INTRODUÇÃO
O termo bioética é bastante amplo, com vários conceitos e linhas de desenvolvimento. Em princípio, a bioética busca trazer harmonia para a vida em sociedade, por meio de estudos e metodologias. Essa vida em coletividade acarreta, assim, o interesse de um todo, o que a torna uma temática com bastante potencial para seu desenvolvimento em prol dos seres humanos[1].
A amplitude do tema leva ao pensamento de que o tema bioética é algo novo, mas as análises sobre o assunto demonstram o contrário, originadas desde o século passado. Um marco para o estudo da bioética é o Código de Nuremberg de 1947, composto por um conjunto de princípios éticos que regem, ainda hoje, pesquisa com seres humanos[2].
A Segunda Guerra Mundial impulsionou a utilização de novas tecnologias, proporcionando grandes investimentos às pesquisas, vistas como um meio de proporcionar sobrevivência à coletividade. Todavia, inúmeras barbáries foram cometidas em prol de tal desenvolvimento científico. Tal visão trouxe à baila questionamentos e reflexões éticas como possíveis riscos à humanidade, advindos do avanço e do progresso. Percebeu-se, portanto, a necessidade de se impor limites às possíveis aplicações científicas, com vistas ao bem-estar de todos.
Em 1971, o bioquímico americano Van Rensselaer Potter lança seu livro Bioética: Ponte para o Futuro (Bioethics: Bridge tothe Future), oriundo de seus estudos com pacientes portadores de câncer, buscando travar um diálogo entre a ciência da vida e os saberes da tecnologia. Tal obra é considerada como um dos marcos teóricos concernentes à bioética[3].
A bioética surgiu como um meio de reflexão sobre o uso de tecnologias e pesquisas, bem como possíveis impactos ocasionados ao homem e à natureza, no intuito de se compreender a interferência dos meios técnicos na vida e na saúde humana. A tecnologia oferta agilidade e facilidades aos seres humanos. Contudo, há de se ressaltar possíveis reflexos advindos de tal movimento evolutivo, como a perda de convivências pessoais e afinidades. O uso de meios de comunicação virtual que dispensam o contato pessoal, ocasionando perdas de possibilidades de convívio exemplifica bem a situação. Tal tema é exaustivamente tratado nos dias atuais, marcados por uma sociedade de risco[4] em uma modernidade líquida[5].
Enfatiza-se sobre as consequências bioéticas não somente quanto à saúde humana, mas também no que tange ao espaço onde todos os seres encontram-se inseridos, o meio ambiente. Reflexões e estudos de questões bioéticas para com o meio ambiente são vitais para ofertar possibilidades de manutenção e/ou melhorias ao bem-estar dos seres humanos.
Face ao exposto, busca-se, nesse estudo, trazer a lume um panorama sobre a temática. Trata-se do vínculo existente entre bioética e questões ambientais, por meio de apontamentos concernentes a dispositivos constitucionais pátrios, bem como por tratativa internacional, especificamente a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Abordam-se, em seguida, crises impulsionadas pelo consumismo, advindas da sociedade de risco.
Utiliza-se, para a construção da pesquisa, o método dedutivo, por meio de análise qualitativa de doutrinas, legislações e tratativas correlatas, com o fito de se responder à seguinte indagação: de que forma diretrizes bioéticas podem auxiliar no cumprimento do que é solicitado, pelo que se entende por meio ambiente equilibrado, em uma sociedade de risco e consumista?
1 A BIOÉTICA AMBIENTAL
Trata a bioética de um fértil terreno para se buscar reflexões devidas no intuito de se solucionar desafios apresentados pelo avanço (bio)tecnológico apresentado pela sociedade de risco. Questões ambientais e de saúde humana controversas encaixam-se perfeitamente na arquitetura delineada há quase um século. Comparato, inclusive, afirma que a ciência contemporânea, aliás, afasta-se sempre mais e mais do pressuposto de equilíbrio estável, que dominou toda a teoria físico-química no passado[6].
Busca-se, para o estudo em questão, trazer à baila informações correlacionadas a um breve desenvolvimento histórico, com vista a demonstrar como se dá a devida conexão entre bioética e meio ambiente ecologicamente equilibrado.
1.1 Diretrizes bioéticas: conexões entre meio ambiente e bem-estar humano
A expressão bioética veio a lume para tratar da ética da vida. Todavia, a contextualização do que se entende por vida passou por algumas modificações no decorrer dos tempos.
A primeira utilização do termo bioética data da década de 1920, especificamente em 1927, por meio de ensinamentos do teólogo alemão Fritz Jahr, denominados Bioética: uma revisão do relacionamento ético dos humanos em relação aos animais e plantas. Os ideais de Jahr tornaram-se diretrizes altamente preservacionistas, no fito de se estabelecer mais que uma relação harmônica com a natureza, tratando-a como uma irmã[7].
Décadas depois, precisamente em 1971, nos Estados Unidos da América (EUA), o bioquímico Van Ressenlaer Potter utilizou a denominação bioética em seu livro Bioética: Ponte para o Futuro, no intuito de demonstrar a necessidade de percepção de conexão entre meio ambiente, tecnologia e meio ambiente equilibrado[8]. Dizia o referido cientista que, como um câncer que se aloja e pode se alastrar em todo um organismo, o homem, por meio de sua contínua necessidade de dominação, exploração e consumo tem o poder de devastar e destruir o ambiente no qual se encontra inserido[9].
Percebe-se, portanto, a visceral ligação entre bioética e meio ambiente. Some-se, a esta constatação, tratar a década de 1970 como grande expoente na defesa ambiental, destacando-se, neste contexto, a Conferência de Estocolmo, no ano de 1972. Tal evento fez reunir dezenas de sujeitos internacionais, na finalidade de se compreender qual a melhor forma de desenvolvimento econômico frente à necessidade de preservação ambiental, tendo como finalidade a proteção de presentes e futuras gerações humanas.
Marco teórico de grande importância são os ensinamentos deixados por Hans Jonas, por meio das obras Princípio Vida e Princípio Responsabilidade, nas quais busca demonstrar a necessidade do homem em respeitar o local onde se encontra inserido, considerando a finitude, fragilidade e escassez de recursos ambientais frente às necessidades consumeristas humanas. Dizia o referido filósofo alemão: aja de modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra[10]. Jonas sustentava a necessidade de se romper com o que chamava de ética tradicional, por meio da implantação da ética da responsabilidade: nossa tese é de que os novos tipos e limites do agir exigem uma ética da previsão e responsabilidade compatível com esses limites, que seja tão nova quanto as situações com as quais ela tem de lidar[11].
Diretrizes bioéticas, ainda na década de 1970, passaram a ser utilizadas na seara médica, por meio de interpretação e ensinamentos de um obstetra holandês, Andre Hellegers. Este, em um caminho inverso utilizado por Potter[12], trouxe a bioética para tratar da ética da vida humana, precisamente quanto à relação entre profissionais da saúde e pacientes.
Tal situação (vínculo entre bioética e saúde humana), somada às barbáries ocorridas em período referente à Segunda Grande Guerra do século XX (e, por consequência, a formação do Tribunal de Nuremberg bem como Código correlato)[13], além das atrocidades cometidas em relação às más práticas médicas nas décadas de 1950-1960[14], fez surgir, no ano de 1974 nos EUA, a Comissão Nacional para a Proteção dos Seres Humanos da Pesquisa Bioética e Comportamental (NationalComission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research). Em 1978, a referida Comissão publicou um relatório que passou a servir como referência a todas as práticas e intervenções na área da saúde (Relatório Belmont)[15].
Contudo, não há que se dizer que a bioética fora retirada de questões ambientais. Potter, mais precisamente no ano de 1988, trouxe à baila um movimento denominado bioética global, com o intuito de se compreender a relação entre homem e meio ambiente em analogia à doenças e corpo humano[16]. A bioética global buscou estabelecer um novo olhar para com a sistematização entre questões ambientais, econômicas e sociais, retomando ensinamentos e diretrizes lançadas no início da década de 1970, quando da Conferência Mundial em Estocolmo, por meio da Declaração da Conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) no Ambiente Humano[17].
Logo, evidente a conexão entre bioética e questões ambientais. Busca a ética da vida auxiliar na promoção e estabelecimento, a presentes e a futuras gerações, do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ainda que em uma visão antropocêntico-reflexiva[18], a bioética busca proteger fauna, flora, enfim, a biodiversidade como um todo. Vide, para tanto, conteúdo do art. 225 da Constituição da República Federativa do Brasil[19] (CF/88), que versa sobre guias norteadores para o devido estabelecimento e manutenção de um meio ambiente equilibrado. O referido dispositivo busca por em prática o afirmado por Piovesan: infere-se desses dispositivos quão acentuada é a preocupação da Constituição em assegurar os valores da dignidade e do bem-estar da pessoa humana, como imperativo de justiça social[20].
A bioética ambiental, em relação ao princípio constitucional da solidariedade intergeracional (caput artigo 225 CF/88[21]), busca como meio de diagnóstico o progresso do desenvolvimento racional do homem em relação ao meio ambiente. Essa diretriz principiológica fomenta ponderações sobre os anseios presentes e futuros quanto ao meio ambiente equilibrado, proporcionando, assim, possíveis melhoras na qualidade de vida dos seres humanos. Weiss estabelece que cabe a cada geração humana se portar como guardiã da natureza, tratando-a com a devida responsabilidade e respeito, de acordo com o estabelecido pela ética da vida[22].
1.2 Solidariedade intergeracional: de Estocolmo à Rio + 20
A preocupação com a solidariedade intergeracional passou a ser mais expressa e latente a partir do momento em que atores e sujeitos internacionais passaram a se reunir para tratar, especificamente, sobre questões ambientais. A Declaração da Conferência da Organização das Nações Unidas no Ambiente Humano (1972)[23] trouxe, de maneira expressa, tal preocupação.
Dita, em seu preâmbulo, que a defesa e o melhoramento do meio ambiente humano para as gerações presentes e futuras se converteu em meta imperiosa da humanidade. Estabelece, em seu Princípio 1, relação obrigação entre o homem e o meio ambiente, afirmando que aquele possui a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras[24]. Esta preocupação também se encontra inserida nos Princípios 2 (preservação de recursos naturais) e 19 (educação ambiental).
O assunto também é tratado na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992). O Princípio 3 estabelece que o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas equitativamente as necessidades de desenvolvimento e de meio ambiente das gerações presentes e futuras[25].
Frisa-se a preocupação em salvaguardar o ambiente para o devido proveito de atuais e futuros cidadãos, bem como a preocupação em se fazer tentar convergir interesses sociais e econômicos para com questões ambientais. O lapso de 20 anos que as separa (1972-1992) repete-se (1992-2012), tendo como marco temporal a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio + 20), bem como por sua Declaração conhecida como O Futuro que Queremos[26].
Em 2012, a referida reunião internacional, realizada no Estado do Rio de Janeiro (RIO +20), expôs diálogos com o intuito do compromisso para com questões de desenvolvimento sustentável:
Há vinte anos, houve a Cúpula da Terra. Reunidos no Rio de Janeiro, os líderes mundiais concordaram com um projeto ambicioso para um futuro mais seguro. Eles buscaram equilibrar os imperativos de crescimento econômico robusto e as necessidades de uma população crescente contra a necessidade ecológica de conservar os recursos mais preciosos do planeta - terra, ar e água. E eles concordaram que a única maneira de fazer isso era romper com o velho modelo econômico e inventar um novo. Eles o chamaram de desenvolvimento sustentável[27].
Segundo informações do sítio do governo do Estado do Rio de Janeiro (2012), realizada há quarenta anos, a Conferência de Estocolmo representou o primeiro grande passo em busca da superação dos problemas ambientais[28]. A origem veio da forma de pensar de que os recursos da terra são inesgotáveis, bem como de marcos como acidentes ambientais, a exemplo a contaminação ocorrida na usina nuclear de Tcheliabinski, Chernobyl, que ocasionaram vários desastres ao maio ambiente.
Frisa-se, mais uma vez, a preocupação devida para com possíveis situações inesperadas, advindas do que se entende por sociedade de risco: atual sociedade, eternamente preocupada com a possibilidade da ocorrência de tragédias advindas do avanço tecnológico e industrial, a qual Beck denomina de Idade Média Moderna do Perigo[29]. Encontra-se o meio ambiente em uma frágil posição frente a possíveis desastres que possam vir à tona. Mister se faz, frente a tal situação de vulnerabilidade, reunir esforços globais no intuito de apontar diretrizes seguras, para com o desenvolvimento.
A Rio+ 20 buscou consolidar um liame entre o desenvolvimento sustentável e a economia verde. O Brasil também facilitou o diálogo e se abriu para o entendimento dessas discussões. Desde 1992, busca-se desenvolver um trabalho mais expressivo em conjunto com a Organização das Nações Unidas (ONU), com a finalidade de se consolidar a preservação do meio ambiente.
Junto com o surgimento da temática da bioética ambiental, veio também a preocupação da ONU em harmonizar a relação entre o homem e o meio no qual ele vive. Necessário se faz um olhar profundo para com os direitos humanos, em concordância com a solidariedade intergeracional, proporcionando oportunidades para que todos possam usufruir dos recursos naturais. Esta questão também se encontra enfatizada no texto constitucional da República Federativa do Brasil (CF/88).
A importância da CF/88 de tutelar a proteção à biodiversidade e à saúde humana é comentada com grande acuidade por Fiorillo:
O bem ambiental, fundamental, como declara a Carta Constitucional, e porquanto vinculado a aspectos de evidente importância à vida, merece tutela tanto do Poder Público como de toda a coletividade, tutela essa consistente num dever, e não somente em mera norma moral de conduta. E, ao referir-se à coletividade e ao Poder Público, leva-nos a concluir que a proteção dos valores ambientais estrutura tanto a sociedade, do ponto de vista de suas instituições, quanto se adapta às regras mais tradicionais das organizações humanas, como as associações civis, os partidos políticos e os sindicatos[30].
Verifica-se, portanto, como as temáticas sobre meio ambiente e sociedade encontram-se imbricadas. Não há como negar na necessidade de se estreitar os laços entre tais assuntos, e a bioética, como guia norteadora de condutas humanas para com a qualidade de vida, é peça-chave para tanto.