Artigo Destaque dos editores

O Brasil e o Tribunal Penal Internacional:

As medidas tomadas pelo governo federal no aspecto da pandemia como crimes contra a humanidade

Leia nesta página:

A piora da pandemia no Brasil, com o crescente número de mortos é resultado da intenção do Governo Federal? Estamos diante de crime contra a humanidade?

INTRODUÇÃO

Antes de dar início, é necessário um esclarecimento: o texto produzido não trata sobre política partidária, mas sobre saúde e vida da população brasileira e é baseado em dados científicos.

Assim, a pesquisa que fundamenta o breve artigo tem seu início numa manhã de mais um dia de isolamento social em decorrência da pandemia do Coronavírus. Lendo as notícias que tratam do aumento desenfreado do número de mortos pela doença no país, surge um incômodo, uma pergunta: por quê? E com isso, ao longo do dia, ela se desdobra em vários outros questionamentos que levam à necessidade de buscar compreender minimamente o que está por trás da quantidade de mortes e casos de Covid-19.

Assim, lendo diversas reportagens e artigos científicos, chega-se à descoberta de que outras pessoas também sentiram um desconforto com o contexto atual, mas foram além, enumerando diversas ações e omissões do Governo Federal que colaboraram para a piora da pandemia no Brasil. E mais, certos grupos da sociedade organizaram todos os fatos e os encaminharam através de denúncias ao Tribunal Penal Internacional por não encontrarem resposta do Judiciário nacional, mesmo após inúmeras tentativas de queixa, já que todas foram arquivadas. Todas tipificam os dados coletados como não apenas crime de causar epidemia, mas também como crimes contra a humanidade, um dos piores delitos contra os Direitos Humanos, que está disposto no Estatuto de Roma, documento que constituiu o Tribunal, segundo os ensinamentos de Emerson Malheiro (2016) e Valerio de Oliveira Mazzuoli (2021).

Dando continuidade ao estudo, agora com a compreensão de que o agravamento dos números não se dá por simples incompetência no gerenciamento de uma crise de saúde por parte do Governo, encontra-se uma pesquisa aprofundada sobre o tema, feita pelo Conectas Direitos Humanos em conjunto com o Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo que deu origem ao Boletim nº 10, documento que expõe um plano estrategicamente elaborado pelo Governo Federal para disseminar o Coronavírus na população como forma de garantir a imunidade de rebanho e perpassar a crise sem gastos com a saúde pública. Assim como as denúncias, este estudo também aponta as atitudes do Poder Executivo como graves afrontes aos Direitos Humanos.

Dessa forma, é possível chegar à conclusão de que é necessária a investigação e responsabilização daqueles que agiram para piora da pandemia no país, para a morte de meio milhão de brasileiros.

Entretanto, apesar de atualmente haver apuração de todo o contexto por parte de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, de acordo com Pedro Lenza (2014), esta não possui poder de aplicar penas, mas somente de investigar e elaborar um relatório que deve ser encaminhado às autoridades competentes para tanto. Contudo, como demonstrado nas denúncias, não há interesse do Judiciário brasileiro em punir os responsáveis. Assim, faz-se precisa a atuação do Tribunal Penal Internacional no país para análise e posterior condenação daqueles que são responsáveis.

Passa-se, então, ao início, a uma breve exposição da situação da pandemia no Brasil e ao desenvolvimento de tudo quanto foi apontado.

1. A PANDEMIA NO BRASIL

Inicialmente, tem-se que na data de 11/03/2020, a Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia de Covid-19, doença causada pelo novo Coronavírus. (OMS, 2021)

No Brasil, foi instaurado o estado de calamidade pública em decorrência da pandemia do Coronavírus pelo Decreto nº 6, de 2020 em 20/03/2020. Desde então e até dia 19/06/2021, segundo o Painel Coronavírus que acompanha o desenvolvimento da doença no Brasil, são 17.883.75 casos confirmados e 500.800 óbitos verificados. Meio milhão de brasileiros mortos.

Em vista de tais números, de acordo com o Google Notícias, que possui como fonte os dados fornecidos pela Universidade Johns Hopkins, o Brasil ocupa o 3º lugar no ranking mundial em casos confirmados de Covid-19 e o 2º lugar em número de mortos pela enfermidade, atrás apenas dos Estados Unidos.

1.1 Recomendações de prevenção ao contágio

Considerando a forma como o vírus é disseminado, por contato direto ou indireto com pessoas infectadas, e o contexto apresentado, devem ser seguidas com afinco as recomendações da Organização Mundial da Saúde para proteção e prevenção ao contágio. Dentre elas estão as principais: manter a distância de pelo menos dois metros de outras pessoas para reduzir o risco de infecção quando elas tossem, espirram ou falam; fazer uso de máscara, sendo essencial cobrir o nariz, a boca e o queixo e não tocar essas partes do corpo antes de higienizar as mãos; evitar locais fechados e congestionados, já que o perigo de contágio é maior em espaços lotados e com ventilação insuficiente; lavar as mãos regularmente, seja com álcool em gel ou sabão e água; limpar e desinfetar com frequência as superfícies, especialmente aquelas que são tocadas regularmente. (OMS, 2021)

No quesito da prevenção também deve ser considerada a vacina, substância imunizante que garante o não desenvolvimento da doença no organismo humano quando este entra em contato com o vírus. Nesse aspecto, cabe apontar a atual situação em que se encontra Serrana, cidade do interior paulista, que tem quase toda a sua população adulta vacinada com a Coronavac e, como resultado, o Butantam, pelo Projeto S, identificou que na data de 31/05/2021, o número de mortos reduziu em 95%, já o número de casos sintomáticos da doença caiu em 80%. (EL PAÍS, 2021)

Por tudo quanto foi apresentado, é visível a necessidade de serem respeitadas as recomendações feitas pelas autoridades de saúde pública, porque elas evitam a disseminação do vírus por contato social, e, por consequência, salvam vidas. Assim como também é clara a indispensabilidade de se vacinar toda a população brasileira, observados os resultados de Serrana.

2. DENÚNCIAS FEITAS AO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

Neste tópico, em primeiro lugar, serão abordados os principais aspectos do Tribunal. Depois, serão tratadas as denúncias brasileiras feitas a ele pelos atos e omissões do Governo Federal frente ao contexto de pandemia do Coronavírus, todas tipificando as medidas adotadas como crimes contra a humanidade e requerendo que seja feita uma investigação da situação que passa o Brasil, com uma consequente condenação dos responsáveis por todos os casos confirmados e as milhares de mortes de civis.

2.1 Considerações acerca do Tribunal Penal Internacional

O Tribunal em questão foi criado através do Estatuto de Roma, aprovado em 17/07/1998, na Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações Unidas, que teve por finalidade justamente constituir um órgão internacional com jurisdição criminal permanente, dotado de personalidade jurídica própria, com sede em Haia, na Holanda. (MAZZUOLI, 2021)

O referido Estatuto entrou em vigor internacional em 01/07/2002. Já no âmbito nacional, em 07/02/2000, o governo brasileiro assinou o Estatuto de Roma, tendo sido posteriormente aprovado pelo Parlamento brasileiro pelo Decreto Legislativo n.º 112 e promulgado pelo Decreto n.º 4.388. O depósito da carta de ratificação brasileira foi realizado em 20/06/2002, momento a partir do qual o Brasil se tornou parte no respectivo tratado. (MALHEIRO, 2016)

Com relação às características do órgão, podem ser enumeradas as seguintes: natureza supraconstitucional, por ser constituído por um tratado especial, nas quais as disposições derrogam todo tipo de norma do Direito Interno; ele é independente, uma vez que o seu funcionamento não se subordina a qualquer tipo de ingerência externa; é subsidiário, já que os sistemas judiciais nacionais possuem a responsabilidade primária de investigar e processar os crimes cometidos pelos seus nacionais, salvo nos casos em que os Estados se mostrem incapazes ou não demonstrem efetiva vontade de punir os seus criminosos, ocasiões em que o Tribunal deverá atuar; por fim, é um órgão de justiça automática, porque não depende, para o seu pleno funcionamento, de qualquer aceite do Estado da sua competência jurisdicional, operando automaticamente desde a data de sua entrada em vigor. (MALHEIRO, 2016)

Passando para a análise da função do tribunal, esta se constitui no julgamento de delitos contra a humanidade lato sensu, ou seja, todos os crimes que possuem natureza difusa e coletiva cometidos contra seres humanos. Em meio a estes se encontram o genocídio (artigo 6º do Estatuto), os crimes contra a humanidade stricto sensu (artigo 7º), os delitos de guerra (artigo 8º) e o crime de agressão. (MALHEIRO, 2016)

Como se verá no decorrer do presente artigo, o delito de maior relevância é o contido no artigo 7º do Estatuto de Roma, portanto, faz-se essencial uma análise mais aprofundada sobre ele. Com a leitura do dispositivo e suas alíneas, percebe-se que diversas ações podem caracterizar o crime, como: homicídio; extermínio; escravidão; tortura; perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero e outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental das pessoas. Entretanto, é preciso que a conduta seja realizada no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático contra a população civil, existindo o conhecimento do agente dessa condição, ou seja, deve se fazer notar o dolo. (MAZZUOLI, 2021)

Enfim, no aspecto da jurisdição, ela é internacional, podendo ser exercida, como regra, sobre os Estados que manifestaram seu consentimento em relação ao Tribunal.

Por isso, o Brasil se submete a ele na medida em que anuiu com o Estatuto o ratificando e o promulgando, como já explicitado. Entretanto, tal submissão fica ainda mais evidente com a inserção do parágrafo 4º no artigo 5º da Constituição Federal, pela Emenda Constitucional 45 de 2004, que dispõe: O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão. (BRASIL, 1988)

2.2 As denúncias

No aspecto do que está sendo tratado no presente artigo, ocorreram três principais denúncias ao Tribunal Penal Internacional. A primeira delas foi realizada na data de 02/04/2020 pela Associação de Juristas pela Democracia, uma associação sem fins lucrativos, criada em maio de 2018.

Já a segunda ocorreu em 15/05/2020 e foi elaborada pelo Partido Democrático Trabalhista, sendo este um partido político brasileiro, fundado em 1979.

Por fim, a terceira foi feita em 27/07/2020, escrita por uma coalisão de mais de 60 sindicatos e movimentos sociais, a maioria deles de profissionais de saúde, sob a liderança da Rede Sindical UniSaúde, realizou a denúncia.

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Lendo cada uma delas, percebe-se que todas possuem diversos pontos em comum. Um deles, que aparece logo no início dos textos, é a motivação da denúncia. Desse modo, é cabível a citação de algumas situações apontadas que levaram à necessidade de encaminhar ao TPI o contexto brasileiro: ao se pronunciar oficialmente à nação, no dia 24/03/ 2020, pela rede nacional de rádio e televisão, o Presidente afirmou que o país não pode parar, escolas não têm motivo para ficar fechadas e o comércio deve voltar a operar; em 25/03/2020, o Governo Federal lançou uma peça de propaganda e mobilização contra o isolamento social, estimulando que as pessoas saiam às ruas e voltem ao trabalho, denominada O Brasil não pode parar para defender a flexibilização do isolamento social; em 09/04/ 2020, o Presidente da República foi às ruas em Brasília (DF), o que inevitavelmente atraiu aglomeração de pessoas, em descompasso com as determinações encetadas contra o novo coronavírus; em 19/04/2020, o Presidente participou de protesto a favor do retorno da ditadura militar e contra o isolamento social e os outros poderes constituídos; em 11/05/2020, o Governo Federal editou o Decreto no 13.344/2020, que incluiu entre os serviços essenciais funcionamento de salões de beleza, barbearias e academias; dentre outros muitos exemplos.

Outro ponto em comum é o enquadramento dessas condutas em crimes estabelecidos na legislação nacional, um deles em destaque, qual seja, o crime de causar epidemia, disposto no artigo 267 do Código Penal brasileiro, com a qualificadora do resultado morte, sendo, então, um crime hediondo, como disciplina a Lei 8.072/1990 em seu artigo 1º, inciso VII. Também são enquadradas as condutas descritas nas denúncias como crime contra a humanidade, mais especificamente como atos desumanos que causam intencionalmente grande sofrimento e afetam gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental, descrito no artigo 7º do Estatuto de Roma, já que o acometimento da doença Covid-19 gera diversas consequências para o organismo humano e pode levar até mesmo a morte. Ademais, a doença atinge não apenas aquele que a contraiu, mas também sua família e amigos, que ficam desgastados, apreensivos e tem o emocional abalado. Ainda, é necessário apontar que atos normativos e falas advindas de quem ocupa o mais alto cargo do país, afetam todos os brasileiros, que são lançados ao risco de serem contaminados e sofrerem os efeitos da doença.

Os denunciantes também expõem o dolo de causar sofrimentos, danos físicos e mentais às pessoas. É questão de senso fazer tal afirmação, já que mesmo com todas as informações científicas, o chefe do Poder Executivo insiste em fazer declarações contrárias, assim como elabora atos incompatíveis com dados e pesquisas divulgadas cotidianamente, incitando as pessoas a irem às ruas, a se aglomerarem, e o resultado disso está estampado em números de mortos por conta da doença.

Ainda, as denúncias apontam que não há vontade do Poder Judiciário em punir os responsáveis do Governo Federal pelos crimes causados. Esse fato é demonstrado nas diversas tentativas de apresentação de notícias-crime em face do governo e do Presidente da República, entretanto, todas foram arquivadas, fazendo com que seja cabível a submissão ao Tribunal.

Por tudo quanto foi exposto, os denunciantes pedem a investigação da situação pela qual passa o Brasil, causada por intenção do Governo Federal, e também pedem a condenação dos responsáveis por crime contra a humanidade. Acreditam que com a decisão emitida pelo TPI, ocorreriam mudanças nas práticas de todos os governantes que queiram, em algum momento, tomar decisões contrárias às determinações de saúde pública nos âmbitos nacional e internacional, impedindo o abuso de poder decorrente.

3. O PLANO DO GOVERNO FEDERAL DE DISSEMINAÇÃO DO CORONAVÍRUS

Para complementar as informações obtidas nas denúncias descritas e explicitar ainda mais que as medidas tomadas pelo Governo Federal no aspecto da pandemia constituem crime contra a humanidade, serão expostos os dados e reflexões do Boletim Direitos Humanos na Pandemia nº 10, sendo esta uma publicação de difusão científica da Conectas Direitos Humanos e do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, que apresenta resultados iniciais do projeto denominado Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à Covid-19 no Brasil. Para ser possível a pesquisa, foram levantados 3.049 atos normativos relativos à pandemia expedidos no âmbito da União, pronunciamentos oficiais e atividades do Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, entre março de 2020 a janeiro de 2021.

Sobre o assunto, Deisy Ventura, uma das editoras do Boletim, Doutora em Direito e professora titular da Faculdade de Saúde Pública da USP, diz numa de suas entrevistas que o plano base do governo brasileiro era, desde o início da pandemia, disseminar o vírus na população como forma de garantir imunidade coletiva por contágio, ou seja, imunidade de rebanho, eticamente inaceitável porque expõe número indeterminado de pessoas a um agente patogênico sem se saber as consequências que cada organismo terá, com a finalidade de encurtar a crise sem grandes investimentos públicos.

Para atingir esse objetivo, expõe o estudo os três eixos principais de uma estratégia elaborada pelo Governo Federal, sendo eles: atos normativos ligados à pandemia, atos de obstrução à resposta e propaganda contra a saúde pública, sendo os dois primeiros essenciais para o presente artigo e, por isso, serão analisados a seguir.

Em relação a tudo que foi descoberto, afirma a professora e Doutora Deisy que as medidas e falas adotadas pela cúpula do Poder Executivo são práticas de atos desumanos que causam danos à saúde física e mental das pessoas. É crime contra a humanidade. E se toda a situação não for tida como um dos delitos mais graves contra os Direitos Humanos, objetos do Tribunal Penal Internacional, legitima-se os futuros governantes brasileiros a tomarem as mesmas atitudes.

Por fim, chama a atenção um questionamento feito pela Deisy Ventura: que Direito seria esse que não considerasse como crime a morte de, à época de sua fala, 400 mil brasileiros?

3.1 Primeiro eixo: atos normativos relativos à Covid-19

Como já indicado, para a constatação do primeiro eixo, foram analisados 3.049 atos normativos emitidos no âmbito da União que versam sobre a pandemia, entre março de 2020 e janeiro de 2021. Desse modo, será feita uma exposição dos fatores de maior relevância presentes no Boletim nº 10.

O primeiro ponto que merece destaque é a questão dos povos indígenas. Em 16/03/2020 o Ministério da Saúde apresentou a primeira versão de um plano voltado à proteção desse grupo de pessoas contra a Covid-19, chamado de Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus em Povos Indígenas. Apesar de sua existência, declara o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, em liminar durante o trâmite de da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental número 709, na data de 08/07/2020, que a estratégia elaborada é vaga, porque contém apenas orientações gerais e não estabelece medidas concretas para efetivar a segurança do grupo alvo em meio à pandemia. Ainda, afirmou que não houve participação das comunidades indígenas na elaboração do texto e fez diversas recomendações, como a criação de: sala de situação, barreiras sanitárias, plano de enfrentamento da Covid-19.

Ainda sobre o assunto, na data de 07/07/2020, foi criada a Lei nº 14.021, que prevê medidas para proteção de povos indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais em meio à pandemia, dentre elas se encontram: a obrigação da União de distribuir alimentos durante a pandemia para as comunidades; a extensão a quilombolas, pescadores artesanais e demais povos tradicionais das medidas previstas no plano emergencial; e permitir o acesso com urgência a serviços gratuitos e periódicos, dentre eles, a água potável e outros recursos básicos para sobrevivência humana. Contudo, pela Mensagem número 378, de 07/07/2020, Bolsonaro vetou 14 dispositivos dessa legislação, inclusive os apontados. O Presidente foi capaz de negar parte de uma norma que obriga a União a fornecer comida e água potável para grupos vulneráveis. Onde está o direito à vida, à dignidade, à saúde dos indígenas e quilombolas já tão degastados por inúmeras situações que passam?

O Congresso Nacional reagiu frente a tal absurdo e derrubou os vetos presidenciais em 19/08/2020, mantendo os dispositivos da referida Lei, importante para mantença e segurança dos povos alvos da legislação.

Outro ponto importante que deve ser observado envolve a questão dos medicamentos usados para tratamento precoce da Covid-19. Desde logo consta frisar que não há eficácia nesses meios. De acordo com os resultados encontrados pelo ensaio Solidarity da Organização Mundial da Saúde, a cloroquina, hidroxicloroquina, o coquetel antiviral remdesivir, lopinavir e ritonavir, são ineficazes contra o Coronavírus. Sobre o assunto, veja-se informações levantadas por uma notícia do jornal El País:

ensaio Solidarity da OMS tratava de provar a eficácia contra o SARS-CoV-2 dos antimaláricos cloroquina e hidroxicloroquina, o coquetel antiviral remdesivir, lopinavir e ritonavir, usados contra o HIV, e o interferon. Nenhum desses produtos demonstrou efeitos significativos na redução da mortalidade dos pacientes hospitalizados após 28 dias de tratamento, confirmou a OMS em nota.

O Solidarity foi um ensaio com pacientes, único em sua classe tanto por suas dimensões como pela rapidez com que foi feito. Analisou a evolução de mais de 11.200 pessoas em 400 hospitais de 32 países. Os doentes eram selecionados de forma aleatória para receber só os cuidados normais ou, adicionalmente, algum dos tratamentos mencionados. (EL PAÍS, 2021)

Mesmo antes da divulgação dos resultados do estudo observado, em nenhum momento teve-se notícias científicas que comprovavam a eficácia da cloroquina para uso contra o vírus. Entretanto, em 20/05/2020, o Ministério da Saúde lançou um protocolo recomendando o uso do medicamento em todos os casos de Covid-19, ainda que leves, precisando ser assinado pelo paciente um termo de responsabilidade pelo tratamento. No mesmo dia, em nota oficial, o Conselho Nacional de Secretários da Saúde indica que o texto não foi baseado em dados científicos e não teve participação técnica para sua formulação.

Um terceiro tema que precisa ser abordado é a classificação dos serviços em essenciais e não essenciais no contexto atual. Com o objetivo de fixar medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da propagação da Covid-19, foi criada a Lei nº 13.979/20. Dentre seus dispositivos, encontram-se aqueles que dizem respeito à questão em comento, que visam impedir a interrupção de atividades de fornecimento de insumos básicos para a sobrevivência da população de modo geral. Entretanto, com o decorrer do tempo, o Presidente da República editou diversas medidas provisórias e decretos que alteram a referida Lei. Um deles foi o Decreto nº 10.344 que inseriu como atividades indispensáveis: salões de beleza e barbearias, academias de esporte de todas as modalidades e atividades industriais sem especificações. Com isso, fica o questionamento: será que em meio à pandemia, com o número de brasileiros mortos aumentando a cada dia, o fator estético é mesmo fundamental?

Dando continuidade, um tema que deve ser destacado diz respeito ao inexistente investimento na área da saúde. Nesse sentido, tem-se a Mensagem nº 6 de 12/01/2021, pela qual Bolsonaro vetou parte da Lei Complementar nº 177 e, segundo a agência FAPESP, os vetos subtraem R$ 9,1 bilhões dos investimentos em ciência, tecnologia e inovação neste ano, impedindo, entre outras coisas, que o Brasil desenvolva uma vacina contra a Covid-19, apesar de ter infraestrutura e recursos humanos suficientes.

Ou seja, mesmo o Brasil passando por uma profunda crise no aspecto da saúde, ainda assim a cúpula do Poder Executivo nega investimento para a ciência, esfera fundamental do conhecimento que permite a busca por tratamentos eficazes de prevenção contra a doença, como as vacinas.

Por fim, o último ponto é relacionado às medidas indicadas pelas autoridades em saúde pública como meios de proteção ao contágio. Como já visto logo no início do presente artigo, recomenda a Organização Mundial da Saúde o uso adequado de máscaras em locais públicos e constante higienização das mãos com água e sabão ou álcool em gel. Apesar disso, o Presidente, em 02/07/2020, pela Mensagem nº 374, vetou 25 dispositivos da Lei nº 14.019 que instituem a obrigatoriedade do uso de máscaras em estabelecimentos comerciais e industriais, templos religiosos, escolas e demais locais fechados em que haja reunião de pessoas, sob a justificativa de que o dispositivo incorreria em possível "violação de domicílio".

Em 06/07/2020, o Presidente publica um Despacho no Diário Oficial da União para modificar a Mensagem supracitada e fazer novos vetos. Estes suprimem a obrigação dos estabelecimentos em funcionamento durante a pandemia de fornecer gratuitamente a seus funcionários e colaboradores máscaras de proteção individual e sua obrigação de afixar cartazes informativos sobre a forma de uso correto de máscaras e o número máximo de pessoas permitidas ao mesmo tempo dentro do estabelecimento.

Entretanto, na data de 19/08/2020, o Congresso Nacional derrubou o veto presidencial, mantendo os dispositivos na legislação.

Diante aos fatos expostos nesse tópico, percebe-se claramente o descaso do Governo Federal para com a ciência, a tecnologia e a saúde. Além disso, fica evidente a tentativa de colocar a população brasileira em contato com o vírus, por meio das investidas em evitar a divulgação do uso correto de máscaras e a disponibilização de álcool para higienização, medidas fundamentais para a prevenção de contágio, restando comprovada a afirmação feita pela professora e Doutora Deisy Ventura no que diz respeito à busca pelo Governo de efetivar a imunidade de rebanho na sociedade.

Ademais, destaca-se a crueldade para com os indígenas, quilombolas e outros grupos tradicionais, na tentativa de barrar a obrigatoriedade da União em fornecer assistência básica para esses povos, como na oferta de água e alimentos durante o período emergencial.

3.2 Segundo eixo: atos de obstrução à resposta

Nesse momento será feita uma breve análise de certos temas envolvendo atos adotados pelo Governo Federal que foram classificados pela equipe de elaboração do Boletim nº 10 como de obstrução à resposta à pandemia.

O primeiro assunto trata-se do uso da cloroquina para tratamento precoce contra a Covid-19 já abordado anteriormente. Sobre o tema, tem-se que em 16/04/2020, o Presidente demitiu o Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta por conta de um dissenso sobre a estratégia de resposta à pandemia, em particular a questão em comento. Segundo o ex Ministro, o projeto de Bolsonaro para combater a crise de saúde era propagar a ideia de que o Governo tinha um remédio eficaz contra o Coronavírus e quem tomasse estaria curado, assim, iria morrer apenas quem já estava destinado a isso de qualquer forma. Uma clara afronta à ciência, que em nenhum momento apontou a eficácia de tratamentos precoces, além de um visível descaso para com a população brasileira deixada à própria sorte, porque insistir em tal ideia é afastar a necessidade de busca por vacinas e medidas concretas para combate ao vírus.

Outro ponto que merece destaque ocorreu em 19/05/2020 quando o Conselho Nacional de Saúde publicou um manifesto exigindo do Ministério da Saúde o repasse imediato de verba destinada ao enfrentamento à pandemia aos Estados e Municípios, demonstrando que este tinha R$ 8,489 bilhões ainda não empenhados, oriundos de Medidas Provisórias de crédito extraordinário para resposta à pandemia. Ficando provada mais uma vez a falta de interesse do Governo Federal em investir na área da saúde e a sua intenção em não gastar para superar a crise.

O terceiro tema principal refere-se às vacinas. Na data de 20/10/2020, o Presidente desautorizou a compra de 46 milhões de doses da Coronavac pelo Ministério da Saúde, e postou justificativa no Twitter, afirmando que o imunizante era do Governador João Dória e não seria aceita pelo seu Governo. Ou seja, enquanto é estimulado o uso de tratamento precoce não comprovado cientificamente, são negadas vacinas por cunho político.

Com a exposição desses poucos fatos, fica mais uma vez claro o descaso do Governo Federal para com a população brasileira, deixada à mercê do Coronavírus.

4. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO SOBRE A COVID-19

Em primeiro lugar, de acordo com os ensinamentos de Pedro Lenza, as CPIs, disciplinadas no artigo 58, parágrafo 3º da Constituição Federal, são comissões temporárias, destinadas a investigar fato certo, determinado e de relevante interesse para a vida pública, a ordem constitucional, legal, econômica e social do país. (LENZA, 2014)

Dentre os poderes que possui a Comissão em comento, estão o de inquirição, próprio das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos internos das Casas. Entretanto, ela nunca poderá impor penalidades ou condenações. Assim, os Presidentes das Casas ou do Congresso Nacional devem encaminhar o relatório elaborado ao fim do trabalho e a resolução que o aprovar aos chefes do Ministério Público da União ou dos Estados ou, ainda, às autoridades administrativas ou judiciais com poder de decisão, para que promovam a responsabilização dos infratores indicados. (LENZA, 2014)

Após estas reflexões, passa-se ao apontamento de determinados momentos que foram noticiados ocorridos no âmbito da CPI sobre a Covid-19, criada em 13/04/2021 com o objetivo de apurar ações e omissões do Governo Federal no enfrentamento da pandemia e o colapso da saúde no Estado do Amazonas no começo do ano.

Um dos assuntos já tratados e que foi objeto de investigação da CPI é o uso da cloroquina em pacientes com Covid-19. O ex-Ministro, Luiz Henrique Mandetta, em seu depoimento, relatou ter escutado do Presidente dizendo que o Ministério da Saúde deveria adotar formalmente o uso do medicamento, assim como afirmou que era procurado por pessoas próximas a Bolsonaro para defender o uso da cloroquina. Ademais, também alegou ter visualizado uma minuta de um decreto que seria editado para alterar a bula da cloroquina e prever a sua utilização contra o Coronavírus. (CNN, 2021)

Outra temática já abordada e que é objeto da Comissão em comento diz respeito à vacina. Sobre isso, tem-se o depoimento de um executivo da Pfizer, Carlos Murillo, ocorrido em 13/05/2021, no qual afirma que o Governo Federal ignorou ofertas de 70 milhões de vacinas, todas com o prazo de entrega para o ano de 2020. Dessa forma, fica mais uma vez demonstrada a insistência em incentivar o uso de um medicamento sem eficácia contra o vírus e recusar a compra de imunizantes, deixando a população vulnerável. (BBC, 2021)

Por fim, um tema que foi alvo da CPI e do presente artigo é a imunidade de rebanho. Na data de 25/05/2021, foi exibido por Renan Calheiros, relator da Comissão, um vídeo de Mayara Pinheiro, conhecida como Capitã Cloroquina, defendendo tal tipo de imunidade, ficando, assim, confirmado que foi dito pela professora e Doutora Deisy Ventura. (CORREIO BRAZILIENSE, 2021)

Apesar de a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 expor diversos fatos que apontam para a responsabilidade do Governo Federal na piora da pandemia no Brasil, ela não pode aplicar punições, devendo ser enviados os resultados para uma autoridade competente para tanto. Contudo, levando em consideração o que foi demonstrado na análise das denúncias, é possível imaginar o longo caminho que resta pela frente na esfera nacional para que se chegue à responsabilização dos culpados pelas milhares de mortes de brasileiros, pelos crimes contra a humanidade cometidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por tudo quanto foi exposto, ficando demonstrada, através das denúncias encaminhadas ao Tribunal Penal Internacional e também pela pesquisa apresentada, a intenção do Governo Federal, sob a liderança de Bolsonaro, em disseminar o Coronavírus na população brasileira, a fim de gerar imunidade de rebanho e superar a crise de saúde pública sem investimentos, causando graves sofrimentos, danos físicos e mentais à sociedade de maneira geral, o que caracteriza crime contra a humanidade segundo o Estatuto de Roma, pode-se afirmar que é necessária investigação e uma posterior punição dos responsáveis.

Entretanto, como visto, apesar de a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Covid-19 estar atuando para descobrir fatores que agravaram a pandemia no país, ela não tem poderes para aplicar sanções, sendo necessária a elaboração de um relatório contendo os resultados dos trabalhos e seu envio para autoridades competentes averiguarem e decidirem o que pode ser feito. Mas, recordando o que restou comprovado pelas denúncias ao TPI, não há interesse por parte do Estado nacional em responsabilizar os culpados, já que todas as queixas direcionadas foram arquivadas.

Dessa forma, é possível a atuação do Tribunal Penal Internacional no país para que se verifiquem todos os fatos já apontados e haja efetiva punição dos envolvidos na elaboração e execução da estratégia de morte do Governo Federal. Sem isso, como dito por Deisy Ventura, legitima-se que os futuros governantes brasileiros tomem as mesmas atitudes e utilizem de formas eticamente reprováveis e sem fundamento nos Direitos Humanos para resolver crises, seja de saúde ou em qualquer outro âmbito.

Para finalizar, parafraseando o questionamento feito pela professora: que Direito seria esse que não considerasse como crime a morte de meio milhão de brasileiros?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE JURISTAS PELA DEMOCRACIA. Google drive, 2 de abril de 2020. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1xbjDRi67BmnLMoTjmHUSJHi7j1t1WsmE/view. Acesso em: 19 de junho de 2021.

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Sobre a autora
Juliana Favaretto Pinto Coelho

Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - Campus Poços de Caldas. Estagiária na Advocacia Geral do Estado de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COELHO, Juliana Favaretto Pinto. O Brasil e o Tribunal Penal Internacional:: As medidas tomadas pelo governo federal no aspecto da pandemia como crimes contra a humanidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6697, 1 nov. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/94507. Acesso em: 21 nov. 2024.

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