No último dia 1°, o Ministério do Trabalho e Previdência, através de seu 01, o Ministro Onix Lorenzoni, editou a Portaria MTP n°. 620, a qual expõe a vedação taxativa de exigência de apresentação de atestado ou cartão de vacinação para que seja realizada a contratação de trabalhador (a) ou para que seja mantida tal contratação.
Segundo a exposição de motivos realizada, tal Portaria visaria, dentre outras questões, garantir:
- A dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e a cidadania insculpidos no art. 1°, da Constituição;
- A construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais; promoção do bem geral, sem quaisquer preconceitos ou formas de discriminação, insculpidos no art. 3°, da Constituição;
- A igualdade de todos perante a lei, a permissividade de atos que não estejam previstos em lei, o livre exercício de trabalho e profissão e a punição contra todos os atos discriminatórios e atentatórios dos direitos e liberdades fundamentais, previsto no art. 5°, da Constituição;
- O cumprimento de direitos sociais elementares, como saúde, alimentação, o trabalho, a segurança e a previdência social, conforme o art. 6°, da Constituição;
- A relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, conforme o art. 7°, da Constituição.
- O cumprimento dos art. 170 (ordem econômica fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, com observância à livre concorrência, redução das desigualdades sociais e regionais e a busca do pleno emprego) e do art. 193 (Ordem social pautadas no trabalho, de forma a garantir o bem-estar sociais e a justiça social), ambos da Constituição.
Inobstante tal justificativa, na qual, aparentemente, se lastrearia a constitucionalidade e a legalidade infraconstitucional da referida Portaria, a mesma, em nosso sentir (e de diversos doutrinadores, como Vólia Bonfim, Rodolfo Pamplona, José Delagrave Neto) é de toda afrontosa ao Texto Maior e à própria CLT, e a outras norma de natureza infraconstitucional.
1. DA INCONSTITUCIONALIDADE DA PORTARIA
A primeira inconstitucionalidade, e talvez a maior delas, que podemos vislumbrar na referida Portaria, é a violação expressa e direta à dicção contida no caput, do art. 5°, e o seu inciso II, bem como, ao caput do art. 6°, e seu inciso XXII.
Indiretamente, podemos indicar, ainda, a violação ao inciso III, do art. 1°, da Constituição.
Isso porque, apesar de buscar a garantia e cumprimento de direitos constitucionais sociais garantidos naquela Carta Política, em verdade, a Portaria MTP n°. 620/2021 viola direitos e fundamentos basilares da Constituição.
Lembremos, pois, que diante dos ensinamentos do Mestre Robert Alexey, deve ser realizada, sempre que houve o choque aparente de normas ou preceitos (sejam eles constitucionais ou não), a ponderação de princípios, eis que, a análise da prevalência de determinada norma sobre outra, ou melhor, a inaplicabilidade de determinada norma em relação à dicção de outra, será avaliada através da análise de importância e relevância dos princípios que lastreiem cada uma das leis em conflito.
E no caso em questão, a Portaria MTP n°. 620/2021 não possui princípios lastreadores de maior relevância que outros dispositivos constitucionais.
1.1. Da violação ao Art. 5°, em seu caput e inciso II
Conforme a clara dicção do caput do art. 5°, da Carta Política de 1988, todos serão iguais perante a lei, sem quaisquer distinções, sendo garantia integral e indiscutível, ao cidadão brasileiro ou estrangeiro, o direito à vida.
Ventila-se a garantia à liberdade, segurança e à propriedade, porém, não à toa, o direito à vida é o primeiro direito constitucional fundamental garantido ao cidadão.
Ao Estado Brasileiro, portanto, é dever primordial garantir meios e instrumentos que viabilizem a proteção e manutenção da vida do cidadão nacional e alienígena.
Contudo, a Portaria MTP n°. 620/2021 vai de encontro, de maneira clara a expressa ao determinar que o empregador não poderá exigir a apresentação de carteira de imunização ou documento correlato de seu colaborador, sob pena de incorrer em ato considerado como discriminatório.
Perceba, pois, que realizando-se a ponderação de princípios, notamos que, apesar de a Portaria tutelar os direitos constitucionais da dignidade do trabalho, da oportunização do emprego e da garantia à redução das desigualdades e da pobreza, o caput do art. 5° salvaguarda o direito à vida, que é (ou deveria ser) muito mais relevante.
Impedir que empregadores exijam de seus empregados a apresentação de cartão vacinal, em que se comprove a imunização contra a COVID-19, importa em permitir, ainda que indiretamente, colaboradores se insiram no grupo de pessoas que recusam a imunização, acarretando a possibilidade de contaminação de outros empregados, de fornecedores, credores, clientes e demais pessoas que tenham contato direito ou indireto com esse cidadão.
Impedir que o empregador exija o cartão vacinal do trabalhador (a) que busca um emprego naquela empresa, impõe os mesmos riscos acima descritos.
Em relação ao II, há nova violação, desta vez, do ponto de vista formal. Indiscutível, pois, a natureza normativa das portarias emitidas pelo atual MTP. Contudo, segundo melhor entendimento, portaria é um documento oficial de ato administrativo, emitido por autoridade pública e serve para dar instruções ou fazer determinações de conteúdo diverso.
Dessa forma, a portaria tem a finalidade precípua de fazer cumprir algo que já está definido em lei (especialmente a ordinária e a complementar). Sua eficácia além muros do Ente administrativo encontra, portanto, certa limitação, haja vista que, ao Ministro do Trabalho e Previdência, não é compatível o poder de legislação ou criação de determinações legais.
Assim, demonstra-se, pois, mais uma violação constitucional, haja vista que não há, em Lei Complementar ou Ordinária (como a CLT), qualquer impeditivo formal para que o empregador exija a apresentação de comprovação de imunização contra o vírus da COVID-19.
1.2. Da violação ao Art. 6°, em seu caput e ao art.7°, inciso XXII
Considerando a linha de raciocínio já indicada no item anterior, podemos arguir a inconstitucionalidade da Portaria MTP n°. 620/2021, ainda, em razão do caput do art. 6°, da Constituição.
Isso porque, em tal dispositivo, há a expressa indicação de que constitui, como um dos direitos sociais elementares do Estado brasileiro, a garantia de saúde ao cidadão.
Dessa forma, desobrigar que haja qualquer ato punitivo do empregador em face do empregado ou do potencial empregado em comprovar a sua imunização, vai de encontro ao direito elementar à saúde, não somente daqueles que terão contato com o trabalhador não imunizado, como de quaisquer pessoas que tenham contato com àquele (como pessoas que estejam no mesmo ônibus, metrô, supermercado, etc).
Diversos são os estudos, em todo o globo, que demonstram que a imunização, apesar de não garantir que a pessoa seja infectada, garante, com percentuais elevados, a chance de agravamento da doença e os casos de óbito decorrentes da COVID-19.
Diversas foram as análises, ainda, tanto no Brasil, quanto no mundo, que a criação de medidas coercitivas àqueles que se recusavam a tomar a vacina contra a COVID-19, ocasionaram a busca pela imunização.
Dessa forma, a criação de medidas punitivas ao empregador que busca garantir um ambiente de trabalho seguro e saudável, decerto, vai de encontro com o dever estatal de garantia de saúde dos cidadãos.
Nessa mesma esteira, mostra-se inconstitucional, eis que, de acordo com o inciso XXII, do art. 7°, da Carta Magna, é direito dos trabalhadores (urbanos e rurais) a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.
Fomentar, ainda que indiretamente, o negacionismo e a impossibilidade de punição e/ou coerção àqueles que se recusam a ser imunizados, é uma clara violação à garantia constitucional dos demais trabalhadores a possuírem um ambiente de trabalho seguro.
2. DAS DEMAIS INCONGURÊNCIAS DA PORTARIA
Além das inconstitucionalidades descritas, a Portaria MTP 620/2021 ainda vai de encontro à determinações expressas na CLT e em normas auxiliares, emitidas, inclusive, pelo próprio Ministério do Trabalho.
Em relação a este último, como exemplo, podemos citar a Portaria Conjunta n°. 19/2020, dos Ministérios da Economia e Secretaria Especial de Previdência e Trabalho. Segundo as determinações contidas na referida portaria destinada às indústrias e trabalhadores de abate e processamento de carnes e derivados destinados ao consumo humano e laticínios (mas que pode ser utilizada para outras profissões e ramos econômicos, no que couber) como uma das medidas a reduzir os riscos de contaminação da COVID-19 entre os empregados, está a possibilidade de monitoramento do fluxo de empregados aos vestiários, de modo a não ocorrer aglomerações (item 9.1.1).
Ora, se de acordo com a Portaria Conjunta 19/2020, o empregador pode limitar o acesso dos empregados a área privativa para troca de vestimentas e, por raciocínio analógico, utilização dos sanitários, por qual razão constituiria um ato atentatório contra a dignidade do trabalhador, e mera exigência de comprovação da imunização?
Em relação à CLT, cumpre salientar que, apesar de ainda não ter sido incluída a COVID-19 no rol de doenças ocupacionais reconhecidas pelo INSS, diversas são as decisões judiciais que já fazem tal associação, condenando empregadores ao pagamento de indenizações material e moral, quando indicada a contaminação no trabalho ou decorrência daquele.
Assim, não seria razoável que o empregador fosse condenado, em razão de um único empregado ou de um determinado grupo de empregados que tenham se recusado a receber a imunização contra a COVID-19.
Lembremos, pois, que mesmo que o empregador tenha todos os cuidados inerentes ao art. 157, da CLT, bem como, se valha de medidas de segurança definidas por Secretarias Estaduais ou Municipais de saúde ao enfrentamento da COVID-19, o trabalhador não imunizado permanecerá sendo um risco elevado e em potencial dentro da estrutura da empresa.
Vale salientar, ainda, que o art. 4°, da Portaria 620/2021, principalmente em seu inciso II, se equivoca ao criar indenização moral[1] pelo suposto ato discriminatório em razão da dispensa imotivada/motivada, face a não apresentação de cartão vacinal ou documento correlato.
Isso porque, a CLT possui regramento específico em relação à condenação da parte na relação trabalhista, em caso de constatação de danos extrapatrimoniais (o famoso dano moral).
Podemos notar, principalmente no art. 223-G, em seu §1°, que existe a tarifação legal dos valores correspondentes à indenização moral, não sendo possível que, através de Portaria ministerial, seja criado valor diverso para tal pleito.
Ademais disto, a CLT possui regramento próprio para a concessão de indenização ao trabalhador em caso de rompimento da relação empregatícia sem a aplicação de justa causa. Tal regramento está insculpido no art. 478, da CLT.
Outrossim, não podemos desconsiderar a possibilidade de aplicação de justa causa ao trabalhador que se recusa a receber o imunizante contra a COVID-19, apesar de a Portaria 620/2021 indicar a inexistência de tal possibilidade.
Isso porque, na alínea j, do art. 482, da CLT, autoriza-se a despedida por justa causa do trabalhador que realizar ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa ou ofensas físicas, da mesma sorte, desde que não tenha ocorrido em decorrência de legítima defesa pessoal ou de outrem.
Oras, não seria de todo desarrazoado equiparar-se a recusa expressa em imunizar-se, com uma ofensa física a qualquer pessoa, quando ocorresse a contaminação por COVID-19 em decorrência da relação de trabalho. Assim, uma vez comprovada ou induzida (de forma objetiva), que a contaminação de outros empregados ou de terceiros ocorreu em razão da ausência de imunização do trabalhador que se recusava a receber a vacina, seria plenamente aplicável a justa causa sem que se incorresse na suposta discriminação narrada pela Portaria 620.
3. CONCLUSÃO
Diante de todos os argumentos trazidos, inquestionável a inconstitucionalidade da Portaria MTP 620/2021, bem como, a sua afronta direta aos regramentos contidos na CLT e em legislação infraconstitucional diversa.
Entendemos que o MTP não possui legitimidade funcional para exarar regramentos específicos concernentes à relação trabalhista (criando regras e direitos para empregadores e empregados), tampouco, criando penalidades em caso de descumprimento de diretrizes, eis que não possui poder legislativo.
Entendemos que os empregadores não são obrigados a cumprir as determinações emanadas na referida Portaria, enquanto perdurar sua vigência (haja vista acreditamos que sua inconstitucionalidade será declara o mais breve possível).
Vislumbramos, ainda, que, acaso ocorra a fiscalização ou denúncia perante o MTP, perante o Ministério Público do Trabalho ou, mesmo, ocorra o ajuizamento de ação trabalhista, não se aplicariam quaisquer das penalidades ou obrigações indicadas na Portaria 620, até porque será possível a indicação e requerimento de declaração incidental da inconstitucionalidade da Portaria na eventual ação judicial e a realização de defesa fundamentada na esfera administrativa.
Porém, acima de tudo, a Portaria MTP n°. 620/2021 deve ser desconsiderada pelo empregadores no momento de entrevistas ou para os empregados existentes, em nome da segurança à vida e à incolumidade de saúde, não somente de todas as pessoas que estejam direta ou indiretamente ligados à atividade do empregador, mas, em verdade, em respeito à vida e à incolumidade de saúde de todos os cidadãos, em respeito a todas as mais de 600.000 mil vítimas da COVID-19 no Brasil que não tiveram oportunidade de receber um imunizante e à dor dos familiares e amigos que perderam seus entes queridos.
Verificamos, sem partidarismo político, que a Portaria MTP n°. 620/2021 trata-se de uma ato político (em todas as suas vertentes), de modo a pautar a agenda antivacina e anticiência do atual Governo Federal.
Entendemos, pois, que somente com a criação de medidas coercitivas por parte dos empregadores (perda da chance de emprego, afastamento sem remuneração ou despedida sem justa causa do empregado) e estatais (passaporte vacinal, impedimento de acesso a prédios públicos, participação de eventos públicos e privados) é que forçará àqueles que ainda brigam e questionam a necessidade de imunização e de garantia da segurança geral dos cidadãos.
Dessa forma, o trabalhador anti vacina terá de fazer a sua opção de ser imunizado ou sofrer as consequências de tal recusa. O que não pode ser permitido, de maneira alguma, é que aquele trabalhador seja um alvo em potencial da disseminação do vírus da COVID-19 para terceiros.
[1] Art. 4º O rompimento da relação de trabalho por ato discriminatório, nos termos do art. 1º da presente Portaria e da Lei nº 9029, de 13 de abril de 1995, além do direito à reparação pelo dano moral, faculta ao empregado optar entre:
I - a reintegração com ressarcimento integral de todo o período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas, corrigidas monetariamente e acrescidas de juros legais;
II - a percepção, em dobro, da remuneração do período de afastamento, corrigida monetariamente e acrescida dos juros legais.