A bioética e o princípio da solidariedade

Exibindo página 1 de 3
30/11/2021 às 02:37
Leia nesta página:

A bioética surgiu como meio de reflexão sobre o uso de tecnologias, pesquisas e seus impactos sobre o homem e a natureza.

INTRODUÇÃO

O termo bioética é bastante amplo, com vários conceitos e linhas de desenvolvimento. Em princípio, a bioética busca trazer harmonia para a vida em sociedade, por meio de estudos e metodologias. Essa vida em coletividade acarreta, assim, o interesse de um todo, o que a torna uma temática com bastante potencial para seu desenvolvimento em prol dos seres humanos[1].

A amplitude do tema leva ao pensamento de que o tema bioética é algo novo, mas as análises sobre o assunto demonstram o contrário, originadas desde o século passado. Um marco para o estudo da bioética é o Código de Nuremberg de 1947, composto por um conjunto de princípios éticos que regem, ainda hoje, pesquisa com seres humanos[2].

A Segunda Guerra Mundial impulsionou a utilização de novas tecnologias, proporcionando grandes investimentos às pesquisas, vistas como um meio de proporcionar sobrevivência à coletividade. Todavia, inúmeras barbáries foram cometidas em prol de tal desenvolvimento científico. Tal visão trouxe à baila questionamentos e reflexões éticas como possíveis riscos à humanidade, advindos do avanço e do progresso. Percebeu-se, portanto, a necessidade de se impor limites às possíveis aplicações científicas, com vistas ao bem-estar de todos.

Em 1971, o bioquímico americano Van Rensselaer Potter lança seu livro Bioética: Ponte para o Futuro (Bioethics: Bridge tothe Future), oriundo de seus estudos com pacientes portadores de câncer, buscando travar um diálogo entre a ciência da vida e os saberes da tecnologia. Tal obra é considerada como um dos marcos teóricos concernentes à bioética[3].

A bioética surgiu como um meio de reflexão sobre o uso de tecnologias e pesquisas, bem como possíveis impactos ocasionados ao homem e à natureza, no intuito de se compreender a interferência dos meios técnicos na vida e na saúde humana. A tecnologia oferta agilidade e facilidades aos seres humanos. Contudo, há de se ressaltar possíveis reflexos advindos de tal movimento evolutivo, como a perda de convivências pessoais e afinidades. O uso de meios de comunicação virtual que dispensam o contato pessoal, ocasionando perdas de possibilidades de convívio exemplifica bem a situação. Tal tema é exaustivamente tratado nos dias atuais, marcados por uma sociedade de risco[4] em uma modernidade líquida[5].

Enfatiza-se sobre as consequências bioéticas não somente quanto à saúde humana, mas também no que tange ao espaço onde todos os seres encontram-se inseridos, o meio ambiente. Reflexões e estudos de questões bioéticas para com o meio ambiente são vitais para ofertar possibilidades de manutenção e/ou melhorias ao bem-estar dos seres humanos.

Face ao exposto, busca-se, nesse estudo, trazer a lume um panorama sobre a temática. Trata-se do vínculo existente entre bioética e questões ambientais, por meio de apontamentos concernentes a dispositivos constitucionais pátrios, bem como por tratativa internacional, especificamente a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Abordam-se, em seguida, crises impulsionadas pelo consumismo, advindas da sociedade de risco.

Utiliza-se, para a construção da pesquisa, o método dedutivo, por meio de análise qualitativa de doutrinas, legislações e tratativas correlatas, com o fito de se responder à seguinte indagação: de que forma diretrizes bioéticas podem auxiliar no cumprimento do que é solicitado, pelo que se entende por meio ambiente equilibrado, em uma sociedade de risco e consumista?


1 A BIOÉTICA AMBIENTAL

 Trata a bioética de um fértil terreno para se buscar reflexões devidas no intuito de se solucionar desafios apresentados pelo avanço (bio)tecnológico apresentado pela sociedade de risco. Questões ambientais e de saúde humana controversas encaixam-se perfeitamente na arquitetura delineada há quase um século. Comparato, inclusive, afirma que a ciência contemporânea, aliás, afasta-se sempre mais e mais do pressuposto de equilíbrio estável, que dominou toda a teoria físico-química no passado[6].

Busca-se, para o estudo em questão, trazer à baila informações correlacionadas a um breve desenvolvimento histórico, com vista a demonstrar como se dá a devida conexão entre bioética e meio ambiente ecologicamente equilibrado.

1.1 Diretrizes bioéticas: conexões entre meio ambiente e bem-estar humano

 A expressão bioética veio a lume para tratar da ética da vida. Todavia, a contextualização do que se entende por vida passou por algumas modificações no decorrer dos tempos.

A primeira utilização do termo bioética data da década de 1920, especificamente em 1927, por meio de ensinamentos do teólogo alemão Fritz Jahr, denominados Bioética: uma revisão do relacionamento ético dos humanos em relação aos animais e plantas. Os ideais de Jahr tornaram-se diretrizes altamente preservacionistas, no fito de se estabelecer mais que uma relação harmônica com a natureza, tratando-a como uma irmã[7].

Décadas depois, precisamente em 1971, nos Estados Unidos da América (EUA), o bioquímico Van Ressenlaer Potter utilizou a denominação bioética em seu livro Bioética: Ponte para o Futuro, no intuito de demonstrar a necessidade de percepção de conexão entre meio ambiente, tecnologia e meio ambiente equilibrado[8]. Dizia o referido cientista que, como um câncer que se aloja e pode se alastrar em todo um organismo, o homem, por meio de sua contínua necessidade de dominação, exploração e consumo tem o poder de devastar e destruir o ambiente no qual se encontra inserido[9].

Percebe-se, portanto, a visceral ligação entre bioética e meio ambiente. Some-se, a esta constatação, tratar a década de 1970 como grande expoente na defesa ambiental, destacando-se, neste contexto, a Conferência de Estocolmo, no ano de 1972. Tal evento fez reunir dezenas de sujeitos internacionais, na finalidade de se compreender qual a melhor forma de desenvolvimento econômico frente à necessidade de preservação ambiental, tendo como finalidade a proteção de presentes e futuras gerações humanas.

Marco teórico de grande importância são os ensinamentos deixados por Hans Jonas, por meio das obras Princípio Vida e Princípio Responsabilidade, nas quais busca demonstrar a necessidade do homem em respeitar o local onde se encontra inserido, considerando a finitude, fragilidade e escassez de recursos ambientais frente às necessidades consumeristas humanas. Dizia o referido filósofo alemão: aja de modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra[10]. Jonas sustentava a necessidade de se romper com o que chamava de ética tradicional, por meio da implantação da ética da responsabilidade: nossa tese é de que os novos tipos e limites do agir exigem uma ética da previsão e responsabilidade compatível com esses limites, que seja tão nova quanto as situações com as quais ela tem de lidar[11].

Diretrizes bioéticas, ainda na década de 1970, passaram a ser utilizadas na seara médica, por meio de interpretação e ensinamentos de um obstetra holandês, Andre Hellegers. Este, em um caminho inverso utilizado por Potter[12], trouxe a bioética para tratar da ética da vida humana, precisamente quanto à relação entre profissionais da saúde e pacientes.

Tal situação (vínculo entre bioética e saúde humana), somada às barbáries ocorridas em período referente à Segunda Grande Guerra do século XX (e, por consequência, a formação do Tribunal de Nuremberg bem como Código correlato)[13], além das atrocidades cometidas em relação às más práticas médicas nas décadas de 1950-1960[14], fez surgir, no ano de 1974 nos EUA, a Comissão Nacional para a Proteção dos Seres Humanos da Pesquisa Bioética e Comportamental (NationalComission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research). Em 1978, a referida Comissão publicou um relatório que passou a servir como referência a todas as práticas e intervenções na área da saúde (Relatório Belmont)[15].

Contudo, não há que se dizer que a bioética fora retirada de questões ambientais. Potter, mais precisamente no ano de 1988, trouxe à baila um movimento denominado bioética global, com o intuito de se compreender a relação entre homem e meio ambiente em analogia à doenças e corpo humano[16]. A bioética global buscou estabelecer um novo olhar para com a sistematização entre questões ambientais, econômicas e sociais, retomando ensinamentos e diretrizes lançadas no início da década de 1970, quando da Conferência Mundial em Estocolmo, por meio da Declaração da Conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) no Ambiente Humano[17].

Logo, evidente a conexão entre bioética e questões ambientais. Busca a ética da vida auxiliar na promoção e estabelecimento, a presentes e a futuras gerações, do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ainda que em uma visão antropocêntico-reflexiva[18], a bioética busca proteger fauna, flora, enfim, a biodiversidade como um todo. Vide, para tanto, conteúdo do art. 225 da Constituição da República Federativa do Brasil[19] (CF/88), que versa sobre guias norteadores para o devido estabelecimento e manutenção de um meio ambiente equilibrado.  O referido dispositivo busca por em prática o afirmado por Piovesan: infere-se desses dispositivos quão acentuada é a preocupação da Constituição em assegurar os valores da dignidade e do bem-estar da pessoa humana, como imperativo de justiça social[20].

A bioética ambiental, em relação ao princípio constitucional da solidariedade intergeracional (caput artigo 225 CF/88[21]), busca como meio de diagnóstico o progresso do desenvolvimento racional do homem em relação ao meio ambiente. Essa diretriz principiológica fomenta ponderações sobre os anseios presentes e futuros quanto ao meio ambiente equilibrado, proporcionando, assim, possíveis melhoras na qualidade de vida dos seres humanos. Weiss estabelece que cabe a cada geração humana se portar como guardiã da natureza, tratando-a com a devida responsabilidade e respeito, de acordo com o estabelecido pela ética da vida[22].

1.2 Solidariedade intergeracional: de Estocolmo à Rio + 20

A preocupação com a solidariedade intergeracional passou a ser mais expressa e latente a partir do momento em que atores e sujeitos internacionais passaram a se reunir para tratar, especificamente, sobre questões ambientais. A Declaração da Conferência da Organização das Nações Unidas no Ambiente Humano (1972)[23] trouxe, de maneira expressa, tal preocupação.

Dita, em seu preâmbulo, que a defesa e o melhoramento do meio ambiente humano para as gerações presentes e futuras se converteu em meta imperiosa da humanidade. Estabelece, em seu Princípio 1, relação obrigação entre o homem e o meio ambiente, afirmando que aquele possui a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras[24]. Esta preocupação também se encontra inserida nos Princípios 2 (preservação de recursos naturais) e 19 (educação ambiental).

O assunto também é tratado na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992). O Princípio 3 estabelece que o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas equitativamente as necessidades de desenvolvimento e de meio ambiente das gerações presentes e futuras[25]. 

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Frisa-se a preocupação em salvaguardar o ambiente para o devido proveito de atuais e futuros cidadãos, bem como a preocupação em se fazer tentar convergir interesses sociais e econômicos para com questões ambientais. O lapso de 20 anos que as separa (1972-1992) repete-se (1992-2012), tendo como marco temporal a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio + 20), bem como por sua Declaração conhecida como O Futuro que Queremos[26].

Em 2012, a referida reunião internacional, realizada no Estado do Rio de Janeiro (RIO +20), expôs diálogos com o intuito do compromisso para com questões de desenvolvimento sustentável:

Há vinte anos, houve a Cúpula da Terra. Reunidos no Rio de Janeiro, os líderes mundiais concordaram com um projeto ambicioso para um futuro mais seguro. Eles buscaram equilibrar os imperativos de crescimento econômico robusto e as necessidades de uma população crescente contra a necessidade ecológica de conservar os recursos mais preciosos do planeta - terra, ar e água. E eles concordaram que a única maneira de fazer isso era romper com o velho modelo econômico e inventar um novo. Eles o chamaram de desenvolvimento sustentável[27].

Segundo informações do sítio do governo do Estado do Rio de Janeiro (2012), realizada há quarenta anos, a Conferência de Estocolmo representou o primeiro grande passo em busca da superação dos problemas ambientais[28]. A origem veio da forma de pensar de que os recursos da terra são inesgotáveis, bem como de marcos como acidentes ambientais, a exemplo a contaminação ocorrida na usina nuclear de Tcheliabinski, Chernobyl, que ocasionaram vários desastres ao maio ambiente.

Frisa-se, mais uma vez, a preocupação devida para com possíveis situações inesperadas, advindas do que se entende por sociedade de risco: atual sociedade, eternamente preocupada com a possibilidade da ocorrência de tragédias advindas do avanço tecnológico e industrial, a qual Beck denomina de Idade Média Moderna do Perigo[29]. Encontra-se o meio ambiente em uma frágil posição frente a possíveis desastres que possam vir à tona. Mister se faz, frente a tal situação de vulnerabilidade, reunir esforços globais no intuito de apontar diretrizes seguras, para com o desenvolvimento.

A Rio+ 20 buscou consolidar um liame entre o desenvolvimento sustentável e a economia verde. O Brasil também facilitou o diálogo e se abriu para o entendimento dessas discussões. Desde 1992, busca-se desenvolver um trabalho mais expressivo em conjunto com a Organização das Nações Unidas (ONU), com a finalidade de se consolidar a preservação do meio ambiente.

Junto com o surgimento da temática da bioética ambiental, veio também a preocupação da ONU em harmonizar a relação entre o homem e o meio no qual ele vive. Necessário se faz um olhar profundo para com os direitos humanos, em concordância com a solidariedade intergeracional, proporcionando oportunidades para que todos possam usufruir dos recursos naturais. Esta questão também se encontra enfatizada no texto constitucional da República Federativa do Brasil (CF/88).

A importância da CF/88 de tutelar a proteção à biodiversidade e à saúde humana é comentada com grande acuidade por Fiorillo:

O bem ambiental, fundamental, como declara a Carta Constitucional, e porquanto vinculado a aspectos de evidente importância à vida, merece tutela tanto do Poder Público como de toda a coletividade, tutela essa consistente num dever, e não somente em mera norma moral de conduta. E, ao referir-se à coletividade e ao Poder Público, leva-nos a concluir que a proteção dos valores ambientais estrutura tanto a sociedade, do ponto de vista de suas instituições, quanto se adapta às regras mais tradicionais das organizações humanas, como as associações civis, os partidos políticos e os sindicatos[30].

Verifica-se, portanto, como as temáticas sobre meio ambiente e sociedade encontram-se imbricadas. Não há como negar na necessidade de se estreitar os laços entre tais assuntos, e a bioética, como guia norteadora de condutas humanas para com a qualidade de vida, é peça-chave para tanto.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Igor Labre de Oliveira Barros

Foi Assessor Jurídico - NACOM - PRESIDÊNCIA/CORREGEDORIA do Tribunal de Justiça do Tocantins. Foi colaborador na Comissão Constituição e Justiça CCJ AL/TO. Foi colaborador da 1° Turma Recursal TJTO 3° Gabinete. Escritor. Mestrando em Agroenergia Digital 4.0. Foi Aluno Especial do Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos; Disc. Políticas Públicas Ambientais e Sustentabilidade ESMAT/TJTO. Bacharel em Direito CEULP\ULBRA Palmas.Foi Estagiário credenciado pela OAB/TO. Técnico Federal em Agroindústria IFTO. Foi Diretor de Novas Gerações - Rotary. Foi Pesquisador do PROICT. Foi Monitor de Direito Constitucional e Direito Administrativo no Curso de Direito CEULP\ULBRA. Foi Membro do GEDA Grupo de Estudos de Direito Administrativo. Foi Membro LADIFA Liga de Direito de Família. Palmas TO, e-mail: [email protected]

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos