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A polêmica (i)legalidade do aborto de feto anencéfálico

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6. Fundamentos jurídicos contra o aborto do anencéfalo

Em parecer concedido à União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro, JOSÉ NÉRI DA SILVEIRA, Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal [33], ofereceu vivo contraponto às idéias que acima foram apresentadas, destacando que:

(i) o feto anencéfalo é um ser humano, pois o ser humano existe desde o momento da concepção, conforme ampla literatura médica, tanto nacional quanto estrangeira;

(ii) há relatos médicos no sentido de que as regiões encefálicas inferiores, (nível do sistema nervoso humano que o feto anencéfalo chega a possuir) operam, geralmente, mas nem sempre, abaixo do nível consciente;

(iii) não como definir o tempo de vida de um feto anencéfalo, havendo um registro, reconhecido pelo governo italiano, de um feto anencéfalo que viveu 14 (quatorze) meses sem recorrer à respiração mecânica;

(iv) a Constituição da República consagra o direito à vida como direito fundamental e, portanto, o feto anencéfalo tem a proteção da República para nascer;

(v) o Código Civil de 1916 (no que foi repetido pelo Código Civil de 2002) consigna expressamente que, embora a personalidade jurídica surja com o nascimento com vida, "a lei põe a salvo os direitos do nascituro", o que só confirma a tradição jurídica nacional em proteger o feto, sem distinção entre fetos saudáveis e fetos portadores de quaisquer anomalias;

(vi) o feto anencéfalo, assim como sua mãe, é protegido pelo princípio fundamental da dignidade da pessoa humana;

(vii) não fere a dignidade da pessoa humana o fato de uma mãe dar à luz a seu filho, ainda que seu filho sofra de uma malformação;

(viii) a interrupção da gravidez, fora dos casos excepcionados em lei, é crime contra a pessoa e a "antecipação terapêutica do parto" de feto anencéfalo não é exceção;

(ix) as lições do falecido Ministro Nelson Hungria, célebre penalista citado na petição inicial da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 54-8/DF, deixam claro que o aborto consiste na interrupção da gravidez, sendo desnecessária a prova da vitalidade do feto;

(x) não existe qualquer sustentação médica ou jurídica para equiparar a gravidez intra-uterina do feto anencéfalo com os casos de gravidez extra-uterina e gravidez molar, estes sim considerados como patologia;

(xi) o que se pretende realizar é um aborto eugênico, definido pela doutrina penal clássica como o "executado ante a suspeita de que o filho virá ao mundo com anomalias graves, por herança dos pais";

(xii) segundo pronunciamentos do Conselho Federal de Medicina e da Associação Nacional dos Ginecologistas e Obstetras, a gravidez de feto anencéfalo não implica, só por si, em risco para a gestante: os riscos são os mesmos de uma gravidez sadia;

(xiii) somente a Constituição da República pode prever a pena de morte, e só o faz na hipótese de guerra declarada;

(xiv) nenhum dos Poderes da República pode afrontar a Constituição e condenar à morte um ser humano por força de uma simples interpretação do Código Penal;

A articulação do raciocínio de JOSÉ NERI DA SILVEIRA, com a qual se concorda inteiramente, prescinde de detalhes para explicitar a coerência no encadeamento das premissas expostas. Mas é oportuno, para maior fidelidade da exposição, transcrever as conclusões do prestigiado ministro aposentado:

Desde a concepção, há vida humana; o feto é ser humano vivo e revestido também da dignidade humana, com a proteção do sistema jurídico, constitucional e legal. Na condição de conceptus sed non natus, adquire personalidade jurídica, na ordem civil, no momento do nascimento com vida, pouco importando que a ciência lhe preveja vida extra-uterina breve. Em nosso ordenamento jurídico, não se concebe distinção também entre seres humanos em desenvolvimento na fase intra-uterina, ainda que se comprovem anomalias ou malformações do feto; todos enquanto se desenvolvem no útero materno são protegidos, em sua vida e dignidade humana, pela Constituição e leis (itens 9 a 12).

3.O aborto, crime contra a vida previsto no Código Penal (arts. 124 a 126), ocorre com a interrupção voluntária da gravidez e morte do feto, em decorrência desse ato (item 13).

4.O feto anencefálico é ser humano vivo e em desenvolvimento no útero materno, embora a anomalia que o acomete, tendo a sua vida e a dignidade humana a proteção da ordem constitucional e legal. A natureza de ser humano, desde a concepção e até a morte, não se altera pela malformação encefálica, que atinge parte das funções encefálicas (as de nível superior ou cortical), subsistindo, porém, as funções do sistema nervoso dos níveis medular e encefálico inferior, na nomenclatura do professor Arthur Guyton, com a presença de tronco encefálico e "porções variáveis do diencéfalo", possuindo organismo vivo, dotado de órgãos e sistemas vitais, conforme a ciência o revela (itens 14 a 17), não cabendo ver, nele, destarte, um morto no ventre materno ou sequer um ser com morte cerebral, na existência extra-uterina (item 17).

5.Constitui crime de aborto, capitulável nos arts. 124 a 126 do Código Penal, conforme a hipótese, a interrupção voluntária da gravidez, com a conseqüente morte do feto anencefálico; o crime não se descaracteriza, na espécie, pela circunstância de haver expectativa de reduzida existência extra-uterina, não sendo sequer possível, desde logo, prever o momento provável do óbito, máxime, em face de tratamentos intensivos utilizáveis (itens 18 a 20).

6.Não se aplica ao aborto voluntário de feto anencefálico o disposto no art. 128, I, do Código Penal, não resultando dessa gestação especial risco à vida ou mesmo à saúde da gestante, conforme a doutrina e pronunciamentos técnicos examinados (itens 21 e 22).

7.O direito à vida, como o primeiro dos direitos fundamentais (CF, art. 5º., caput), é garantido, pela Constituição e ordenamento legal, ao ser humano, desde a concepção até a morte. É ele, assim, assegurado, também ao nascituro, desde a concepção, sem distinção de qualquer natureza ou condições de maior ou menor vitalidade desse ser vivo, na fase intra-uterina, bem assim na vida extra-uterina, quer exista ou não probabilidade de duração breve (itens 11 a 13).

8.Numa ponderação hierárquica dos direitos e valores concernentes à vida e à dignidade humana garantidas também ao nascituro anencefálico, vivo e em desenvolvimento no ventre materno, em face de invocados direitos fundamentais da gestante, quanto à dignidade de pessoa humana, liberdade e autonomia de vontade, no sentido de interromper a gravidez, do que resultaria a morte do feto, - não é possível deixar de fazer prevalecer o direito à vida do nascituro, visto que a vida e a saúde da gestante não correm perigo de grave dano, nem sua dignidade de pessoa humana é ferida pelo fato dessa maternidade, valor constitucionalmente exaltado. A gestante - em mantendo o feto anencefálico em seu ventre, até o nascimento, com vida, do filho por ela gerado, com a grandeza da humanidade e revestido da dignidade de ser humano, - não terá sua dignidade pessoal diminuída, na linha da magna compreensão desse valor na ordem constitucional, nem sua liberdade ameaçada ou comprometida, mas, ao contrário, - revestida do valor constitucional e humano que se confere à maternidade, - cumpre vê-la merecedora de mais respeito e admiração por seus concidadãos, o que significa ter sua dignidade pessoal elevada, porque, acima de tudo, soube amar até o fim e é somente pelo amor que o ser humano pode realizar sua perfeição e felicidade.

Não cabe dar prevalência ao que se pretende na inicial, que instrui a Consulta, porque isso importaria em destruir a vida do ser vivo e em desenvolvimento no útero materno, ou seja, fulminar, irreversivelmente, o direito fundamental à vida do feto anencefálico, antecipando-lhe a morte, eliminando uma vida que, mesmo se houver de ser breve, embora indeterminado o momento do óbito, nem com isso deixará de ser vida humana protegida pela Constituição e as leis, com a nobreza do ser humano (itens 23 a 25).


7. Uma nova dimensão: a doação de órgãos e tecidos

Embora o principal interesse no feto anencéfalo seja o de tutelá-lo enquanto ser humano em si, há um segundo interesse da sociedade em dedicar-lhe especial atenção: o feto anencéfalo pode salvar muitas vidas, por meio de transplante de tecidos e órgãos.

Neste aspecto, a proteção à gestação de fetos anencéfalos deveria ser considerada, no Brasil, como uma autêntica política pública de saúde, considerando que os tecidos e órgãos fetais servem perfeitamente para transplantes infantis, devendo-se inserir as famílias que lidam com a anencefalia em programas de conscientização da importância da doação de órgãos de um ser humano tido como "caso perdido" pelo senso comum. O profundo sentido humanitário desta iniciativa se alinharia com a tão propalada solidariedade social, que, teoricamente, integra o núcleo de decisões fundamentais da República Federativa do Brasil (artigo 3°, inciso I, da Carta de 1988).

Não se trata, neste particular, de lançar os pais do anencéfalo em uma idéia nova e irrefletida. Ao contrário do que se pode pensar, a pesquisa em torno do tema remonta a meados de século passado [34], quando já se registravam transplantes de tecidos fetais nos Estados Unidos, identificando-se em 1968 um transplante de tecido hepático bem-sucedido no tratamento da Síndrome Di George. Mas foi somente no final do século passado, entre os anos oitenta e noventa, que o transplante de tecido fetal começou a assumir posição de destaque, em decorrência das tentativas de tratamento da Doença de Parkinson pelo transplante de células cerebrais do feto [35].

Conforme anotam MARCO SEGRE e WILLIAM SAAD HOSSNE, as células fetais possuem quatro propriedades altamente favoráveis para o êxito em transplantes: capacidade de crescer e proliferar; capacidade de diferenciação celular e tecidual (plasticidade intrínseca); capacidade de produzir fatores de crescimento, estimulando células do receptor e menor antigenicidade (por ausência de marcadores de membrana) do que tecidos adultos e, daí, a menor probabilidade de rejeição.

Entre as indicações terapêuticas para os tecidos fetais, pode-se mencionar: (i) alterações de imunodeficiência; (ii) alterações hematológicas; (iii) alterações endócrinas; (iv) alterações neurológicas; (v) alterações metabólicas e outras alterações genéticas – como, por exemplo, no tratamento da Síndrome de Hurler (uma doença autossômica recessiva em que há deficiência de enzimas lisossômicas, causando progressivo retardo mental, que atualmente atinge cerca de 100 norte-americanos por ano).

Além disso, há inúmeras perspectivas no campo experimental que ainda não foram divulgadas pelos centros de pesquisas e universidades, embora haja notícia, por exemplo, de que a Universidade de Washington está envolvida em dezenas de pesquisas.

É interessante observar, finalmente, que o COMITÊ NACIONAL PARA A BIOÉTICA (Itália) relacionou as objeções mais comuns à difusão do transplante de órgãos de fetos anencéfalos e contribuiu para desmistificar certas reservas ao seu emprego [36]:

a) É infringida a regra do "dead donor rule", que veda a retirada de órgãos vitais de sujeitos vivos.

O anencefálico, enquanto não teve não tem e nem terá consciência, não tem algum interesse em defender a vida. Se a existência é abreviada, não fica nenhuma marca consciente e não se tem melhora ou piora do seu status dependendo da duração da vida.

A exceção à regra não põe em alerta a coletividade ou os outros potenciais doadores: com efeito, eles não podem se sentir ameaçados por tal decisão, porquanto nunca se encontrarão na situação do anencefálico.

Esta decisão não altera o respeito pela vida e as considerações do seu valor. Como o anencefálico não tem nenhum interesse em ver preservada a sua existência é aceita a possibilidade dos pais pedirem a interrupção do tratamento sem que isto reduza o respeito pela vida.

b) problemas relativos à precisão do diagnóstico

O diagnóstico errado de anencefalia é possível principalmente se o diagnóstico não é realizado em estruturas especializadas ou por uma pessoa especificamente capacitada. Propõe-se de superar tais problemas aplicando os critérios de diagnóstico para anencefalia: (i) ausência de uma larga porção óssea da calota craniana; (ii) ausência do escalpo acima do defeito ósseo; (iii) presença de tecido fibro-hemorrágico exposto por causa do defeito craniano; (iv) ausência de hemisférios cerebrais que podem ser reconhecíveis; (v) chamando para confirmar o diagnóstico duas pessoas com particular competência neste campo, não ligados à equipe do centro de transplante. No caso da não certeza do diagnóstico, a retirada dos órgãos seja proibida.

c) argumentações relativas ao "slippery slope argument" (argumento do declive escorregadio), ou seja, de que a decisão abriria as portas a futuros abusos em detrimento de outras categorias de doentes.

A exceção á regra não poderia prejudicar outras categorias (doentes em estado vegetativo persistente, grave dano neurológico, idosos com demência). Deve-se demonstrar que tais perigos existem não somente ter medo da possibilidade. Este risco não é real porque os recém-nascidos anencefálicos são uma categoria totalmente particular, sem história de consciência e nenhuma possibilidade de adquiri-la e isto diferentemente de todas as outras categorias lembradas.

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d) número de transplantes realizáveis

Muitas críticas evidenciaram que a retirada do doador anencefálico influiria de maneira limitadíssima sobre o problema dos transplantes infantis. Na realidade as técnicas de transplantes evoluem, permitindo o uso de órgãos em condições diferentes com relação ao passado e além disto cada doador poderia fornecer quatro órgãos vitais (dois rins, coração e fígado). Ainda que existissem somente 20 doadores por ano, (nos Estados Unidos), como alguns previram, tratar-se-ia sempre de uma vantagem em termos de possibilidade de sobrevivência para outras tantas crianças.


8. Conclusão

A compreensão da natureza do feto anencéfalo depende do exame profundo, sério e conseqüente de questões morais (especialmente as bioéticas) e de técnicas de medicina às quais a comunidade científica brasileira ainda não dedicou a atenção merecida.

O debate jurídico sobre o aborto de fetos anencéfalos não tem sido satisfatoriamente respaldado em pesquisas médicas à altura da seriedade do problema, encontrando-se posições de segmentos importantes no cenário jurídico que se fundam apenas em argumentos de autoridade, tomando por verdades absolutas posições médicas altamente questionáveis do ponto de vista científico.

Em decorrência da forma inadequada com que a maioria dos setores jurídicos tem tratado a questão, vem se consolidando o entendimento (senão equivocado, no mínimo discutível) de que o feto anencéfalo não seria um ser humano, donde se extrai uma postura de total indiferença pelo feto anencéfalo.

Implicações éticas têm sido descartadas sob o argumento rarefeito de que a resistência ao aborto dos fetos anencéfalos se basearia simplesmente em posturas religiosas ou filosóficas, o que constitui uma inaceitável simplificação do problema.

Felizmente, o grave problema ético não se mostra estatisticamente amplo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é o quarto colocado no ranking de nascimento de fetos com anencefalia, registrando uma média de 8,6 fetos anencéfalos para 10.000 crianças nascidas vivas. Os países com maior índice de fetos anencéfalos são o México, o Chile e o Paraguai.

Isto não significa, por outro lado, que a questão não mereça prioridade na discussão moral, jurídica e médica: em verdade, a discussão sobre o tema leva o interlocutor a questionar o próprio sentido e alcance da dignidade da pessoa humana, expressão que não apenas veicula um princípio fundamental na República Federativa do Brasil, mas, principalmente, sintetiza a busca por uma definição do conteúdo da etérea e indelével busca do homem pelo sentido da vida.

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Sobre a autora
Guylene Vasques Moreira Martins

pós-graduanda em Direito Médico pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), especialista em Administração Hospitalar pela UNIGRANRIO, membro da Associação de Direito Médico e da Saúde do Estado do Rio de Janeiro (RJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Guylene Vasques Moreira. A polêmica (i)legalidade do aborto de feto anencéfálico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1239, 22 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9190. Acesso em: 23 abr. 2024.

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