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Visão panorâmica da organização judiciária inglesa

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4. ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA INGLESA E A REALIDADE BRASILEIRA

Não haveria razão para elaborar este trabalho se não trouxéssemos o assunto estudado para um plano comparativo com a nossa realidade, já que é ponto pacífico a capacidade que tem o Direito Comparado de favorecer a compreensão mais profunda do nosso próprio sistema através de uma análise mais correta - porque feita de uma perspectiva externa - a proteção e preservação de institutos constantes de nossa escola jurídica e a adoção de institutos externos para o aperfeiçoamento de nosso sistema jurídico.

O estudo da organização judiciária inglesa revela-nos uma sociedade que harmonizou de forma proficiente a relação entre o Poder Judiciário e a comunidade, de um modo paradoxal. A princípio operando uma descentralização das funções jurisdicionais para níveis inferiores, aplicando dessa forma o princípio da justiça local, e resolvendo, com isso, a maior parte das questões antes que estas alcancem os tribunais superiores; em segundo lugar, e paralelo ao primeiro processo, não se pode negar a concentração das funções judiciárias, a priori com a compactação de todas as antigas jurisdições num único corpo que é o Supremo Tribunal de Judicatura, compactação e centralização que tem sido a orientação histórica do Common Law, centralização que se opera com o soerguimento de um legítimo e respeitável Poder Judiciário, livre de qualquer influência de outro Poder, partindo do fundamento essencial do sistema inglês, que é a jurisprudência e não a lei.

O Direito portanto, como bem destaca René David, tem sido elaborado, desde mais de cinco séculos atrás, pelos juízes, e o Poder Judiciário tem se mostrado capaz de atuar paralelamente aos outros Poderes, e não como um simples aplicador de normas, não dizendo o Direito, mas gaguejando a vontade da lei, na maioria das vezes, elaborada de forma espúria e casuística pelo legislador.

Que lições podemos considerar diante de tal quadro, paralelo ao nosso sistema jurídico?

O Poder Judiciário brasileiro passa por uma das maiores crises de sua história. O acesso à justiça é precário, a prestação jurisdicional é vagarosa e improfícua, imersa numa maré interminável de recursos, os tribunais superiores surpreendem-nos por uma atuação putridamente política e formalista, o impasse entre os Poderes se dá com a mínima menção de atuação do Judiciário.

Certamente, se buscarmos as verdadeiras explicações para a situação atual, perceberemos que a solução não virá com simples modificações estruturais. A razão para a inviabilidade do Judiciário brasileiro liga-se à histórica dinâmica do poder senhorial e semi-feudal na nossa sociedade. O Poder Judiciário, na verdade, sempre esteve inserido na organização política oligárquica brasileira, sendo antes um instrumento dessas oligarquias, distanciando-se, portanto, de suas reais funções, o que explica o flagrante desconforto dos demais poderes ante sua atuação independente.

Diante do quadro que se nos apresenta, contudo, torna-se forçosa a busca por soluções imediatas. O estudo comparativo pode, de certa forma, fornecer-nos tais soluções.

Acreditamos todavia, que muitos dos elementos componentes da organização judiciária inglesa não teriam capacidade funcional no nosso país, outros no entanto, de uma forma ou de outra, já são aplicados.

Não resta dúvida que, no intento de desobstruir a Justiça, uma série de organizações jurisdicionais inferiores e porque não dizer alternativas têm sido criadas. Poderíamos mesmo afirmar que tais mecanismos jurisdicionais constituem o equivalente brasileiro à Baixa Justiça inglesa. Exemplo disso são as Curadorias, que são mecanismos de ação imediata, os Juizados de Pequenas Causas, que se destinam a dirimir pequenos litígios sem importância relevante para serem levados à juízo superior, a arbitragem, que acena como meio eficaz para solução de lides, e a súmula vinculante, em tramitação no Congresso Nacional, que nos remete ao precedente inglês impondo-se à todas as instâncias inferiores.

Por outro lado, há elementos do Direito inglês que certamente não funcionariam no nosso país. Um deles é a concentração do Judiciário, tarefa impossível num país de dimensões continentais. Basta dizer que a Inglaterra é menor que o Estado da Bahia, sendo naquele país, viável, a concentração das atividades judiciárias num único corpo que é o Supremo Tribunal da Judicatura. No Brasil, a descentralização é quase uma necessidade.

Outro aspecto que, nos parece, não surtiria efeito almejado no Brasil seria a justiça distribuída por leigos. Quando nos referimos ao termo "leigos" estamos obviamente, falando de pessoas alfabetizadas, conscientes de suas obrigações e direitos como representantes da sociedade civil, cientes da importância do processo representativo, e da necessidade de distribuição equitativa da justiça. Os leigos, que, na Inglaterra, são denominados magistrates, trabalham sem qualquer remuneração, conhecem bem a comunidade em que vivem e inspiram confiança nos habitantes de tal comunidade, razão pela qual a maioria das lides é solucionada nesta instância. A população brasileira, de modo algum reúne as características essenciais para a adoção de tal modelo. No nosso país há elementos suficientemente impeditivos que se revelam em pequenas unidades representativas e que, fatalmente inviabilizariam a instalação do equivalente brasileiro ao Magistrate´s Court, sendo-nos possível citar o nepotismo, a burocratização excessiva dos serviços, a falta de consciência política, a falta de informação, e a parcialidade , principalmente em função do poder estabelecido.

A limitação de recursos, porém, seria uma benvinda modificação à nossa organização judiciária. Na Inglaterra, pouquíssimos recursos são admitidos para julgamento na instância superior que é a Câmara dos Lordes. A maior parte dos litígios não passa da Baixa Justiça, e caso o faça, raramente sobe além do Tribunal de Apelações. Além disso, há questões cujo mérito, após apreciação preliminar por parte do Supremo Tribunal da Judicatura, é imediatamente remetido à Baixa Justiça.

O Poder Judiciário inglês atua baseado sobretudo numa autoridade vinculada às decisões de cada corte em relação à instância imediatamente inferior, e por intermédio de uma rígida limitação dos recursos. Tais características conferem capacidade funcional aos seus tribunais.

No Brasil a maré de processos é considerada irracional, a cada ano acumulam-se o número de casos a serem julgados nos tribunais superiores brasileiros;

o efeito assemelha-se ao de uma bola de neve. Parece não haver como brecar a maior parte dos casos em primeira ou segunda instância ou mesmo num organismo não-judiciário.

Uma solução que se cogita, como já foi mencionado antes, é a da súmula vinculante. Não há como fugir ao paralelo que se estabelece com o precedente inglês. Na verdade, é princípio básico que aquilo que já tenha sido decidido antes seja aplicado a um caso idêntico. Não se deve atribuir à súmula vinculante um caráter de imutabilidade, isso seria subestimar a capacidade cambiante da sociedade e do próprio Poder Judiciário como reflexo dela.

Aqui há outro aspecto da crise do Judiciário, esquecido porque implícito, que é a enorme distância que o separa da sociedade brasileira, desde a primeira instância, onde muitos juízes impõem uma distância visível das partes e dos advogados e promotores.

As características senhoriais antes mencionadas tornam-se perceptíveis mesmo na forma de uma simples petição inicial, onde a parte enfatiza a distância e a superioridade do juiz numa linguagem claramente bajulatória, referindo-se pleonasticamente a um homem, ainda que investido de poderes conferidos pelo Estado, como excelentíssimo senhor doutor juiz de direito.

Não se deve porém, partir para o extremo de igualar o juiz às partes e esquecer o respeito e a reverência necessária em qualquer ato judicial, pelo contrário. É sabido que em qualquer acontecimento judicial, seja uma audiência ou um julgamento, há um rito que é presidido pelo juiz; mas reconsiderar a atitude deste perante a população é tarefa primordial que cabe ao Judiciário e às faculdades de Direito do país.

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Na Inglaterra tal aproximação é quase que inevitável, já que todo juiz inicia a carreira como advogado, sendo alçado à magistratura em razão de sua competência e eficiência na advocacia.

Automaticamente, o juiz inglês não padece de inexperiência, mesmo em razão da própria dinâmica do Direito Inglês, outro fato assolador na magistratura brasileira. Além disso, figuras como o Juiz de Circuito, o Stipendiary Magistrate e os próprios magistrados leigos, aproximam a experiência judicante da população.

Num plano imediatamente superior, porém não distante desta linha de pensamento, há o posicionamento histórico-social dos tribunais superiores brasileiros.

Para esclarecer esta análise, é de bom alvitre um breve relato do papel da Suprema Corte na sociedade norte-americana.

A construção do Direito nos EUA tem sido ao longo de mais de dois séculos, baseada rigidamente nos preceitos constitucionais que abrangem a organização política do Estado e a relação entre este e o cidadão.

A Suprema Corte americana aparece em todos os momentos cruciais da história dos EUA como Estado independente, desde a peleja entre John Marshall e Thomas Jefferson, passando pela abolição da escravatura, a laicização gradativa da sociedade, a emblemática defesa dos direitos civis na conturbada década de sessenta, e, recentemente a defesa da liberdade de expressão na Internet. Em outras palavras, chamada a atuar em momentos históricos decisivos, a Suprema Corte sempre surpreendeu pelo posicionamento racional, vanguardista e independente, além da defesa incondicional dos preceitos constitucionais, cuidando para não transpor os limites da atividade jurisdicional para a legiferante ou administrativa.

No Brasil, o papel da cúpula judiciária, fragmentada em siglas inexpressivas, ainda é uma incógnita. Não opina nem inova, não se mostra indignada ou contrária diante da chafúrdia que se faz na Constituição. Não atua em favor da sociedade brasileira, mesmo considerando que o Brasil é campo fértil para tal atuação, sendo-nos suficiente citar fato recente, quando da votação de projeto da Reforma da Previdência, que previa limitações à aposentadoria de magistrados e promotores, a magistratura brasileira virou as costas para a população, deixando-a ao sabor dos ventos e partindo para a vergonhosa barganha política, tendo merecidamente frustrados seus intentos.

A cúpula do Judiciário brasileiro parece pairar acima dos problemas sociais, quando lhe cabe a defesa da democracia, que adotando definição do filósofo Platão, pode ser conceituada como igualdade de condições. Ora, a idéia de democracia contemporânea baseia-se na concepção de um Estado que expressa uma coletividade, limitado, porém, pelo respeito ao indivíduo, conceituado como Estado de Direito. Dessa forma, não pode haver atividade mais importante e significativa em tal Estado, do que a de dizer o Direito, que é justamente a função do Poder Judiciário.

A recuperação deste posicionamento histórico-social, a exemplo do que ocorreu na Inglaterra, é perfeitamente viável através da utilização da jurisprudência, que daria ao Judiciário brasileiro a independência que lhe é necessária, já que o uso desta fonte do Direito não deixa de ser uma atividade legiferante, num sentido particular. Sabemos que a jurisprudência é utilizada no nosso sistema como fonte secundária, mas não há lei que obrigue tal situação a permanecer imutável. Na Inglaterra a lei desempenha papel importante, mas a construção do Direito cabe aos juízes, por intermédio da jurisprudência.

Finalmente, uma reforma do Judiciário parece-nos "conditio sine qua non" para a eficácia deste, e sua realização ou não é simples questão de vontade política, sendo-nos estranho o adiamento contínuo de tal reforma que daria ao Judiciário plena capacidade funcional, sem nos esquecer que a reformulação da organização judiciária inglesa foi feita através da atividade do Parlamento, quando já era visível que o antigo sistema não comportava as necessidades da sociedade industrial, com os Judicature Acts, utilizando - ao contrário do que expusemos como solução para a redefinição do caráter de nosso sistema - a lei como instrumento de aperfeiçoamento do Poder Judiciário, que é o sustentáculo da democracia no Estado contemporâneo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Livros:

. ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Brasileiro, Editora Jurídica Brasileira, 1ª edição, 1993, São Paulo.

. DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, Martins Fontes, 3ª edição, 1996, São Paulo.

. GILISEN, John. Introdução Histórica ao Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição, 1995, Lisboa.

. MELLO, Maria Chaves de. Dicionário Jurídico, Editora Pergaminho, 6ª edição, 1994, Lisboa.

. NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal, Editora Saraiva, 17ª edição, 1986, São Paulo.

. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito, Editora Saraiva, 21ª edição, 1994, São Paulo.

Artigos:

. FREEMAN, Jeff. The English Magistrate, Jeff Freeman´s Muffit Home Page (http://www.Muffit.demon.co.uk), April, 1997.

. FARMER, Mike. The Long Arm of the Law, April, 1994, Regia Anglorum Publications.

. LEVICK, Bem, NICHOLSON, Andrew, A Brief History of the Anglo Saxon England, November, 1991.

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Sobre o autor
Hugo César Araújo de Gusmão

acadêmico de Direito na UEPB, em Campina Grande (PB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUSMÃO, Hugo César Araújo. Visão panorâmica da organização judiciária inglesa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 24, 21 abr. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/927. Acesso em: 28 mar. 2024.

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