RESUMO: O presente analisa a contemporaneidade da proposta de regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) como opção para distribuir a conta da crise econômica provocada pelo coronavírus. Embora seja uma possibilidade prevista no art. 153, VII, da Constituição Federal de 1988, o tributo em comento nunca foi regulamento e instituído em solo pátrio. O cenário pandêmico, que acentuou as desigualdades sociais e aumentou a pobreza no mundo, reacendeu a pauta na política brasileira. Tanto que tramita na Câmara dos Deputados projeto de lei com a finalidade de taxação sobre grandes fortunas. Complementarmente, estimativas mais recentes estabelecem que a riqueza dos bilionários brasileiros cresceu mesmo em meio a grave crise sanitária mundial. Diante de tais perspectivas, abordam-se no presente o tributo objeto das discussões, bem como sua realidade no Brasil e na experiência internacional, buscando ponderar se, de fato, tal imposto, caso instituído, tem potencial para contribuir para a recuperação econômica do país.
Palavras-chave: Direito Tributário; Reforma; Pandemia; Crise; IGF.
SUMÁRIO: Considerações iniciais. Metodologia. 1. Controvérsias e definições. 2. Experiência internacional. Conclusão. Referências.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O advento da Covid-19 fez emergirem novamente as discussões sobre hipotética normatização do nominado Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), tributo previsto no inciso VII, do artigo 153, da Carta Política brasileira, mas sem regulamentação por lei complementar mesmo passadas mais de três décadas da promulgação do comando constitucional. Em março de 2020, pouco depois da eclosão da crise sanitária que tem assolado o planeta causando milhares de mortes, foi protocolado na Câmara dos Deputados o projeto de lei nº 924/20. Em sua ementa, o referido informa que, sendo instituído, o IGF se destinaria exclusivamente ao combate da pandemia. Contudo, até o fechamento da pesquisa, no final da primeira quinzena de abril de 2021, a proposta aguardava despacho do presidente da Casa Legislativa, inexistindo sequer previsão de tramitação.
Trata-se, a bem da verdade, de iniciativa semelhante à outra protocolada no Senado Federal em 2019, o projeto de Lei Complementar nº 183. Este, segundo explicação da ementa, instituiria o IGF, estabelecendo que o fato gerador de incidência do tributo consistiria na titularidade de patrimônio líquido de valor superior a 12 mil vezes o limite mensal de isenção do Imposto de Renda de Pessoa Física, cuja alíquota varia de 0,5% a 1%, de acordo com o valor do patrimônio. Consulta pública ao endereço eletrônico da proposta revelou que, até o início de abril de 2021, o projeto aguardava a designação do relator.
O amplo preâmbulo permite intuir que, apesar da potencial arrecadação e da urgência de recursos que permitam amenizar os efeitos econômicos da crise gerada pelo coronavírus, a tributação da parcela mais rica da sociedade brasileira encontra resistência política ao tema. Oportuniza, igualmente, desnudar o assunto e explicitar não somente os aspectos técnicos da matéria, mas também as discussões que motivam eventuais objeções. Neste sentido, questões como as justificativas para não tributar o patrimônio de bilionários e como outros países do mundo lidam com o tema parecem um excelente ponto de reflexão. Busquemos, portanto, enfrentá-las iniciando com a compreensão do referido imposto e suas implicações.
MATERIAL E MÉTODOS
Dada a natureza da temática em estudo, a metodologia adotada nesta produção científica intermediária obedeceu alguns passos considerados necessários para se atingir o objetivo da pesquisa. Além do cogente levantamento bibliográfico, leitura e anotações preliminares, buscou-se fundamentá-la igualmente na sistematização de ideias. Trata-se, portanto, de investigação caracterizada pelo exame bibliográfico e doutrinário, mas também por apreciação a pesquisas recentes. Destarte, durante duas semanas foram coletados dados para subsidiar o projeto.
1. CONTROVÉRSIAS E DEFINIÇÕES
Prelecionam os professores Marcos Aurélio Pereira Valadão e Valcir Gassen (2020, p. 181) que “todos os impostos previstos na Constituição Federal foram instituídos exceto o imposto sobre grandes fortunas de competência da União”. A observação dos autores lança luz sobre uma questão antiga que divide os tributaristas e outros estudiosos.
Como explica o mestre em Administração Pública e contador Zulmir Ivânio Breda (2021), presidente do Conselho Federal de Contabilidade (CFC), trata-se de “assunto controverso há muito tempo e no mundo todo”, lembrando ainda que existem “defensores e detratores desse tipo de tributo”.
Aqueles que defendem o imposto sobre a fortuna argumentam, resumidamente, que o IGF fornece uma solução para amenizar os contínuos déficits orçamentários e alavancar o crescimento do PIB dos países, ainda contribuindo para atenuar o abismo da desigualdade econômica com a distribuição de renda. Do lado oposto, há argumentos que apontam para os riscos envolvidos com a adoção do IGF, como o de fuga de capital e o de aumento da evasão fiscal. Além disso, alega-se que essa arrecadação não é significativa em relação ao total de receitas tributárias e há custos administrativos para a sua fiscalização (BREDA, 2021)
Dito isto, rememoram Valadão e Gassen (2020, p. 182-183) que o IGF foi previsto em 1988 na Constituição Federal brasileira, não tendo precedentes nas constituições anteriores. Destacam os pesquisadores igualmente que o imposto encontra-se “meio que oculto nas discussões acerca do tema tributação, como por exemplo, as discussões em torno da necessidade ou não de uma reforma tributária”.
Para ambos, merece atenção o fato de que o IGF não tem ocupado a pauta política e muito menos a pauta da imprensa nacional (p. 183). Teorizam os autores que muito provavelmente porque os meios de comunicação no Brasil estão concentrados em mãos de poucas famílias “que seriam os potenciais contribuintes deste imposto, e também porque, em sua maioria, os representantes populares que aprovariam tais tributos seriam afetados por ele, o que não aconteceria com a maioria da população”.
Para além da inevitável polêmica, cogente algumas ponderações que permitam compreender melhor a natureza do IGF. Como explica o constitucionalista Sylvio Motta (2021, p. 1.059), o tributo em comento, nos termos da previsão constitucional, deve ser instituído por lei complementar. “Apesar de não ser questão pacífica, entende-se majoritariamente que a lei complementar não se limitará, ao criar o tributo, a estabelecer seu fato gerador, sua base de cálculo e contribuintes”.
O próprio professor esclarece (p. 1.059) que, do contrário, “não seria necessária a taxatividade da exigência do inciso VII do art. 153, bastando a previsão do art. 146, a, [...], que exige norma desse tope para regular tais matérias com relação aos impostos previstos na Constituição”. Assim sendo, assevera que:
Com base nesse raciocínio, no caso do imposto sobre grandes fortunas prepondera o entendimento de que a lei complementar irá além, definindo todos os elementos do tributo, não somente seu fato gerador, sua base de cálculo e contribuintes. É oportuno ressaltar que o imposto sobre grandes fortunas, os impostos e as contribuições de seguridade social inseridos na competência residual da União e os empréstimos compulsórios correspondem às únicas hipóteses em que a Constituição requer lei complementar para que seja criado um tributo. Como não se admite, no caso, a utilização de lei ordinária, está vedado o uso, consequentemente, de medida provisória (Mota, 2021, p. 1.060)
O tributarista Alexandre Mazza, por sua vez, aponta que o IGF, ao ser instituído, deverá submeter-se tanto à anterioridade anual quanto à nonagesimal. “Importante destacar ainda que, como a competência tributária é imprescritível, a União não tem prazo para criar o IGF, e, mesmo que sua instituição demore décadas para efetivar-se, a competência não se deslocará a outra entidade federativa” (MAZZA, 2020, p. 450).
Por fim, na esteira do que ensina Eduardo Sabbag (2021, p. 211), válido lembrar, em conclusão ao capítulo, que o art. 177, II, da Lei nº 5.172/66 (Código Tributário Nacional) prevê a impossibilidade de concessão da isenção aos tributos cuja competência tributária não tenha sido exercida. Nessa medida, como preleciona o mestre, “não se pode isentar um ‘imposto sobre grandes fortunas’, haja vista o fato de que a competência tributária para a sua instituição não foi ainda exercida pela União”.
Na mesma linha, informa o professor Roberto Caparroz (2020, p. 326) que não é vedada a criação do IGF, pois não há norma de imunidade nesse sentido. Assim, aduz que cabe à União, no exercício da sua competência, decidir pela criação ou não do tributo, mediante processo legislativo adequado, mas “sempre que o ente público opta por não criar o tributo, ainda que isso seja possível, nos deparamos com um caso de não incidência (o tributo poderia existir, mas não houve o exercício da competência, como no caso do IGF)”.
2. EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL
O advogado constitucionalista Uadi Lammêgo Bulos (2018, p. 1489) esclarece que existem experiências internacionais com relação à regulamentação do imposto sobre grandes fortunas. Segundo informa no livro “Curso de Direito Constitucional”, tal tributo foi instituído, por exemplo, “na Espanha e na França sob a veste dos impostos sobre o luxo e sobre os grandes patrimônios”.
Outra observação pertinente sobre a experiência internacional em relação à tributação dos mais ricos deriva da pesquisa de Valadão e Gassen (2020, p. 183). Como lembram, “embora os EUA não tenha tributo sobre grandes fortunas federal, alguns Estados cobram impostos sobre patrimônio (com um escopo maior que o patrimônio imobiliário)”.
Adverte Breda (2021), contudo, que sempre que o assunto tributação de fortunas volta à mesa, uma carta é lançada: a experiência internacional com esse tipo de cobrança não tem sido positiva. Como ressalta, “dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostram que, dos seus 37 países membros, 12 já instituíram a cobrança do imposto sobre fortunas”. Da relação fazem parte, além das já citadas Espanha e França, Áustria, Alemanha, Dinamarca, Finlândia, Islândia, Luxemburgo, Noruega, Países Baixos, Suécia e Suíça. “Desses, em 2020, apenas Espanha, Noruega e Suíça mantinham o tributo – com alíquotas nominais progressivas e incidentes sobre as fortunas líquidas de pessoas físicas” (BREDA, 2021).
Sobre a experiência brasileira, Valadão e Gassen (p. 183) fazem importante crítica. Asseveram os autores que:
As poucas vezes que a instituição do IGF veio à pauta os argumentos contrários a sua instituição vieram de forma contundente afirmando que o custo administrativo deste tipo de tributo é muito alto, que afugentaria do Brasil as grandes fortunas, pois os contribuintes buscariam paraísos fiscais, que é difícil determinar qual será a base de cálculo, que aumentaria a sonegação fiscal pela ocultação do patrimônio, que não se tem garantia de que as receitas tributárias do IGF seriam corretamente aplicadas, enfim, uma sorte de argumentos com baixo grau de racionalidade e com forte grau ideológico da elite econômica brasileira. Embora haja argumentos de cunho econômico como a estrutura de formação capital, vis a vis o investimento público e privado, não se nota muita racionalidade nas discussões em torno do IGF (VALADÃO; GASSEN, 2020, p. 183)
Nota-se pelo exposto que não faltam justificativas dos que buscam inviabilizar a regulamentação do IGF em território brasileiro. Breda (2021) adiciona ainda outros pontos à discussão, ao comentar os citados dados da OCDE. “Esses dados da OCDE, analisados em relatório elaborado pelo Insper, mostram que, nos países em que o imposto foi extinto, havia preocupações quanto à eficiência arrecadatória e aos custos administrativos ante as receitas geradas”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como visto ao longo deste breve ensaio a discussão sobre a regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas é temática antiga e contraditória que emerge novamente no Brasil no contexto da pandemia. Para os defensores da proposta, o IGF apresenta-se como potencial solução para mitigar os graves efeitos econômicos provocados pela crise sanitária. Seus detratores, contudo, descortinam dados da experiência internacional que permitem, no mínimo, questionar a efetividade da ideia.
Por certo, há que se considerar as lições que podem ser extraídas dos resultados obtidos nos países que implantaram o tributo e, posteriormente, o aboliram. De igual modo é preciso analisar a perspectiva das experiências espanhola, norueguesa e suíça.
Fato é que sem o aprofundamento das discussões e uma colossal vontade política, impossível conceber que qualquer proposta de regulamentação, ainda que bem intencionada, consiga êxito em solo pátrio. Como argumenta o tributarista Hugo de Brito Machado Segundo (2019, p. 287), o IGF, no Brasil é “exemplo raro de competência tributária não exercitada, motivado por razões exclusivamente políticas”.
Duas observações do autor merecem nota final, pela capacidade de afastar parte dos argumentos daqueles que resistem à regulamentação. Primeiro (p. 288), “quanto à fuga das grandes fortunas, não seria esse tributo, cujas alíquotas não devem ser elevadas – como de resto se dá com os tributos incidentes sobre o patrimônio em geral – o grande responsável por [estas]”.
Segundo (p. 288), “o fato de a arrecadação obtida com esse imposto não ser significativa, por sua vez, não é razão para que não seja instituído [...], porque seria ela, de qualquer modo, alguma arrecadação”. Ademais, como aduz, “[...] sua principal finalidade não seria suprir os cofres públicos com abundância de recursos, mas realizar o princípio da capacidade contributiva e incrementar a legitimidade do sistema tributário brasileiro”.
Parecem motivos suficientes para embasar as discussões preliminares sobre as propostas mencionadas no começo da pesquisa e que repousam no Congresso Nacional à espera de disposição política.
REFERÊNCIAS
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