4. Aperfeiçoamento da persecução penal
Retoma-se, aqui, a análise da assertiva relativa ao aperfeiçoamento da persecução penal, pois, se o tempo de duração do processo penal pode ser um entrave à indenização, a solução, conforme acima demonstrado, não parece estar na simplista opção pela ação cível, cuja tramitação, além de também demorada, é, em grande medida, dependente da ação penal, o que, entretanto, lastimavelmente, não foi considerado pelo Legislador.
Reitere-se, por oportuno, o disposto no art. 91, I, do Código Penal, que prevê como um dos efeitos automáticos da condenação criminal a obrigação de reparar o dano (material e moral) decorrente do crime, o que mostra que a ação penal pode e deve representar, além da punição corporal ao agressor, a possibilidade concreta de a vítima ser indenizada pelos danos acima, sem que, para tanto, tenha de ajuizar ação cível autônoma.
A propósito, assinala Guilherme de Souza Nucci que o sistema jurídico brasileiro deveria ser repensado,
permitindo-se ao juiz, na esfera penal, estabelecer, no mesmo processo em que há a condenação, a indenização necessária à vítima (...). A meta seria ganhar tempo, privilegiar a economia processual, proteger, com maior eficácia, o ofendido e evitar que este, cético com a lentidão e o alto custo da Justiça brasileira, prefira o prejuízo à ação civil ex delicto19.
Ainda sobre o tema, o Código de Processo Penal já prevê as chamadas medidas assecuratórias, cuja finalidade é garantir a reparação do dano causado pelo crime, tais como o sequestro (art. 125) e o arresto (art. 136) de bens móveis e imóveis e a especialização da hipoteca legal sobre bens imóveis do indiciado/réu (art. 134), o que reforça a assertiva sobre privilegiar a ação penal também sob o aspecto da reparação do dano.
Ademais, alcançada a condenação criminal e transitada em julgado a sentença, esta será considerada título executivo judicial, conforme previsto no Código de Processo Civil (CPC, art. 515, VII), a ser executada de imediato no juízo cível, sem a necessidade, portanto, da exaustiva e demorada produção de provas própria da ação cível de indenização, uma vez que tal tarefa já terá sido desenvolvida no curso do processo criminal, assertiva que também encontra eco no magistério de Júlio Fabbrini Mirabete:
no juízo cível, o interessado não será obrigado a comprovar a materialidade do crime, a ilicitude do fato e sua autoria, já assentes na esfera penal, para obter a reparação do dano causado pelo ilícito penal (...) no juízo cível não poderá reabrir-se a questão sobre a responsabilidade civil pelo fato reconhecido como crime em sentença transitada em julgado. Discutir-se-á apenas o montante da reparação20.
Não se trata, assim, de mera preferência subjetiva entre ação penal e ação cível para fins de indenização, mas de reconhecer, como já dito, em primeiro lugar, a preponderância da jurisdição criminal quanto ao reconhecimento dos principais elementos da busca pela indenização cível, quais sejam, a prova do fato, o dano, a autoria e a relação de causalidade entre eles, e, em segundo lugar, o efeito automático da obrigação de indenizar atribuído pela lei penal à condenação criminal.
Não abala a convicção acima, ainda, a eventual necessidade de liquidação da sentença criminal (CPC, art. 509. e ss.), pois a liquidação pode ser feita, inclusive, por arbitramento, ou seja, o juiz determina o valor a ser pago, e, noutros casos, sequer haverá liquidação, bastando a apresentação de cálculo aritmético pelo credor (vítima), não se admitindo, ainda, rediscussão da culpa21, ou seja, cuida-se de procedimento bem mais célere que a ação cível.
Assim, parece claro que, se o legislador pretendia, de fato, melhorar o sistema de proteção da mulher vítima de violência doméstica, notadamente quanto à garantia e celeridade da indenização em razão do fato, não deveria ter cogitado da ação cível, inaugurando, com isso, em razão de inadmissível desconhecimento ou desprezo pelas regras do sistema jurídico vigente, mais uma via crucis a ser percorrida pela referida vítima.
É que, como já assinalado, além das dificuldades materiais para o ajuizamento da ação cível, seu processamento também não é trivial, e, portanto, embora a alteração legislativa, em uma análise perfunctória, possa parecer positiva, um pouco mais de reflexão indicará sua limitação e superfluidade, revelando-se, ademais, verdadeiro contrassenso incentivar o ajuizamento de mais uma ação judicial perante um Poder Judiciário já abarrotado.
Com efeito, a sobrecarga de trabalho do Poder Judiciário brasileiro é realidade pública e notória, cujo reflexo mais danoso é, sem dúvida, a demora na prestação jurisdicional, e, portanto, a ação cível ora em análise será apenas mais uma tramitando ao lado de milhares de outras, sem qualquer mecanismo próprio que lhe garanta a propalada celeridade, convertendo-se, certamente, em mais um motivo de frustração para as vítimas e descrença na busca da justiça.
Mas não deveria ser assim, ou seja, caberia ao Legislador, antes de simplesmente optar pela ação cível com base na alegada demora do processo penal, verificar se o próprio sistema jurídico já não fornece solução para o problema, ainda que necessária alguma correção, mesmo porque, reitere-se, a opção legislativa, nesse caso, sequer tangencia a questão da demora na tramitação processual (cível ou criminal).
É dizer, a alteração legislativa não levou em consideração as possibilidades legais para viabilizar a reparação do dano diretamente a partir da condenação criminal e também não se preocupou com a melhoria das condições estruturais para garantir tal reparação, equiparando-se, assim, a outras alterações legislativas que não levam em conta a integridade do sistema jurídico, e, em consequência, além da frustração para os cidadãos destinatários da norma, acarretam o descrédito da função legislativa.
4.1. Prioridade de investigação e processo criminal
Pois bem. Na linha do que se vem de afirmar, uma das formas de corrigir o cenário já mencionado seria aperfeiçoar a persecução penal, por exemplo, instituindo um sistema legal de prioridade para a investigação policial e a ação penal nas infrações penais de violência doméstica e familiar contra mulher, o que, aliás, não é novidade, pois o Código de Processo Penal já estabelece prioridade legal da tramitação de investigação policial e da ação penal nas hipóteses de investigado/indiciado ou réu preso.
Em suma, nas investigações e processos criminais envolvendo réus/investigados presos os prazos são menores e mais rígidos, não comportando dilatação injustificada, sob pena de ilegalidade da prisão, o que, em regra, tem resultado em sentença (condenatória ou absolutória) no juízo de primeiro grau, no menor lapso temporal possível, o que também poderia ser aplicado à investigação e processo das infrações penais envolvendo violência doméstica e familiar contra mulher.
A diferença, no caso, seria a amplitude da medida, pois a prioridade acima também deveria alcançar investigações e processos envolvendo investigados/réus soltos, garantindo-se, assim, em quaisquer casos, a celeridade necessária à resposta estatal, respeitado, por outro lado, em sua integralidade, o direito de defesa do investigado/réu, solução que, repita-se, não seria novidade no sistema jurídico e capaz de mitigar, em larga medida, o problema em discussão.
Isso porque, a partir da prisão em flagrante ou do registro da ocorrência policial envolvendo violência doméstica e familiar contra mulher, a autoridade policial estaria obrigada, sob pena de responsabilidade, a observar rigorosamente os prazos estabelecidos para a conclusão da investigação, e, da mesma forma, o Ministério Público para o oferecimento de eventual denúncia e o Poder Judiciário para cuidar da tramitação da ação penal ajuizada.
Mas não é só. Além da necessidade de estrita observância dos prazos para a conclusão da investigação, caberia à autoridade policial também diligenciar para reunir, na própria investigação, o máximo de provas possível sobre a extensão do eventual dano patrimonial causado pela infração penal, visando, com isso, possibilitar a submissão do tema ao princípio do contraditório, na ação penal, e, consequentemente, a fixação do valor da indenização na própria sentença condenatória.
Mesma providência deveria ser adotada em relação aos custos de eventual tratamento médico dispensado à mulher vítima da violência doméstica pelo SUS e sobre eventuais dispositivos de monitoração eletrônica envolvendo tais infrações penais, ou seja, caberia a autoridade policial, também nesses casos, juntar à investigação a comprovação e o respectivo custo, viabilizando-se, assim, também sua inclusão na ação penal e, posteriormente, na sentença condenatória.
Isso porque o art. 387, IV, do Código de Processo Penal, já prevê, desde a alteração trazida pela Lei n.º 11.719/2008, que “o juiz, ao proferir a sentença condenatória, estabelecerá o valor mínimo a título de reparação pelo dano causado pela infração penal”, exigindo a jurisprudência majoritária, no caso, apenas, que haja pedido expresso na denúncia ou queixa, garantindo-se, assim, a submissão do tema ao princípio do contraditório22.
Assim, ainda que, por imposição legal, o juiz tenha que utilizar a expressão “valor mínimo”, o montante fixado poderá representar, no caso concreto, em razão das provas colhidas, valor muito próximo daquele que, de fato, seria devido, potencializando-se, assim, a solução integral da questão na esfera penal, pois a vítima, nesse caso, já não teria necessidade de ingressar com a ação cível de reparação de dano (ação civil ex delicto).
Embora também haja decisões judiciais restringindo a aplicação do art. 387, IV, do Código de Processo Penal, ou seja, exigindo, além de pedido expresso na denúncia, instrução probatória específica sobre o dano moral/patrimonial e respectivo valor23, tal orientação, data venia, parece ignorar que o réu se defende por meio de profissional habilitado, a quem caberá, portanto, resistir, integralmente, à pretensão lançada na denúncia.
Não o fazendo, ou seja, deixando o defensor de rebater a pretensão de fixação de valor mínimo para a reparação do dano, lançada na denúncia, afigura-se lícito concluir que a ela anuiu, ou, em outras palavras, precluiu seu direito de impugná-la, de modo que, exatamente por se tratar de valor mínimo, estará o juiz autorizado a fixá-lo na sentença condenatória de acordo com as provas dos autos, sem a necessidade de instrução específica.
Assim, o que se pretende com a assertiva do aperfeiçoamento da persecução penal é superar, ou, em larga medida, tornar desnecessário o ajuizamento de ação cível para “complementar” o valor do dano patrimonial fixado pelo juízo criminal, pois, quanto mais robusta a prova do dano e sua extensão, repita-se, mais condições terá o juízo criminal para fixar o valor real do dano sofrido pela vítima, ou muito próximo daquele.
Percebe-se, portanto, que o aperfeiçoamento da persecução penal nos moldes acima delineados, somado ao avanço jurisprudencial já verificado [conforme será demonstrado no item a seguir: violência doméstica e dano moral in re ipsa] poderia mitigar, em grande medida, o problema da demora na tramitação do processo criminal e, em consequência, reduzir o tempo até eventual condenação, diminuindo a sensação de injustiça e, por fim, trazendo celeridade e concretude à indenização cível decorrente do crime.
Não se há de argumentar, por óbvio, com a impossibilidade material de implantação da sistemática ora sugerida, pois, como já dito, o sistema jurídico brasileiro já conhece e lida diuturnamente com a prioridade de investigação e julgamento de investigados/indiciados/réus presos, daí porque não seria nenhum absurdo estender tal prioridade também para investigações/processos sobre violência doméstica e familiar contra a mulher.
Vale mencionar, em reforço, o disposto no art. 220, §8º, da Constituição Federal, que impõe ao Estado o dever de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares, e também o art. 227, caput, da mesma Constituição, que também lhe impõe, com absoluta prioridade, colocar crianças e adolescentes a salvo de toda forma de violência, situação a que estes estão rotineiramente expostos, direta ou indiretamente, nas situações envolvendo violência doméstica e familiar contra mulher.
É que, conforme revelam os processos criminais por violência doméstica e familiar contra mulher e os estudos doutrinários já realizados sobre o tema, crianças e adolescentes são sempre vítimas da mesma violência doméstica e familiar contra mulher, direta ou indiretamente24, e, nesses casos, além do abalo psíquico, por vezes é necessário valer-se das drásticas medidas de abrigamento institucional ou colocação em família substituta, especialmente nos casos de feminicídio25.
Nesse cenário, percebe-se a relevância da medida ora sustentada, a qual também encontra respaldo no princípio da prioridade absoluta acima referido, valendo mencionar, ainda sobre o crime de feminicídio, que, em sua modalidade consumada, representa a forma mais grave de violência contra a mulher, de acordo com o Atlas da Violência 2020, “em 2018, 4.519 mulheres foram assassinadas no Brasil, o que representa uma taxa de 4,3 homicídios para cada 100 mil habitantes do sexo feminino26”, e conclui o documento:
“Embora 2018 tenha apresentado uma tendência de redução da violência letal contra as mulheres na comparação com os anos mais recentes, ao se observar um período mais longo no tempo, é possível verificar um incremento nas taxas de homicídios de mulheres no Brasil e em diversas UFs. Entre 2008 e 2018, o Brasil teve um aumento de 4,2% nos assassinatos de mulheres”.
Não basta, como não tem sido suficiente, a previsão do parágrafo único do art. 33. da Lei Maria da Penha no sentido de que, enquanto não instalado o juizado da violência doméstica, será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o processo e o julgamento das causas respectivas, pois tais varas cumulam outras várias atribuições e, apesar do esforço pessoal de muitos juízes e promotores, a demora é inevitável, sem olvidar que, como já dito, mostram os dados empíricos já mencionados que a efetiva instalação do juizado de violência doméstica seria melhor solução que a ação cível.
Também não se há de argumentar contra a prioridade ora defendida com base em deficiências estruturais, estas já conhecidas e parte delas acima mencionadas, pois cabe ao próprio Estado corrigi-las, sob pena de avolumarem-se alterações legislativas sem qualquer efeito prático, equiparando-se tais leis, portanto, à continuada omissão inconstitucional na implementação de direitos fundamentais previstos na Constituição da República 27, o que, repita-se, somente traz descrédito à função legislativa.
Ainda a título de reforço argumentativo, a mudança ora proposta também encontra respaldo no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal, segundo o qual “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”, e, portanto, percebe-se que a maior celeridade na tramitação processual interessa não apenas ao réu e vítima, mas também a toda sociedade.
Aliás, conforme registram Valério de Oliveira Mazzuoli, Marcelle Rodrigues da Costa e Kledson Dionysio de Oliveira, o Brasil tem sido sistematicamente condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos - CIDH, ao menos desde 2006, em grande parte, pela excessiva demora na persecução penal de autores de violações de direitos humanos, cenário em que também incluída a violência doméstica e familiar contra mulher:
"É importante mencionar que o posicionamento determinado pela Corte IDH para o combate à impunidade de agentes criminosamente violadores de direitos humanos não implica a aniquilação ou a mitigação injustificada de garantias de defesa de réus e de investigados por episódios de violação (que também representam forma de respeito aos direitos humanos). No entanto, a Corte IDH, reiteradamente, tem ressaltado que, ao lado daqueles direitos de defesa, também devem ser efetivamente observadas as obrigações estatais de proteção dos direitos humanos violados, com o propósito de impedir casos de impunidade que se retroalimentam e potencializam o ciclo de violações e de desamparo das vítimas dessas violações.
Ilustrando essa verdade, a decisão da Corte IDH, nessa última condenação imposta ao Brasil, releva que, sem prejuízo dos direitos de réus e de investigados, o cumprimento das obrigações positivas do Estado em matéria penal implica a realização eficaz de todas as medidas jurídicas de investigação possíveis, em um tempo razoável, para a identificação e a punição de todos os responsáveis por atos de violações ilícitas a direitos humanos, sejam eles particulares ou agentes do próprio Estado"28.
Não por outra razão, também, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos - CIDH, em 2001, em razão da demora na investigação e processo criminal envolvendo a vítima Maria da Penha Fernandes Maia, que dá nome à Lei, estipulando, dentre outras, as seguintes recomendações, as quais guardam pertinência com o objeto deste trabalho:
“(...). 1. Completar rápida e efetivamente o processamento penal do responsável da agressão e tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Maria da Penha Fernandes Maia.
2. Proceder a uma investigação séria, imparcial e exaustiva a fim de determinar a responsabilidade pelas irregularidades e atrasos injustificados que impediram o processamento rápido e efetivo do responsável, bem como tomar as medidas administrativas, legislativas e judiciárias correspondentes (...)”29