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Responsabilidade civil por ato de violência doméstica e familiar contra mulher e outras considerações

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07/07/2025 às 15:45

Resumo:


  • A Lei n.º 13.871/2019 alterou a Lei Maria da Penha para prever a responsabilidade civil do agressor, obrigando-o a ressarcir danos morais e patrimoniais causados à vítima de violência doméstica, incluindo custos com saúde e dispositivos de segurança.

  • A alteração legislativa é considerada redundante, pois o Código Civil já cobre a matéria, e pode ter impacto limitado na proteção da mulher, devido a dificuldades processuais e estruturais para ajuizar ações cíveis de reparação de danos.

  • As mudanças também incluem disposições sobre a aplicação e cumprimento de pena na esfera criminal, proibindo que o ressarcimento do dano atenue a pena ou enseje a substituição da pena aplicada, e destacam a independência das instâncias cível e criminal.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A Lei 13.871/2019 prevê indenização à vítima de violência doméstica. Mas a reparação civil depende de ação cível ou pode ser fixada na sentença penal?

Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar a alteração feita pela Lei n.º 13.871/2019 na Lei Maria da Penha (Lei n.º 11.340/06) sobre responsabilidade civil, ou seja, a possibilidade da condenação por infração penal envolvendo violência doméstica e familiar contra mulher implicar, além da pena de prisão, também a obrigação de pagar indenização à vítima, pelo dano moral e patrimonial causado pelo crime, cujo montante deverá será determinado em ação judicial ajuizada pela vítima perante o juízo cível. O estudo é comparativo com outras normas do direito brasileiro, sobretudo as normas do Direito Civil sobre o tema da responsabilidade civil e, com apoio na doutrina e jurisprudência, apresenta uma visão crítica sobre o baixo impacto que a referida alteração poderá ter na melhora da proteção dos interesses da mulher vítima de violência doméstica, sobretudo em razão das dificuldades inerentes ao ajuizamento e processamento da ação cível de reparação de danos. Além disso, o estudo também apresenta alternativas para que a referida indenização cível seja estabelecida diretamente pelo juízo criminal, na sentença penal condenatória, sem a necessidade de que a vítima tenha de ajuizar ação cível para tanto. Por fim, também são analisadas brevemente as alterações de natureza criminal também trazidas pela Lei n.º 13.871/2019.

Palavras-chave: violência doméstica contra mulher; responsabilidade civil.


1. Introdução

A Lei Federal n.º 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha1, que “cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher” no Brasil, tendo por fundamento o art. 226, §8º, da Constituição Federal, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, alcança quinze anos de vigência neste ano de 20212.

Desde a promulgação a referida Lei passou e vem passando por alterações em seu texto3, o que é próprio da dinâmica da vida em sociedade, pois, muitas vezes, as mudanças de comportamento social exigem a adaptação das normas jurídicas para responderem à nova realidade, o que não difere, em essência, da criação de normas jurídicas desde os primeiros agrupamentos humanos, fenômeno captado desde a antiguidade e também estudado pela doutrina contratualista dos séculos XVII e XVIII4. Em suma, o Direito segue um grupo de seres humanos.

No caso, o presente trabalho tem por objetivo analisar a alteração na Lei Maria da Penha trazida pela Lei n.º 13.871/2019 quanto à disciplina da responsabilidade civil por ato ilícito decorrente de violência doméstica e familiar contra mulher, para, em cotejo com as normas do Direito Civil e Processual Civil e também com base nos dispositivos legais de regência, na doutrina e também na jurisprudência, verificar eventuais diferenças e implicações e se tal alteração reflete uma adaptação qualitativa da Lei Maria da Penha, ou seja, a probabilidade de êxito ou fracasso da referida alteração. Também será analisada, sob a mesma perspectiva acima, a alteração de natureza criminal trazida pela referida Lei n.º 13.871/2019, ou seja, as mudanças que dizem respeito à aplicação e ao cumprimento da pena por violência doméstica e familiar contra mulher.


2. Conceito de responsabilidade civil

A Lei Maria da Penha, por sua estrutura, é considerada pela doutrina como um microssistema jurídico, ou seja, um verdadeiro estatuto englobando normas assistenciais, preventivas e repressivas destinadas a coibir a violência doméstica e familiar contra mulher, do que são exemplos, dentre outros, a assistência social prevista no art. 8º, I; a medida protetiva de separação de corpos do art. 23, IV e o crime de descumprimento de medida protetiva (art. 24-A), valendo destacar, no ponto, a lição de Maria Berenice Dias:

A Lei Maria da Penha não é uma simples lei, é um precioso estatuto, não somente de caráter repressivo, mas, sobretudo, preventivo e assistencial. Verdadeiro microssistema que visa coibir a violência doméstica trazendo importantes mudanças. Apesar de não ser uma lei penal, nítido o seu colorido penalizador, ao tratar com mais rigor as infrações cometidas contra a mulher, no âmbito familiar, doméstico e na relação íntima de afeto5.

No mesmo sentido, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto:

A Lei 11.340/2006 extraiu do caldo da violência comum uma nova espécie, qual seja, aquela praticada contra a mulher (vítima própria), no seu ambiente doméstico, familiar ou de intimidade (art. 5.º). Nesses casos, a ofendida passa a contar com precioso estatuto, não somente de caráter repressivo, mas, sobretudo, preventivo e assistencial, criando mecanismos aptos a coibir essa modalidade de agressão6.

Pois bem. Foi nesse contexto de microssistema jurídico que a Lei Maria da Penha passou a disciplinar a responsabilidade civil por ato de violência doméstica e familiar contra mulher, responsabilidade que consiste na “obrigação de indenizar o dano, patrimonial ou moral, causado a outrem 7”, exigindo-se, ainda, a presença dos elementos indicados a seguir para a obtenção da indenização:

1) o dano causado a outrem, que é a diminuição patrimonial ou a dor, no caso de dano apenas moral;

2) nexo causal, que é a vinculação entre determinada ação ou omissão e o dano experimentado;

3) a culpa, que, genericamente, engloba o dolo (intencionalidade) e a culpa em sentido estrito (negligência, imprudência ou imperícia) correspondendo em qualquer caso à violação de um dever preexistente”8.

Fixadas, assim, as premissas da responsabilidade civil, vale distingui-la da responsabilidade criminal, a começar pelo fato de que a primeira decorre, em regra, de um ilícito civil, e a segunda de um ilícito penal. Assim, enquanto a responsabilidade civil pode ter por fundamento, por exemplo, o descumprimento de cláusula contratual e como principal consequência o dever de indenizar, mediante, na maioria dos casos, pagamento em dinheiro, a responsabilidade criminal pressupõe a prática de infração penal (crime ou contravenção) e sua principal consequência será o cumprimento de pena privativa de liberdade [ainda que substituída por pena restritiva de direito], ou multa, isolada ou cumulativamente.

Ademais, a prática de um ilícito civil, por si só, não implica responsabilidade criminal, mas a prática de um ilícito penal (crime ou contravenção) poderá acarretar ambas as responsabilidades, civil e criminal, ou seja, além de cumprir a pena corporal pela prática da infração penal, o condenado ficará sujeito a indenizar a vítima, pois, conforme art. 91, I, do Código Penal, um dos efeitos da condenação criminal é tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime, o que nos remete, novamente, ao tema sob análise, qual seja, a responsabilidade civil por ato de violência doméstica e familiar contra mulher.


3. Análise da alteração legal

Consoante já mencionado anteriormente, a alteração legislativa a partir da qual a Lei Maria da Penha passou a disciplinar a responsabilidade civil por ato de violência doméstica e familiar contra mulher foi positivada no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei n.º 13.871/2019, a qual, para tanto, acrescentou os §§4º e 5º ao art. 9º da Lei n.º 11.340/06, com a seguinte redação:

Art. 9º (...).

§4º - Aquele que, por ação ou omissão, causar lesão, violência física, sexual ou psicológica e dano moral ou patrimonial a mulher fica obrigado a ressarcir todos os danos causados, inclusive ressarcir ao Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com a tabela SUS, os custos relativos aos serviços de saúde prestados para o total tratamento das vítimas em situação de violência doméstica e familiar, recolhidos os recursos assim arrecadados ao Fundo de Saúde do ente federado responsável pelas unidades de saúde que prestarem os serviços.

§5º - Os dispositivos de segurança destinados ao uso em caso de perigo iminente e disponibilizados para o monitoramento das vítimas de violência doméstica ou familiar amparadas por medidas protetivas terão seus custos ressarcidos pelo agressor.

Percebe-se, da leitura do §4º acima, a previsão de duas modalidades de indenização, quais sejam, uma em favor da mulher vítima de violência doméstica, compreendendo os danos patrimoniais e morais, e outra em favor do Sistema Único de Saúde – SUS, quanto aos serviços prestados à vítima acima, cabendo os recursos, neste último caso, ao ente federado responsável pela unidade de saúde que prestou o atendimento. Já o §5º cuida de indenização sobre dispositivos de segurança utilizados para a proteção da vítima.

Percebe-se, ainda, sem maior esforço, que a alteração legislativa foi inspirada nas normas sobre responsabilidade civil previstas no Código Civil, em vigor desde 2003, cujo art. 186, caput, prevê que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”, e o art. 927, caput, do mesmo Código, estabelece que “aquele que, por ato ilícito (arts. 186. e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

Nesse contexto, parece não haver dúvida, desde logo, sobre o efeito retroativo das normas sobre responsabilidade civil inseridas na Lei Maria da Penha, pois esta não inaugurou a possibilidade jurídica de ajuizar ação civil de reparação de danos contra o autor da violência doméstica, mas, ao contrário, tal providência já poderia ser adotada, anteriormente, com base no Código Civil, que, há muito, cuida da matéria e não faz distinção entre atos ilícitos, sejam eles decorrentes, ou não, de violência doméstica e familiar contra mulher.

Todavia, para além dos efeitos retroativos e de outros que poderão merecer a atenção dos estudiosos, a questão a ser discutida no presente trabalho está relacionada à pertinência da inclusão de normas sobre responsabilidade civil na Lei Maria Penha, ou seja, em que medida essa alteração legislativa seria necessária e se, de fato, qualifica/potencializa a proteção de direitos, no caso, a reparação do dano decorrente da violência doméstica, ou, por outra, se se trata de sobreposição legislativa cujos efeitos práticos podem ser nulos ou muito limitados.

A sobreposição legislativa, no caso, parece evidente e revela, de certa forma, desprezo pelo sistema jurídico, pois, partindo-se do pressuposto de que o legislador conhece as normas de reponsabilidade civil previstas no Código Civil, conforme acima mencionado, bastaria dizer que tais normas se aplicam aos atos de violência doméstica e familiar contra mulher, ainda que tal menção, repita-se, fosse desnecessária, pois a Lei Civil não faz distinção entre atos ilícitos, e, por óbvio, estão incluídos os atos de violência doméstica.

Mas não é só. Além de desnecessária a previsão de responsabilidade civil na Lei Maria da Penha, a redação do §4º acima difere, inadvertidamente, daquela do art. 186. do Código Civil quanto ao elemento subjetivo, ou seja, enquanto a Lei Maria da Penha diz que a obrigação de indenizar decorre da ação ou omissão, o Código Civil exige que esta ação ou omissão tenha sido voluntária (dolosa), ou praticada mediante negligência ou imprudência (culposa)9, e, ainda, imperícia, conforme doutrina acima.

Portanto, a Lei Maria da Penha, no ponto, deverá ser interpretada de acordo com o Código Civil, ou seja, exigindo-se, também para a obrigação de indenizar decorrente de ato ilícito praticado no âmbito da violência doméstica e familiar contra mulher, a presença do dolo ou da culpa na conduta do agressor, o que reforça a convicção sobre a desnecessidade da norma, pois, na prática, serão aplicadas as regras do Código Civil sobre responsabilidade civil baseada na culpa, a mesma hipótese disciplinada na lei.

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3.1. Razões da alteração legal

De qualquer forma, vale analisar as razões da alteração legislativa, pois, ainda que a lei, após a vigência, se desprenda da vontade do legislador (mens legislatoris), quanto à interpretação, ou seja, na prática, a lei será o que os juízes e tribunais disserem em suas decisões (mens legis)10, eventuais razões de ordem legislativa ou de veto podem fornecer, em alguns casos, relevantes subsídios para orientar a interpretação e aplicação da norma.

Assim é que, analisando-se o Parecer Final da Câmara dos Deputados ao projeto de lei que resultou na alteração legislativa sob análise, nele não se vê qualquer justificativa, implícita ou explícita, para a diferença de redação entre a Lei Maria da Penha e o art. 186. do Código Civil, ou seja, nada é mencionado sobre a supressão do elemento subjetivo (dolo ou culpa) na conduta do agente responsável pelo ato de violência doméstica e familiar contra mulher11, do que se infere que houve mera omissão legislativa, omissão que, entretanto, não altera a essência das coisas.

Argumenta-se no referido Parecer, no ponto, apenas, que, embora o sistema geral de reparação civil seja aplicável [à violência doméstica], este não teria norma específica e clara sobre o tema, gerando insegurança jurídica12, assertiva sem comprovação, e, como já assinalado, apesar da equivocada redação do §4º do art. 9º da Lei Maria da Penha, seguirá sendo necessária a demonstração do dolo ou da culpa na conduta do agressor.

Acrescenta-se no referido Parecer, ainda, que, atualmente, a responsabilização do agressor estaria restrita à seara criminal com a aplicação de pena, ao passo que a previsão de reparação civil na Lei Maria da Penha também poderia contribuir para a prevenção da violência doméstica, assertiva que, por óbvio, dependerá de posterior verificação empírica, mas, quanto à responsabilização criminal, impõem-se, de imediato, algumas considerações.

No ponto, registre-se que nada há de errado com a responsabilização criminal dos agressores por violência doméstica, desde que o fato caracterize crime ou contravenção e estejam presentes os requisitos legais para a ação penal, quais sejam, materialidade, indícios de autoria e representação da vítima, esta quando exigida em lei, e, portanto, a condenação criminal será, na maioria dos casos, mera decorrência de indeclinável poder/dever estatal.

Assim, ainda que se possa discutir a possível preponderância da política repressivo/criminal no tema da violência doméstica contra mulher no Brasil, o que não é objeto deste trabalho, isso também decorre de opção legislativa e, portanto, se a alteração da lei, de fato, visava aperfeiçoar o sistema de proteção da mulher quanto à indenização cível, deveria, por exemplo, mirar a estruturação dos órgãos estatais destinados a atuar em favor da vítima.

Isso porque a questão, aqui, vai além da mera previsão legal da possibilidade de a vítima ajuizar ação cível de reparação de danos, pois, na maioria dos casos envolvendo violência doméstica, as vítimas não tem condições financeiras para contratar advogado e a advocacia pública, de um modo geral, parece não ter estrutura para absorver integralmente tal demanda13, do que se infere que a alteração legislativa, por si só, não terá o resultado esperado.

Aliás, ainda sobre a falta de estrutura dos órgãos de proteção da mulher, a Lei Maria da Penha prevê, desde a promulgação, a criação dos juizados especiais da violência doméstica, com competência exclusiva para julgar ações cíveis e criminais (art. 14), mas, ainda hoje, conforme relatório do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, há apenas 131 varas exclusivas de violência doméstica em um universo de mais de 10 mil varas judiciais no Brasil14.

Não bastasse, o relatório acima também registra que “as varas exclusivas com menores taxas de congestionamento são aquelas com competência nas áreas da infância e juventude (51%), família (63%) e violência doméstica (67%), em todos os casos, com índices inferiores às taxas aferidas nas varas exclusivas cíveis (70%) ou criminais (78%)”, ou seja, a vara exclusiva da violência doméstica seria, no caso, sem dúvida, uma melhor opção.

Portanto, em vez da previsão de mais uma ação judicial, deveria o legislador ter se ocupado do aperfeiçoamento do sistema de proteção, por exemplo, com medidas efetivas para a implantação definitiva dos juizados da violência doméstica em todo o território nacional, pois tais juizados, comprovadamente, tem tido desempenho superior ao das varas cíveis nas quais a vítima, a partir de agora, em regra, deverá buscar a indenização.

Aliás, ao optar pela previsão de mais uma ação judicial, sem focar na questão das deficiências estruturais, o legislador acaba por perpetuar situação de desigualdade que deveria combater, pois, na prática, as mulheres que residem em comarcas em que há juizados da violência doméstica seguirão tendo seu direito protegido em condições melhores que as demais, o que revela que a alteração legislativa também ignora a observância do princípio da igualdade previsto na Constituição Federal (art. 5º, caput).

Mas não é só. O Parecer Final da Câmara dos Deputados, acima mencionado, também rejeita proposta de redação apresentada pelo Senado Federal argumentando, em resumo, que tal proposta possibilitaria interpretação no sentido de que a reparação civil ficaria condicionada ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória, “o que não seria viável, ante a independência das instâncias cível e criminal, o que autoriza a vítima a pleitear a reparação civil de danos desde logo, independente da ação penal”.

Acrescenta-se no Parecer, ainda, que, condicionar a ação cível ao trânsito em julgado da condenação criminal, poderia frustrar a reparação dos danos, tendo em conta o longo tempo de duração do processo penal15, assertiva que será discutida adiante, valendo reiterar, por ora, que a questão fundamental não tem a ver com a independência das instâncias cível e criminal, mas com a falta de estrutura estatal para cumprir a alteração legislativa, e portanto, sob quaisquer ângulos de análise, a mudança implementada poderá não sair do papel, trazendo frustração para as vítimas.

3.2. A independência das instâncias cível e criminal

Analisa-se, a seguir, o conceito de independência das instâncias no direito brasileiro, pois este foi um dos aspectos considerados pelo Legislador para implementar a mudança sob exame, e tal conceito, como sabido, significa, em resumo, a possibilidade jurídica de alguém ser alvo, simultaneamente, de responsabilização civil, administrativa e criminal pelo mesmo fato16, valendo referir, aqui, uma vez mais, ao art. 91, I, do Código Penal, que impõe, como efeito da condenação criminal, a obrigação de reparar o dano cível decorrente do crime.

Todavia, a independência da instância cível em relação à criminal não é absoluta, mas, ao contrário, relativa, e ademais, revela a preponderância da justiça criminal quanto à prova da existência do fato e sua autoria, pois, conforme art. 935. do Código Civil, “a responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal”.

É dizer, se a certeza sobre a prática do crime e a identificação do autor já estiverem decididos no juízo criminal, não caberá mais discuti-los no juízo cível, o que mostra que o processo criminal pode impactar negativamente a ação cível quando, por exemplo, estiver provado na ação penal que o fato não existiu, ou que o réu não o tenha praticado, cenário no qual a ação de indenização cível será julgada improcedente e não se poderá ajuizar outra contra o mesmo acusado.

Não bastasse, de acordo com o art. 65. do Código de Processo Penal, “faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”, o que mostra, portanto, que, além da materialidade delitiva e da autoria, já mencionadas, afastada a ilicitude do fato no juízo criminal, tal conclusão prevalece sobre a ação cível, que, assim, também será julgada improcedente.

Percebe-se, portanto, que a mera alegação de independência das instâncias não garante, por si só, maior efetividade da ação cível, mas, ao contrário, esta poderá, repita-se, ser julgada improcedente em razão do que for apurado na ação penal, ou seja, ainda que a vítima opte por ajuizar, de imediato, a ação cível de indenização, se o fato, a autoria ou a ilicitude forem afastados na ação penal, todo o esforço na ação cível terá sido inútil, aspecto que parece ter sido ignorado pelo Legislador.

Não abala a convicção acima, ainda, o fato de que, eventualmente, possa restar provado na ação penal que o crime existiu e que o réu o tenha praticado, pois a conclusão do processo penal, nesse caso, somente seria aplicada à ação cível após o trânsito em julgado da sentença penal, o que, entretanto, poderá levar um tempo que, conforme o legislador, seria incompatível com o objetivo de garantir maior celeridade à indenização, daí incentivar o ajuizamento, desde logo, da ação cível.

3.3. A celeridade da ação cível de reparação de danos

Também não se sustenta, no caso, o argumento implícito do Legislador sobre a maior celeridade da ação cível de reparação de dano, quando comparada ao processo penal, pois, tendo em conta o relatório do Conselho Nacional de Justiça acima, a ação cível, sequer, deveria ter sido a primeira opção legislativa, e, ademais, conforme as normas de processo civil vigentes no país, ambas as ações (cível e criminal) são processos de conhecimento, ou seja, exigem a produção de provas para a determinação da culpa.

Disso decorre, portanto, que, assim como a ação penal, a ação cível também levará um tempo para a produção de provas até a sentença, sujeitas ambas aos princípios do contraditório e da ampla defesa, e, ademais, somente se poderá falar em indenização após julgada procedente e transitada em julgado referida decisão, não se tendo notícia, por outro lado, de eventual atalho jurídico capaz de tornar a ação cível mais célere.

Mas não basta. Julgada procedente a ação cível e tornada definitiva a decisão, ainda será necessário, na sequência, ingressar na chamada fase de cumprimento de sentença, antigo processo de execução, na qual o devedor/condenado ainda poderá se defender, por exemplo, quanto ao montante que está sendo cobrado, e, justa ou injustamente, postergar o prazo de satisfação do direito conquistado pela vítima (CPC, arts. 523. e ss.).

Ademais, conforme art. 315, caput, e §§ 1º e 2º, do Código de Processo Civil, se o julgamento do mérito da ação cível depender de verificação da existência de fato delituoso [crime ou contravenção], o juiz pode determinar a suspensão do processo, por até três meses, até que se pronuncie a justiça criminal [ajuizamento da ação penal], e, uma vez ajuizada, o processo cível poderá ser suspenso por até um ano aguardando a sentença do juízo criminal.

Aliás, mais severa é a previsão do art. 64, parágrafo único, do Código de Processo Penal, segundo o qual, “intentada a ação penal, o juiz da ação civil poderá suspender o curso desta, até o julgamento definitivo daquela”, ou seja, além do prazo de cerca de um ano e três meses acima referido, e tal providência é vista pela doutrina e jurisprudência como adequada para evitar “inoportuna ocorrência de decisões contraditórias”17.

Assim, a ação cível de indenização, além das dificuldades inerentes à própria tramitação, tais como citação, intimações, audiências e eventuais recursos, poderá ser legalmente suspensa até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o que reforça a conclusão sobre a relatividade da independência das instâncias e demonstra, de maneira clara, na hipótese sob análise, a preponderância da jurisdição criminal sobre a civil.

Em suma, não há base fática ou jurídica que sustente a assertiva de que a ação cível seria mais célere que o processo penal e, em consequência, a via mais apta a reparar o dano sofrido pela mulher vítima de violência doméstica, senão que a alteração legislativa, no caso, parece ignorar o funcionamento do sistema jurídico brasileiro, desprezando, inclusive, dados empíricos oficiais sobre a tramitação de ações judiciais, conforme relatório do CNJ acima mencionado.

Perdeu-se, assim, uma oportunidade para, de fato, aperfeiçoar o sistema de proteção da mulher vítima de violência doméstica, seja com a previsão de medidas efetivas para: a) implantação imediata dos juizados da violência doméstica em todo no território nacional; b) correção das deficiências estruturais mencionadas [defensoria pública], ou, ainda exemplificativamente, c) aperfeiçoamento da persecução penal.

3.4. Ressarcimento ao Sistema Único de Saúde – SUS

Antes, porém, de analisar a assertiva posta no item c acima, ou seja, o aperfeiçoamento da persecução penal como uma das possíveis alternativas para melhorar a resposta estatal no enfrentamento da violência doméstica e familiar, seja do ponto de vista criminal, seja do ponto de vista cível, retoma-se, aqui, a segunda modalidade de indenização cível incorporada à Lei 11.340/06, qual seja, aquela destinada ao Sistema Único de Saúde – SUS.

Com efeito, de acordo com a segunda parte do §4º do art. 9º da Lei Maria da Penha, o agressor também está obrigado a ressarcir o Sistema Único de Saúde (SUS), conforme tabela própria, quanto aos custos dos serviços prestados para o tratamento das vítimas de violência doméstica e familiar, recolhidos os recursos assim arrecadados ao Fundo de Saúde do ente federado responsável pelas unidades de saúde que prestarem os serviços.

Percebe-se, assim, pela literalidade do dispositivo, que, ao atribuir a titularidade dos recursos ao ente federado responsável pela unidade de saúde que prestou o tratamento/atendimento (União, Estado, Distrito Federal ou Município), a Lei também instituiu a titularidade para eventual cobrança administrativa ou judicial dos referidos recursos, o que torna o cenário um pouco melhor que aquele da vítima da violência.

Isso porque, ao contrário da vítima, que, repita-se, em sua maioria, não tem condições financeiras para contratar advogado visando o ajuizamento da ação de indenização, os entes estatais acima tem em sua estrutura administrativa profissionais do direito habilitados a ajuizar ações de ressarcimento, bastando, para tanto, que disponham dos documentos necessários, quais sejam, a comprovação do atendimento/tratamento e o valor.

Todavia, embora dispondo os entes públicos da comprovação do tratamento/atendimento à vítima de violência doméstica e respectivo valor, ou seja, documentos emitidos pela unidade de saúde e em conformidade com a tabela de valores do Sistema Único de Sáude, tais documentos, por si sós, não garantem o imediato ressarcimento, pois, ressalvado o pagamento voluntário, será necessária a comprovação da culpa do agressor.

É que, como já assinalado anteriormente, a obrigação de indenizar em razão de ato ilícito, categoria à qual se amoldam os atos de violência doméstica contra mulher, pressupõe a comprovação de dolo ou culpa na conduta do agressor, o que, por óbvio, não se pode extrair apenas dos documentos emitidos pelas unidades de saúde, mas, ao contrário, dependerá de procedimento administrativo ou judicial.

Assim, poderá o ente público, com base nos documentos das unidades de saúde, instaurar procedimento administrativo de cobrança no qual serão apurados a responsabilidade do agressor e o valor devido, observados o contraditório e a ampla defesa, ou ajuizar, de imediato, com base em tais documentos, a ação cível de ressarcimento, na qual também deverão ser demonstrados o dolo ou a culpa na conduta do agressor.

Instaurado o procedimento administrativo de cobrança e, ao final, apurados a responsabilidade e o valor, sem que o devedor efetue o pagamento voluntariamente, este deverá ser notificado para fazê-lo, sob pena de inscrição do débito em dívida ativa na modalidade não tributária para posterior cobrança judicial18, do que se infere que a inovação terá, na prática, alcance bem mais limitado que uma apressada leitura da lei poderia sugerir.

Por outro lado, optando o ente público pelo imediato ajuizamento da ação cível de ressarcimento, valem aqui as mesmas objeções já apresentadas, ou seja, se a ação cível de indenização em favor da vítima não deveria ter sido a primeira opção do legislador, tampouco deveria sê-lo a ação de ressarcimento do SUS, pois ambas somente contribuirão para agravar, ainda mais, a taxa de congestionamento do Poder Judiciário.

As mesmas objeções acima podem ser feitas ao ressarcimento previsto no §5º do art. 9º da Lei Maria da Penha, segundo o qual “os dispositivos de segurança destinados ao uso em caso de perigo iminente e disponibilizados para o monitoramento das vítimas de violência doméstica ou familiar amparadas por medidas protetivas terão seus custos ressarcidos pelo agressor”, pois também dependente da responsabilidade civil ou criminal do agressor.

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Sobre o autor
Marcelo Dias Martins

Promotor de Justiça em Minas Gerais/MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Marcelo Dias. Responsabilidade civil por ato de violência doméstica e familiar contra mulher e outras considerações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8041, 7 jul. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/94876. Acesso em: 5 dez. 2025.

Mais informações

Versão ampliada do trabalho apresentado, em maio de 2021, como requisito para a conclusão do curso de Pós-graduação em Direito Penal e Criminologia da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS.

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