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Danos morais e materiais e acidente de trabalho

Competência da justiça do trabalho à luz da Emenda Constitucional nº 45/2004

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13/01/2007 às 00:00
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6.O recente julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a questão.

Em que pese o que restou assentado até este ponto, eis que em 9 de março de 2005, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou recurso extraordinário (RE-438.639-MG) interposto pela Mineração Porto Velho S.A., declarando, por maioria de votos, que seria competente a Justiça Estadual para o julgamento das ações de indenização fundadas em acidente de trabalho. A tese majoritária foi sufragada pelos ministros Cezar Peluso, Eros Grau, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Celso de Mello, Carlos Velloso, Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim. Apenas os ministros Carlos Ayres Britto e Marco Aurélio votaram no sentido de declarar competente a Justiça do Trabalho.

Infelizmente, para quem acompanhou a sessão de julgamento, alguns dos ministros do STF tiveram postura claramente preconceituosa em relação à Justiça do Trabalho, além de expressarem uma inacreditável desinformação sobre a mesma, considerando a posição de destaque ocupada pelos membros daquela Corte.

Bem resume o desdém e menoscabo com que foi referida a Justiça Especializada a circunstância de ter sido necessário o Min. Marco Aurélio chamar a atenção de seus pares para o fato de que a mesma, desde 1946, integra o Poder Judiciário, no plano constitucional.

Quanto ao desconhecimento da competência da Justiça do Trabalho, basta rememorar a despropositada afirmação do Min. Cezar Peluso, para quem o Juiz do Trabalho não está acostumado ao julgamento de causas que retratem responsabilidade aquiliana.

Francamente, qualquer pessoa que tenha algum contato com o cotidiano da Justiça Laboral sabe que em seu seio a o julgamento de lides em envolvendo responsabilidade aquiliana não é incomum, antes é matéria rotineiramente apreciada por seus juízes e tribunais.

Causou espécie ainda a desinformação externada pelo Min. Carlos Veloso. Ex-Juiz de Direito (estadual) e ex-Juiz Federal em Minas Gerais, afirmou ele, a pretexto de justificar a maior capilaridade da Justiça Estadual em relação à Justiça do Trabalho, que esta última, no seu Estado de origem, teria, fora da capital, apenas dez ou quinze varas.

Ora, honestamente, não se espera, nem se exige que um Ministro do STF conheça exatamente a estrutura do Poder Judiciário Trabalhista, ainda que em seu próprio Estado. Todavia, o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG) possui 35 (trinta e cinco) Varas do Trabalho na Capital e outras 115 (cento e quinze) espalhadas pelo interior, que abrangem todo o seu extenso território de atuação. Tratou-se, portanto, de erro crasso e grosseiro, declaração infeliz, mormente em se considerando a posição e origem de seu emitente.

De toda forma, dois argumentos fundamentais estribaram a esdrúxula decisão da Suprema Corte, contra a qual se erguem todos os fundamentos expostos anteriormente.

O primeiro deles, como já ressaltado, a maior capilaridade e penetração da Justiça Estadual. Esse argumento é, no mínimo, discutível.

Primeiro, porque a Justiça do Trabalho alcança praticamente todo o país, e no Estado de Minas Gerais, como se viu, é muito bem estruturada.

Segundo, porque o conceito de "acesso à justiça" não se revela exclusivamente Laboral em função da proximidade geográfica do órgão judicante com as partes envolvidas no conflito. Não põe em dúvida que, ante os princípios da gratuidade, jus postulandi e simplicidade ou informalidade, a permear sua atuação, o acesso à Justiça do Trabalho é bastante mais efetivo que à Justiça Estadual.

Por fim e de importância capital, na Justiça do Trabalho, salvo pontuais exceções que confirmam a regra, a celeridade processual é incomparavelmente maior que nas Justiças Estaduais. A razão desse fato incontestável – basta a consulta a estatísticas de que dispõe o próprio Supremo Tribunal Federal – pode ser atribuída a vários fatores: o rito processual trabalhista, mais simples e com menor número de incidentes; a melhor estrutura física e de pessoal desse ramo do Poder Judiciário; a própria especialização, que facilita o julgamento das lides; e ainda à elevada produtividade da maioria dos juízes e tribunais trabalhistas.

Sem embargo, a celeridade, ainda que distante de um plano ideal, com que os processos trabalhistas são julgados decorre de um fator primordial: a urgência com que os trabalhadores hipossuficientes necessitam de um julgamento rápido e eficaz, em vista de sua carência econômica. O Juiz do Trabalho, que labuta nesse contexto cotidianamente, naturalmente empreende esforços para dar ao processo o andamento mais célere possível – sem descuidar do resguardo ao direito de defesa das partes.

Por esses motivos, dentre outros que não atinamos no momento, em nossa experiência profissional temos testemunhado a preferência externada por empregados em ajuizar suas ações na Justiça do Trabalho, em detrimento da Justiça Ordinária, na hipótese em apreço, ainda que por isso tenham de empreender curtas viagens para as audiências designadas.

Extremamente ilustrativo dessa circunstância foi a posição de um advogado trabalhista, procurador de um reclamante que ajuizou ação indenizatória em face do empregador. Entre o ajuizamento da ação e a audiência sobreveio o julgamento do STF que declarou a competência da Justiça Comum para o caso.

Pois bem. Sabedor do risco de o processo empreender longo caminho nos escaninhos da Justiça do Trabalho e depois ter de se reiniciar na Justiça Comum, o pedido do advogado foi surpreendente. Argumentou o causídico que preferiria que a ação seguisse seu curso normalmente na Justiça do Trabalho, ainda que o Juiz, em sentença, acompanhasse a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Assim, disse ele, os autos seriam remetidos à Justiça Estadual já devidamente instruídos, tendo-se anulada apenas a sentença, nos termos do art. 113, § 2º, do CPC. Dessa forma, concluiu, o processo teria tramitação muito mais rápida que se tivesse desde logo sido remetido à Justiça Estadual.

Ao final das contas, os referidos autos de fato foram encaminhados à Justiça Comum, por força de julgamento de Recurso Ordinário da reclamada, em que se declarou a competência material da Justiça Estadual para o caso. Ainda assim o i. advogado não pareceu insatisfeito com a forma como os atos se desenrolaram.

Esse primeiro argumento, portanto, de conteúdo eminentemente político, não se sustenta.

Do ponto de vista jurídico, a razão da decisão da Suprema Corte para cometer à Justiça Estadual as ações em referência foi outra: a chamada "unidade de convicção".

A tese foi esgrimida pelo Min. Cezar Peluso, relator designado, recebendo a adesão majoritária de seus pares. Fundamentou Sua Excelência que "se nós atribuirmos à Justiça do Trabalho a ação de indenização baseada no Direito Comum, mas oriunda do mesmo fato histórico, temos uma possibilidade grave de contradição". Assim, fulcrado no preceito do art. 109, I, da Carta Magna, propugnou pela competência da Justiça Comum na hipótese versada.

A contradição mencionada, explicou ele, configurar-se-ia se e quando a Justiça do Trabalho não reconhecesse sequer a existência do acidente de trabalho, na ação indenizatória movida pelo empregado, e a Justiça Estadual decidisse exatamente o contrário na ação acidentária típica e vice-versa.

Em termos técnicos, segundo a tese capitaneada pelo Ministro, a discussão acerca da existência de dano moral e material, passíveis de indenização, decorrentes do mesmo suporte, em juízos distintos, acarretaria o risco futuro de ocorrerem decisões conflitantes com base na mesma causa de pedir, independentemente da individuação dos pedidos.

Em vão restaram os precisos argumentos desferidos pelo Ministro Presidente do Tribunal, Nelson Jobim, que esclareceu o que nos parece evidente: não há nenhuma interferência entre ambas as ações, distintas juridicamente. A rigor, dos elementos da ação, a coincidência será apenas em relação ao autor. Réu e pedido serão distintos, necessariamente. Nenhuma das duas ações – a trabalhista e a tipicamente acidentária - é prejudicial em relação à outra. Logo, é falacioso o argumento da "unidade de convicção".

Aborda com precisão essa circunstância o Juiz do Trabalho Reginaldo Melhado, em artigo recentemente publicado, consoante os seguintes argumentos:

"Portanto, em sua jurisdição típica o juiz de direito da vara de acidentes do trabalho não examina ilícitos aquilianos. Ao julgar as ações em face do INSS ele não perscruta sobre obrigações da empresa (ou do empregado) quanto aos serviços especializados em segurança e higiene no trabalho, sobre o uso de equipamentos de proteção individual, sobre as técnicas de edificação, luminosidade, conforto térmico, presença de tabaco ou elementos químicos, adequação de máquinas e equipamentos etc.

As normas de segurança e higiene no trabalho estão instituídas basicamente na CLT (arts. 154 a 201) e nos inúmeros decretos e portarias (as famosas NR’s do Ministério do Trabalho) que regulamentam esses dispositivos.

Quando o juiz examina a ocorrência de culpa do empregador, no acidente de trabalho, a cognição envolve basicamente a análise desses dispositivos da CLT sobre segurança e higiene do trabalho. Todas as regras de conduta fixadas na lei ao empregador ou ao empregado são normas trabalhistas. É o descumprimento desse direito positivo trabalhista que pode, em tese, gerar a responsabilidade indenizatória, se presente o nexo causal entre a conduta ilícita do empregador e o resultado danosos do acidente do trabalho.

(...)

A ação acidentária promovida em face do INSS – que é uma ação previdenciária – não abrange qualquer matéria pertinente às obrigações trabalhistas relativas à segurança e higiene no trabalho. O cumprimento ou não dessas normas jurídicas não tem relação direta com o Direito Previdenciário: ele está diretamente vinculado, isto sim, com o Direito do Trabalho" [20].

Diversos exemplos poderiam ser dados em contraposição à tese da chamada "unidade de convicção", fundamento da decisão do E. STF. O Min. Orlando Teixeira da Costa registra nesse sentido:

"Embora incidindo sobre o mesmo fato, nunca houve conflito de competência entre a Justiça Penal e a do Trabalho para se saber se determinado indivíduo deveria ir para a cadeia pela prática dos crimes de injúria, calúnia e difamação ou ser também despedido por justa causa ou condenado ao pagamento de indenizações rescisórias por ofensa à honra ou à boa fama de seu empregado. Apenas não se pode mais questionar sobre a existência do fato, ou quem seja o meu autor, quando essas questões se acharem decididas no crime, a teor do art. 1.525 do Código Civil [art. 935 do CC/2002] ." [21].

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Igualmente, assim se posiciona Reginaldo Melhado:

"Ou seja, se a unidade de convencimento deve ser buscada, ela será encontrada a partir da práxis do Direito do Trabalho e não do Direito Previdenciário. Um exemplo bastante simples pode evidenciar esse liame inextrincável. A empresa é autuada pela fiscalização do trabalho por não estar cumprindo normas de segurança quanto ao fornecimento de equipamentos de proteção individual (CLT, art. 166). Não se resignando, ela ingressa na Justiça do Trabalho com ação declaratória de nulidade do auto de infração (Constituição, art. 114, inciso VII). O acidente do trabalho vem a ocorrer exatamente em razão da falta desses equipamentos. O empregado, vítima do acidente, ingressa em juízo postulando indenização por danos patrimoniais e morais decorrentes do infortúnio laboral, atribuindo culpa à empresa empregadora. Haverá conexão incindível entre uma e outra causa, e a competência também em razão da imperiosidade de se evitarem decisões díspares sobre a mesma relação jurídica de direito material. Some-se a isso que, ademais, poderá o mesmo problema implicar outras demandas, cumuladas ou não, sempre da esfera de competência trabalhista (v.g., a reintegração no emprego, a aplicação de multas previstas em convenção coletiva de trabalho, litígios envolvendo a Cipa, o Ministério Público do Trabalho, o sindicato)." [22].

Pena que, de modo contraditório e visivelmente sem estar completamente convencido da tese prevalecente, o Min. Nelson Jobim tenha acabado por votar no mesmo sentido que acabou vencedor naquela sessão.

Essa decisão do E. STF causou incredulidade no seio do Judiciário Trabalhista, expressada com notável bom humor pelo Min. Lélio Bentes, no já referido Seminário recentemente promovido pela ANAMATRA em São Paulo. Sua excelência ilustrou sua perplexidade com um interessante caso. Disse ele que a Justiça do Trabalho teria competência para, em ação civil pública, determinar ao empregador, construtor civil, que fornecesse equipamentos de proteção individual adequados aos pedreiros que trabalham sobre os andaimes da obra. Todavia, de acordo com a decisão do STF, desde que o pedreiro caísse do andaime, sofrendo acidente de trabalho, à Justiça Especializada faltaria competência para julgar ação movida em face do empregador. Logo, se o pedreiro não sofrer o acidente, a competência é da Justiça do Trabalho; caso sofra o infortúnio, então a competência é da Justiça comum. Em tom jocoso, arrematou: "bem, espero e cuido para que o trabalhador não caia do andaime. Mas, se cair, aí o problema já não é meu...".


7.A inviabilidade de edição de súmula vinculante sobre o tema.

Um acontecimento posterior ao malsinado julgamento do STF causou preocupação ainda maior. Foi amplamente divulgada na imprensa entrevista do Min. Cezar Peluso, o qual declarou que a matéria decidida no julgado poderia constituir a base da primeira Súmula vinculante do STF a ser editada após a EC 45/2004, a teor do art. 103-A, da Constituição Federal, acrescido pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Sua Excelência prometeu propor a votação da súmula "assim que o acórdão for publicado".

A idéia, data maxima venia, não tem o menor cabimento, do ponto de vista jurídico. Conforme preceitua a nova disposição constitucional, para que a sumula do STF tenha "efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal" é preciso que antes existam "reiteradas decisões" sobre a matéria constitucional.

Como se vê, a intenção do Ministro é açodada: a matéria em questão foi analisada apenas uma única vez, após a edição da EC 45/2004. Logo, é inviável – por aberrante inconstitucionalidade – a edição de Súmula nesses termos. Resta apenas confiar nos ministros do Supremo Tribunal Federal, para que ao menos sejam observados rigidamente os pressupostos constitucionais para edição das súmulas vinculantes.

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Sobre o autor
Rodrigo Dias da Fonseca

juiz do Trabalho do TRT da 18ª Região, ex-juiz do Trabalho do TRT da 23ª Região, pós-graduado em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela Universidade Federal de Goiás

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONSECA, Rodrigo Dias. Danos morais e materiais e acidente de trabalho: Competência da justiça do trabalho à luz da Emenda Constitucional nº 45/2004. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1291, 13 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9366. Acesso em: 28 mar. 2024.

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