Em meio ao cenário pandêmico, novos hábitos começaram a ser cultivados e aprendidos pela sociedade do século XXI. Pessoas passaram a ficar em casa e solicitar comidas de estabelecimentos alimentícios por aplicativos. Foi a novidade no setor econômico. Essa prática fez com que diversos trabalhadores, iludidos com a ideia de que a UBER não garantia vínculo trabalhista entre os seus motoristas, tivessem rotinas desgastantes e desumanas. Seus direitos fundamentais e trabalhistas eram desrespeitados e tudo parecia um mundo sem lei.
Para que os motoristas da UBER tivessem direitos mínimos respeitados, tinham que entrar com demandas judiciais desgastantes e duradouras. Muitos não tinham essa condição e se sentiram obrigados a abdicar, de maneira forçosa, a seus direitos. Alguns poucos até chegaram a reivindicar seus direitos trabalhistas, maneira em que conseguiam alguns direitos atendidos com a realização de acordos às vésperas de decisões favoráveis aos seus casos.
Ocorre que esses acordos começaram a ficar numerosos, o que fez com que a Décima Primeira Câmara do Tribunal Regional do Trabalho da Décima Quinta Região (TRT-15) reconhecesse que se tratava de uma estratégia de manipulação da jurisprudência. Os juízes entenderam ser esta estratégia da UBER uma vantagem desproporcional ao trabalhador e uma fraude trabalhista extremamente lucrativa. Ademais, apontaram a incompatibilidade entre a observância do princípio da cooperação e o abuso do direito processual. O Desembargador João Batista Martins César afirmou que é indubitável dizer que a UBER exerce atividade de transporte de passageiros. A tecnologia por ela utilizada é somente um mecanismo para a prestação de seus serviços (GIOVANAZ, 2021).
O Presidente da OAB-SP Jorge Pinheiro Castelo explicou que essa estratégia da UBER é uma forma de tentar escolher a jurisprudência. Sempre que vai cair em uma turma do tribunal em que vai haver reconhecimento do vínculo [empregatício], eles vão lá e pagam tudo para o reclamante [motorista], de forma a encerrar o processo e não ter uma decisão (GIOVANAZ, 2021). Vale lembrar que as autoras Adriana Goulart de Sena Orsini e Ana Carolina Reis Paes Leme (2021) já haviam denunciado essa estratégia em seu artigo Litigância manipulativa da jurisprudência e plataformas digitais de transporte: levantando o véu do procedimento conciliatório estratégico. Castelo ainda afirmou que é uma situação complexa, porque você está lidando com empresas com muito poder econômico, com assessoria jurídica enorme. É uma estratégia mundial (GIOVANAZ, 2021).
Diante desta situação já reconhecida por todos, há de se perguntar qual a responsabilidade civil do Estado diante dessa manipulação processual por parte de uma empresa - principalmente sabendo que vários motoristas já foram lesados com esse procedimento, e também no tocante aos seus direitos fundamentais.
Qualquer ente da Federação pode prestar ou realizar a exploração estatal direta da atividade econômica, bem como deve planejar, incentivar, regular e fiscalizar as atividades econômicas e a prestação de serviços públicos, conforme artigos 173, 174 e 175 da Carta Magna. A liberdade econômica não é absoluta; ela deve resguardar os valores de trabalho humano e dignidade da pessoa humana para alcançar a justiça social (BAHIA; MARTINS, 2020).
A pandemia do COVID-19 potencializou a transformação social, obrigando os indivíduos a utilizar a tecnologia da informação e comunicação das plataformas virtuais para fazer seus pedidos a serem entregues a domicílio, que se chama o processo de uberização (BRAGHINI, 2020). Isso não significa, todavia, que se deve aproveitar um momento como esse para se aproveitar de pessoas que perderam seus empregos e explorá-las ao máximo, principalmente ao ponto de se manipular jurisprudências em busca do lucro.
Observa-se na verdade que esses serviços de entregas por plataformas digitais potencializaram a informalidade, arranjos precários de trabalho e retrocesso ao trabalho, tendo em vista que não possuem legislação específica em relação às plataformas digitais (ANTUNES, 2020). Diante disso, resta evidente a responsabilidade civil objetiva do Estado no tocante aos danos gerados às pessoas pela UBER.
O Estado não cumpriu com seu dever de fiscalização nessa questão dos transportes que envolviam a UBER e nem com o resguardo dos direitos fundamentais dos motoristas dessa empresa. Já não basta a liberdade de encargos tributários de que goza essa empresa. O poderio econômico dela não pode ser motivo de infração às leis de um país.
Assim, entendemos que o Estado possui responsabilidade civil objetiva diante do fato, uma vez que qualquer ente da Federação pode prestar ou realizar a exploração estatal direta da atividade econômica, bem como deve planejar, incentivar, regular e fiscalizar as atividades econômicas e a prestação de serviços públicos, conforme artigos 173, 174 e 175 da Carta Magna. O Estado não cumpriu com sua obrigação.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Ricardo (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2020.
BAHIA, S.J.C.; MARTINS, C.E. B. R. Direitos e deveres fundamentais em tempos de coronavírus. 2.vol.São Paulo: Iasp, 2020.
BRAGHINI, Marcelo. Contrato de trabalho de emergência em tempos de crise (COVID-19). Leme, São Paulo: JH Mizuno, 2020.
BRASIL. Portaria nº 188, de 3 de fevereiro de 2020. Declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV). Brasília, Ministério da Saúde. 2020. Disponível em: <http://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-188-de-3-de-fevereiro-de-2020-241408388>.Acesso em: 06 jan. 2021.
______. Lei13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Brasília: Congresso Nacional. Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.979-de-6-de-fevereiro-de-2020-242078735>. Acesso em: 25 jan. 2021.
______. Decreto nº10.282, de 20 de março de 2020. Regulamenta a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para definir os serviços públicos e as atividades essenciais. Brasília: Congresso Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10282.htm>. Acesso em: 25 jan. 2021.
______. Portaria nº 454, de 20 de março de 2020. Declara, em todo o território nacional, o estado de transmissão comunitária do coronavírus (covid-19).
______, Ministério da Saúde, [2020e]. Disponível em: < https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-454-de-20-de-marco-de-2020-249091587>.Acesso em 06 jan. 2021
______. Ministério da Saúde. Secretária de Atenção Primária à saúde. Protocolo de manejo clínico do coronavírus (COVID-19) na atenção primária à saúde. versão 8. Brasília: Ministério da Saúde, 2020. 41p.Disponível em:< https://www.sbmfc.org.br/wp-content/uploads/2020/04/20200422-ProtocoloManejo-ver08.pdf>. Acesso em 28 jan.2021.
______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 22 jan. 2021.
GIOVANAZ, Daniel. Como a UBER manipula jurisprudência para evitar reconhecimento de vínculo de emprego. Disponível em: <brasildefato.com.br>. Acesso em: 12 nov. 2021
ORSINI, Adriana Goulart de Sena et al. Litigância manipulativa da jurisprudência e plataformas digitais de transporte: levantando o véu do procedimento conciliatório estratégico. Biblioteca Digital da Justiça do Trabalho. Disponível em: < https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/182394>.Acesso em: 06 jan. 2021.