefálicos ou não representam, em si, riscos à mãe (como é o caso da necessidade de interrupção da lactação).

Estas circunstâncias esvaziam significativamente a consistência de seus argumentos, ao menos do ponto de vista da ciência médica: que há maiores riscos e inconvenientes na gestação do feto anencefálico, ninguém duvida.

Mas daí a se extrair a conclusão de que há potencialidade de dano à saúde e à vida da gestante (pondo de lado, por enquanto, o aspecto emocional), vai uma grande distância.

ANA CLELIA DE FREITAS, ANDRÉ MARTINS LARA, FERNANDO RIGOBELLO WILHELMS e FABIO AGNE FAYET [23] também sustentam a "antecipação terapêutica do parto" do anencéfalo, situando a solução do problema na definição do conceito de morte, de modo a reconhecer que, no caso do feto anencefálico, pode-se reconhecer a morte clínica, mas não se pode identificar a morte cerebral:

Para a Medicina, existem dois processos que evidenciam o momento morte: a morte cerebral e a morte clínica. A morte cerebral é a parada total e irreversível das funções encefálicas, em conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida, mesmo que o tronco cerebral esteja temporariamente funcionante. A morte clínica (ou biológica) é a parada irreversível das funções cardio-respiratórias, com parada cardíaca e conseqüente morte cerebral, por falta de irrigação sanguínea, levando a posterior necrose celular. Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), os exames complementares a serem observados para constatação de morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca: ausência de atividade elétrica cerebral, ou ausência de atividade metabólica cerebral, ou ausência de perfusão sanguínea cerebral. (Conselho Federal de Medicina. Resolução n° 1.480, de 08 de Agosto de 1997). Segundo o CFM, em sua Resolução n° 1.752/04, os anencéfalos são natimortos cerebrais, e por não possuírem o córtex, mas apenas o tronco encefálico, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica.

E sendo o anencéfalo o resultado de um processo irreversível, de causa conhecida e sem qualquer possibilidade de sobrevida, por não possuir a parte vital do cérebro, é considerado desde o útero um feto morto cerebral.

Partindo destes critérios diagnósticos, não há que se falar em aborto, pois o aborto é a morte do feto causada pela interrupção da gravidez. Se o feto já estava morto, não é lesado o interesse protegido pela lei penal. Resta, portanto, atípica a conduta da interrupção da gravidez do anencéfalo.

Nesta argumentação, os autores constroem com certa dose de arbítrio uma analogia entre a formação com ausência de cérebro e a morte cerebral, tomando por empréstimo o conceito de morte cerebral utilizado no caput do artigo 3° da Lei de Transplante de Órgãos e Tecidos (Lei n° 9.434/97) [24].

Ocorre que o contexto é diverso e diversa é a sua inspiração: uma coisa é utilizar-se a idéia de morte encefálica para permitir a extração de órgãos, tecidos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento; outra coisa, bem diversa, é manejar-se este conceito para sustentar que o feto anencéfalo não merece qualquer proteção jurídica. Cambiar estas idéias equivale a justificar o egoísmo com o altruísmo.

Aliás, é interessante observar que a própria Lei de Transplantes de Órgãos e Tecidos, embora nem de longe trate do problema do feto anencefálico, tem o cuidado de privilegiar a proteção do feto em relação à liberdade de disposição de órgãos e tecidos pela mãe, ao dispor no § 7° do seu artigo 9° que "É vedado à gestante dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido para ser utilizado em transplante de medula óssea e o ato não oferecer risco à sua saúde ou ao feto.".

Vale insistir neste ponto: parece haver sedutora coerência no raciocínio de que seria admissível privilegiar a saúde da gestante em detrimento da vida do feto anencefálico porque, neste caso, não se negaria que se trate de pessoa: apenas se ajuntaria que se trata de pessoa morta. Mas este raciocínio não é imune a críticas igualmente sedutoras, como a apresentada por VICTOR SANTOS QUEIROZ [25], que parecem superar com vantagem a tese rival:

Mas o que resta evidente – repita-se à exaustão –, é que o conceito de morte encefálica inserto na Lei n° 9.434/97 pressupõe ter havido vida, raciocínio este que é totalmente incompatível com a idéia de supressão do direito à sobrevivência, intra ou extra uterina.

Não bastasse o fato de a morte encefálica ter sido adotada no Brasil apenas para fins de viabilização de realização de transplante de órgãos – pressupondo a prévia existência de vida, portanto -, uma apurada pesquisa relativamente aos procedimentos com vistas à sua caracterização revela que não é viável determiná-la no que concerne aos nascituros.

O Conselho Federal de Medicina, em consulta feita pelo Ministério Público do Estado do Paraná acerca da viabilidade do uso de órgãos de anencéfalos para transplante, atestou, em 9 de maio de 2003, que, apesar de se estar diante de seres que não têm condições de sobrevida e que "não têm uma vida de relação com o mundo exterior", não se lhes pode aplicar "os critérios dos exames complementares de diagnóstico de morte encefálica, constantes nos artigos 6° e 7° da resolução supracitada, sejam os métodos gráficos (eletroencefalograma), sejam os métodos circulatórios, pela ausência do neocórtex, anormalidades da rede vascular cerebral e ausência da calota craniana" (sic).

A razão de ser da inaplicabilidade do conceito de morte encefálica aos fetos anencefálicos, segundo o Conselho Federal de Medicina, está em que "a morte não é um evento, mas sim um processo. O conceito de morte é uma convenção que considera um determinado ponto deste processo". Assim, como o que se pretende com o conceito de morte encefálica é tão-somente determinar um momento a partir do qual é segura a retirada de órgãos do corpo humano para fins de transplante, não se pode afirmar que mesmo a partir dele não haja vida, ainda que minguante.

Interessante, ainda, verificar que o mesmo parecer do Conselho Federal de Medicina reconhece que "os anencéfalos morrem clinicamente durante a primeira semana de vida", de molde a demonstrar de forma definitiva que o conceito de morte encefálica dentro do útero materno não se lhes aplica. Repita-se: se os nascituros anencefálicos falecem logo após o nascimento, é lógico que isto quer dizer que nasceram com vida.

THOMAZ RAFAEL GOLLOP [26] toma posição eqüidistante no tema, se colocando favorável à liberdade de escolha do casal quanto a levar adiante a gestação de feto anencefálico. No contexto de sua argumentação, o professor paulista observa a franca evolução do diagnóstico pré-natal de anomalias fetais, que teria tornado o feto um paciente, sendo certo que é tarefa do médico assegurar a este paciente qualidade de vida.

Aqui, mais uma vez, os argumentos em prol do aborto não são convincentes. Dizer que a medicina evoluiu e que é possível diagnosticar com segurança doenças congênitas, inclusive as sem tratamento, não resolve o – grave – problema de saber se o médico deve eliminar as doenças... eliminando o paciente! E transferir ao casal o poder desta decisão, como se se tratasse de uma questão de preferências pessoais, parece equivaler a um incompreensível amesquinhamento deste grave problema bioético.

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Sem se concentrarem na discussão sob exame, por trabalharem apenas no contexto dos transplantes de tecidos de anencéfalos, MARCO SEGRE e WILLIAM SAAD HOSSNE suscitam outro aspecto médico a considerar: a possibilidade de que o feto anencefálico, devido às malformações, possa estar sofrendo enquanto é mantido vivo [27].

Tomar este aspecto como argumento em prol do aborto, porém, parece inaceitável: praticar uma espécie de eutanásia em quem não pode se manifestar sobre a sua vontade de viver é um autêntico homicídio.

Mesmo diante das inconsistências que se acredita haverem sido apontadas nas posições em prol do aborto, é de rigor reconhecer que não é insustentável a proposta de "interrupção terapêutica do parto".

Evidência disso é que GENIVAL VELOSO DE FRANÇA [28], em texto destinado a criticar precisamente a banalização do aborto, conclui favoravelmente ao aborto de fetos anencéfalos: "alguns casos isolados de abortamento de fetos anencéfalos não constituem modalidade de aborto eugênico, mas, tão-só, uma forma de intervenção em uma vida cientificamente incapaz de existir por si só".

Seja como for, merecem reflexão (se aplicáveis ou não ao caso sob estudo, será definido no curso da exposição) as palavras de JÉROME LEJEUNE, citado pelo próprio GENIVAL VELOSO DE FRANÇA [29]:

O aborto resolve o problema dos pais, não o dos filhos. É ingênuo acreditar que os pais defendem o aborto porque o feto tem um problema irreversível. Na verdade, essas pessoas se servem das doenças detectadas pelos modernos exames pré-natais para que tenham o direito de se ver livres de uma criança com malformação, para não terem problema. É uma lógica curiosa. Quando eu era jovem, era moda dizer que aquele que ama castiga. Nunca acreditei nessa história. Agora, insistem numa nova tese: quem ama mata.


5. Fundamentos jurídicos a favor do aborto do feto anencefálico

Os fundamentos jurídicos a favor do aborto do feto anencefálico são muito bem sintetizados e expostos por LUÍS ROBERTO BARROSO nos seguintes pontos: (i) dignidade da pessoa humana – analogia à tortura; (ii) legalidade, liberdade e autonomia da vontade e (iii) direito à saúde.

A violação à dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da República Federativa do Brasil (artigo 1°, III, da Constituição da República), consistiria no fato de se impor à mulher que leve adiante a gestação de um feto que certamente morrerá, causando-lhe dor, angústia e frustração. Haveria potencial ameaça à integridade física (pelos fatores de risco da gravidez de feto anencéfalo) e à integridade psíquica (pela convivência com a mórbida perspectiva do nascituro), sendo certo que "A convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica", ao passo que o artigo 5°, III, da Constituição da República veda qualquer forma de tortura.

A legalidade, liberdade e autonomia da vontade formam um argumento monolítico: como a legalidade, sob o ponto de vista do particular, implica na admissão de fazer tudo o que não seja proibido em lei e como a proibição do aborto do anencéfalo "não é a ordem jurídica vigente no Brasil, mas outro tipo de consideração", deve ser respeitada a liberdade de escolha e a autonomia da vontade da gestante.

E, para afastar objeções ao pleno exercício desta liberdade, o constitucionalista faz uma colocação incisiva: a restrição à autonomia da vontade da gestante não se justificaria sequer sob o prisma de uma ponderação de valores, porque não há bens jurídicos em conflito (afinal, como o feto inviável não é pessoa, não é depositário de bens jurídicos tuteláveis).

Mas a intuição de advogado antecipa a resistência do interlocutor quanto à inaplicabilidade da técnica da ponderação de bens e interesses, largamente utilizada na moderna dogmática constitucional.

Daí a apresentação pelo constitucionalista carioca de uma ponderação na qual, realmente, não há como não se reconhecer a primazia dos interesses da gestante: "nada impede que se opte por colocar a questão em termos de ponderação de bens ou valores contrapostos: de um lado os direitos fundamentais da mãe e, de outro, a convicção religiosa ou filosófica que defenda a obrigatoriedade de levar a termo a gravidez, mesmo em se tratando de feto inviável".

E percebendo que a válvula de escape da tensão argumentativa de sua proposta de "ponderação" não mostra consistência, o professor arremata: "A ponderação, no entanto, é técnica de decisão que se utiliza quando há colisão de princípios ou de direitos fundamentais, funcionando como uma alternativa à técnica tradicional da subsunção. Não se vislumbra colisão no caso aqui estudado, mas sim uma situação de não subsunção ao Código Penal, vale dizer, de atipicidade da conduta.".

Curioso notar que precisamente esta última colocação tangenciou o ponto no qual o Supremo Tribunal Federal se basearia para revogar a liminar concedida pelo Ministro Marco Aurélio: o fato de se estar criando, por via reflexa, uma nova hipótese de exclusão do crime de aborto (o que, vale notar, traz logicamente implícita a rejeição, pelo STF, do argumento de que a anencefalia geraria risco à vida da gestante).

O direito à saúde da gestante seria resguardado pelo aborto do feto anencéfalo pelos mesmos motivos pelos quais se argumentou que haveria violação à sua dignidade pessoal: a lesão à integridade física e psíquica. Como o conceito de saúde formulado pela Organização Mundial da Saúde engloba o completo bem-estar físico, mental e social, negar à gestante o aborto do feto anencéfalo implicaria em negar-lhe o acesso à saúde.

Em resumo: toda a argumentação jurídica em prol do aborto do feto anencéfalo se baseia na premissa de que o anencéfalo não é (e nunca será) pessoa; desta forma, não há quem rivalize com os interesses da gestante e, postos em interesses da gestante em situação isolada, recorre-se facilmente a todos os fundamentos do bem-estar individual para justificar o aborto.

Cabe observar que a posição de LUÍS ROBERTO BARROSO está longe ser isolada: apenas para citar um exemplo significativo, MIGUEL KFOURI NETO, um reconhecido especialista na responsabilidade civil médica, foi o primeiro juiz a autorizar o aborto de feto anencefálico, em Londrina – PR [30], além de constatar-se, com alguma freqüência, a concessão de salvo-condutos para abortos de fetos anencefálicos.

Em 16 de agosto de 2004, apoiando a iniciativa de que participou o constitucionalista carioca, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil se manifestou publicamente sobre o tema, aprovando por maioria de votos, o relatório e voto do Conselheiro Federal ARX TOURINHO.

O voto reúne de modo muito interessante aspectos médicos, jurídicos e sociológicos ligados ao tema, razão pela qual, sem embargo da eventual discordância com o resultado, vale a pena reproduzir breve trecho [31]:

12. A asserção do clássico Nélson Hungria, a respeito da gravidez extra-uterina e da gravidez molar, pode, perfeitamente, ser aplicada à hipótese do feto anencefálico:"O feto expulso ( para que se caracterize aborto) deve ser produto fisiológico, e não patalógico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto" ( Comentários ao código penal, Forense, 1958, vol. V, p. 207/208).

13. Do ponto de vista médico, o feto anencefálico é uma patologia e como patologia deve ser tratada. Como diz a professora Débora Diniz, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da Universidade de Brasília, "A ausência dos hemisférios cerebrais, ou no linguajar comum "a ausência de cérebro", torna o feto anencéfalo a representação do subumano por excelência. Os subumanos são aqueles que, segundo o sentido dicionarizado do termo, se encontram aquém do nível humano. Ou, como prefere Jacquard, aqueles não aptos a compartilharem da "humanitude", a cultura dos seres humanos." (Aborto seletivo no Brasil e os alvarás judiciais).

14. A Justiça não pode olvidar essa realidade. Não se trata de interrupção de gravidez em razão de eugenia, seletividade ou de sentimentalismo, mas, sim, de circunstância indiscutível de que o feto não terá sobrevida, porque o feto é sub-humano ou inumano. Não se deve olvidar das palavras de Giovanni Berlinguer "O aborto é o desfecho trágico de um conflito em que estão envolvidos de um lado um ser em formação, do outro as aspirações e necessidades de uma mulher" (Bioética cotidiana, Editora UNB, tradução de Lavínia Porciúncula, 2004, p. 47). Ora, se não há, em realidade, ser em formação, de um lado, e aspirações e necessidades de uma mulher, de outro lado, não há desfecho trágico, não há, portanto, aborto. Expele-se um ser malformado. Expele-se uma patologia.

(...)

23. Efetivamente, o princípio da dignidade da pessoa humana é básico na interpretação da ordem normativa e serve de luzeiro para desvendar caminhos, que alguns não vêem ou teimam em não vê-los, sob o enfoque de concepções que, contraditoriamente, negam o mencionado princípio. À gestante de um feto anencefálico basta que se lhe conceda a eficácia do princípio da dignidade da pessoa humana. E, para assim agir, basta que se lhe reconheça o direito de interrupção terapêutica de uma gravidez, marcada pela patologia, que constrange e perturba a ciência e os homens.

24. A ação e a liminar, aqui referidas, em verdade, estão a proteger mulheres desprovidas de recursos financeiros, mulheres pobres, que necessitam ir a juízo, pleiteando alvará autorizador, porque vão utilizar-se dos serviços públicos de saúde. Aquelas que têm condições financeiras sabem qual clínica ou qual médico devem procurar, para a prática interruptiva da gravidez. Não seja a sociedade hipócrita, nem sejam os opositores da liminar ingênuos...Em conclusão, propomos que esta Col. Casa do advogado, mas, também, da liberdade e do respeito à dignidade da pessoa humana, se manifeste pelo direito de a gestante interromper, sempre que assim desejar, uma gravidez, onde em gestação se ache um feto anencefálico, porque o Direito não é, nem pode, ser estático, não é, nem pode, ser contemplativo de uma realidade que passou, ignorando os avanços da ciência.

Mais uma vez, nota-se que a premissa central da argumentação é a desconstituição do caráter humano do feto anencéfalo. Este aspecto merece especial realce: o anencéfalo é tratado não como um ser humano doente, mas, ele mesmo, como a própria doença ou como um "sub-humano". O que causa maior perplexidade ao observador é a circunstância de que esta criticável visão médica é tomada como "indiscutível" por leigos em medicina! Não pode passar despercebida, também, a curiosa perspectiva emancipatória da mulher, no caso do voto referido acima, da mulher pobre. Desvirtua-se o debate moral em favor do velho mote político de que as limitações de direitos são uma dominação social.

É interessante, para concluir o tópico, transcrever o excerto da decisão monorática do Ministro Marco Aurélio de Mello, na ocasião em que concedeu a medida liminar [32], em termos mais suaves, mas calcados nos mesmos fundamentos:

Em questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. Conforme ressaltado na inicial, os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana. O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal. São nove meses de acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, predominando o amor. A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime gestação. As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade. Este o quadro de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem, a natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável em foco. Daí o acolhimento do pleito formulado para, diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-se não só o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, como também o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto. É como decido na espécie.

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Sobre a autora
Guylene Vasques Moreira Martins

pós-graduanda em Direito Médico pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), especialista em Administração Hospitalar pela UNIGRANRIO, membro da Associação de Direito Médico e da Saúde do Estado do Rio de Janeiro (RJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Guylene Vasques Moreira. A polêmica (i)legalidade do aborto de feto anencéfálico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1239, 22 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9190. Acesso em: 25 abr. 2024.

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