Em matéria de direito individual homogêneo, é cediço que nada impede que o beneficiário de ação coletiva busque executar individualmente a sentença da ação principal, incluindo sua liquidação, consoante estabelecido no artigo 97, do Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual “A liquidação e a execução de sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados de que trata o art. 82”.
Dentro desse contexto, é possível afirmar que a liquidação e a execução da sentença coletiva, quando divisível o objeto, podem ser promovidas tanto individualmente pelos interessados, como coletivamente através de substituto processual legalmente definido por força do art. 97 do CDC acima transcrito.
Entretanto, uma vez sendo propostas a liquidação ou a execução de forma coletiva, para que não haja litispendência com a liquidação ou a execução individual da sentença proferida em ação coletiva de conhecimento, é necessário que o substituído requeira expressamente a desistência da liquidação ou execução no processo coletivo para evitar o trâmite simultâneo com identidade de beneficiários.
Sobre a matéria, o Superior Tribunal de Justiça, inclusive, através da Quarta Turma, solidificou o entendimento de que, “nas ações coletivas, por se tratar de substituição processual por legitimado extraordinário, não é necessária a presença das mesmas partes para configuração da litispendência, devendo somente ser observada a identidade dos possíveis beneficiários do resultado das sentenças, dos pedidos e da causa de pedir”.
Confira-se, a propósito, a ementa do julgado:
RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IDENTIDADE DE BENEFICIÁRIOS. LEGITIMADO EXTRAORDINÁRIO. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. LITISPENDÊNCIA ENTRE AÇÕES COLETIVAS. OCORRÊNCIA. RECURSO PROVIDO.
1. Segundo a jurisprudência do STJ, nas ações coletivas, para análise da configuração de litispendência, a identidade das partes deve ser aferida sob a ótica dos possíveis beneficiários do resultado das sentenças, tendo em vista tratar-se de substituição processual por legitimado extraordinário.
2. Recurso especial provido para extinguir o processo sem julgamento do mérito.
(REsp 1726147/SP, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 14/05/2019, DJe 21/05/2019)
Ou seja, como o substituto processual apesar de atuar em nome próprio está na defesa de direito alheio, o instituto da litispendência, para fins de identidade de parte, deve ser aferido através da análise de quem seriam os titulares do direito vindicado e não de quem estaria ocupando o pólo ativo da demanda, de modo que, ainda que haja substituto processual no pólo ativo seria possível o reconhecimento da litispendência através da identidade de beneficiários, que são os reais titulares do direito discutido.
Nesse toar, ainda que a jurisprudência supra refira-se a ações coletivas de conhecimento, o raciocínio deve ser o mesmo em caso de liquidação/execução, de modo que, se não houver a exclusão do beneficiário no processo de liquidação ou execução coletivas promovido pelo substituto processual, e tendo ele ajuizado liquidação ou execução individuais, verifica-se a identidade de partes, ou seja, de beneficiários do resultado da sentença coletiva, bem como identidade do pedido e da causa de pedir, configurando-se a litispendência entre a liquidação/execução coletiva e a liquidação/execução individual, com possibilidade de pagamento em duplicidade com prejuízo ao devedor.
Contudo, tal raciocínio não é utilizado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em se tratando de execução e liquidação, posto que a Corte Superior manifesta-se no sentido de que “Não se configura litispendência quando o beneficiário de ação coletiva busca executar individualmente a sentença da ação principal, mesmo já havendo execução pelo ente sindical que encabeçara a ação”, consoante ementa a seguir transcrita:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. ART. 535, II, DO CPC. VIOLAÇÃO. AUSÊNCIA. AÇÃO COLETIVA. EXECUÇÕES INDIVIDUAIS. POSSIBILIDADE. LITISPENDÊNCIA. NÃO OCORRÊNCIA.
1. Não há ofensa ao art. 535, II, do CPC, porquanto o Tribunal de origem decidiu, fundamentadamente, as questões postas ao seu exame, cumprindo ressaltar, ainda, que o magistrado não está obrigado a responder a todas as questões levantadas pelas partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para decidir.
2. É firme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que: "Não se configura litispendência quando o beneficiário de ação coletiva busca executar individualmente a sentença da ação principal, mesmo já havendo execução pelo ente sindical que encabeçara a ação. Inteligência do artigo 219 do Código de Processo Civil e 97 e 98 do Código de Defesa do Consumidor. Precedentes: REsp 730.869/DF, Rel. Min. LAURITA VAZ, DJ de 2/5/2007; AgRg no REsp 774.033/RS, Rel. Min. FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, DJ de 20/3/2006; REsp 487.202/RJ, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, DJ de 24/5/2004" (REsp 995.932/RS, Rel. Min. CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, DJe 4/6/2008).
3. Tal posicionamento leva em consideração a eficácia que decorre da ação coletiva visando à defesa de interesses individuais homogêneos, a qual atinge os que foram alcançados pela substituição processual, entendida à luz do princípio da máxima amplitude da tutela coletiva.
4. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no AgRg no Ag 1186483/RJ, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 03/05/2012, DJe 16/05/2012)
O STJ manteve a conclusão a que chegou o acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro assim ementado:
Agravo de instrumento. Execução de título judicial. Ação proposta por associação de funcionários julgada procedente. Execuções individuais. Decisão que entendeu possível cada autor promover a execução, ressalvados os honorários dos advogados que funcionaram no processo de conhecimento, que deve ser mantida. Os créditos das verbas de produtividade são pessoais, pelo que não há impedimento em cada beneficiário executar o Município, ainda que se tenha que abater tais valores da execução promovida pela associação. A verba honorária pertence aos advogados e foi resguardada. Recurso não provido.
No acórdão supra, restou consignada a necessidade de abatimento dos valores da execução individual na execução coletiva, ressalvando-se os honorários dos advogados que funcionaram no processo coletivo de conhecimento, sendo reconhecida a possibilidade de ajuizamento de execução individual mesmo quando já houver execução coletiva.
Em situação semelhante, o STJ manifestou-se de igual forma mais recentemente:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO COLETIVA. EXECUÇÕES INDIVIDUAIS. POSSIBILIDADE. LITISPENDÊNCIA. NÃO OCORRÊNCIA.
1. A jurisprudência do STJ entende que "Não se configura litispendência quando o beneficiário de ação coletiva busca executar individualmente a sentença da ação principal, mesmo já havendo execução pelo ente sindical que encabeçara a ação."(REsp 995.932/RS, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJe 4/6/2008).
2. Recurso Especial não provido.
(REsp 1639676/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/02/2017, DJe 06/03/2017)
Nesse caso, o STJ manteve a conclusão a que chegou o acórdão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO COLETIVA. LEGITIMIDADE DO SINDICATO PARA A LIQUIDAÇÃO E A EXECUÇÃO INDIVIDUAL. INEXISTÊNCIA DE LITISPENDÊNCIA. DESISTÊNCIA DA EXECUÇÃO COLETIVA. LIBERDADE DE ADESÃO. INTERESSE. 1. A legitimação extraordinária dos sindicatos para a ação coletiva abrange a liquidação e a execução dos créditos nela reconhecidos. Precedentes do STF e do STJ. 2. A liquidação e a execução da sentença de tutela coletiva podem ser realizadas individualmente pelos interessados, através do sindicato (art. 97 do CDC). A execução proposta de forma coletiva não gera, por si só, litispendência com a execução individual da sentença. 3. Subsiste o interesse de agir na execução individual do título judicial obtido na tutela coletiva, porquanto os substituídos na execução coletiva têm o direito de optar pelo prosseguimento da execução individual, com a consequente desistência da execução no processo coletivo, em razão do princípio da integral liberdade de adesão. 4. Nesse contexto mostra-se equivocada a extinção do feito, ante a possibilidade de provimento de eventual recurso interposto na execução coletiva. A fim de se prevenir a concessão de benefício em dobro aos autores da execução individual, bastava que fosse oficiado o Juízo da ação coletiva para que efetivasse a retirada destes da lista de beneficiários no feito coletivo. 5. Apelo conhecido e provido.
Na situação em epígrafe, foi reconhecida pelo TRF da 2ª Região a inexistência de litispendência entre execução coletiva e execução individual em razão do direito de opção do substituído pelo prosseguimento da execução individual, com a consequente desistência da execução coletiva por força do princípio da integral liberdade de adesão, e, como medida preventiva ao pagamento em dobro, restou consignado que bastaria o oficiamento ao Juízo da ação coletiva para que promovesse a exclusão do beneficiário da execução coletiva.
Data venia o entendimento supramencionado, a litispendência existe, tanto é que há necessidade de exclusão do beneficiário da execução coletiva para fins de se evitar duplicidade de pagamentos, entretanto, por se tratar de liquidação/execução coletiva e liquidação/execução individual que tramitam concomitantemente, é possível a flexibilização do instituto da litispendência no sentido de que o vício pode ser sanado ao se determinar a exclusão do beneficiário da liquidação/execução coletiva.
O artigo 98 do CDC, ao tratar especificamente de execução, determina que “A execução poderá ser coletiva, sendo promovida pelos legitimados de que trata o art. 82, abrangendo as vítimas cujas indenizações já tiveram sido fixadas em sentença de liquidação, sem prejuízo do ajuizamento de outras execuções”.
Contudo, o preceptivo alhures mencionado apenas indica que a execução pode ser coletiva e abrange as vítimas cujas indenizações foram fixadas na sentença coletiva de liquidação, sem prejuízo das execuções individuais daquelas vítimas, garantindo o direito do beneficiário de optar em executar o seu direito individualmente, de modo que isso não quer dizer que existe possibilidade de trâmite simultâneo de execução individual e de execução coletiva em relação à mesma vítima, posto que o valor executado individualmente deve ser necessariamente abatido da execução coletiva.
A regra prevista no artigo 104 do CDC até poderia afastar a litispendência em matéria de direito individual homogêneo, posto que autoriza o trâmite simultâneo entre ação individual e coletiva ao estabelecer que os autores das ações individuais somente se beneficiarão da coisa julgada erga omnes no caso de procedência do pedido na ação coletiva quando requerida a desistência da ação individual no prazo de trinta dias a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.
Mas sua aplicação restringe-se às ações coletivas de conhecimento, que instauram crise de conhecimento e ainda inexiste norma jurídica concreta para a resolução da controvérsia.
Diferentemente do que ocorre na liquidação e execução de sentença, nas quais a norma jurídica concreta já foi estabelecida e o requerente já foi beneficiado pela coisa julgada na ação coletiva, instaurando-se crise de satisfação que enseja o mero pagamento de verba já individualizada, e gera a possibilidade de pagamento em duplicidade, com prejuízo ao devedor, daí porque o art. 97 do CDC, que trata especificamente de liquidação e execução de sentença, autoriza a alternatividade de legitimados somente para o ajuizamento, não podendo se confundir com ajuizamento simultâneo por mais de um legitimado, situação não autorizada por lei.
Logo, sendo a liquidação/execução individual fundada em direito individual homogêneo, portanto, de natureza divisível, e havendo a identidade de beneficiário do resultado da sentença, do pedido e da causa de pedir, é patente a litispendência em razão da inexistência de pedido expresso de exclusão do beneficiário do processo judicial de liquidação coletiva, com a possibilidade de sanar o vício ao se determinar a exclusão do beneficiário da liquidação/execução coletiva.