4. LEI nº 13.869/2019 OS DESDOBRAMENTOS PRÁTICOS NA ATUAÇÃO DO DELEGADO DE POLÍCIA
4.1. PRINCIPAIS CRIMES DE ABUSO DE AUTORIDADE QUE PODEM SER COMETIDOS PELAAUTORIDADE POLICIAL
O que a sociedade brasileira espera de um delegado de polícia é, acima de tudo, um assegurador de direitos, não apenas da sociedade, mas também do criminoso. Para isso, deve ser garantida a ele independência para desenvolver sua função híbrida, pois, além de um operador do direito, é policial e administrador. Deve ser assegurada ao delegado de polícia a autonomia, sem pressões de nenhuma forma, seja de outras autoridades, mídia ou da sociedade.
O delegado é o primeiro juiz da causa, primeira autoridade estatal a dar um contorno jurídico-penal para fatos aparentemente delituosos. A tarefa de investigar é uma atividade típica de um delegado, pois ele funciona em um processo como cumpridor da lei, mesmo que, não raro, discorde dela ou não a considere justa, afinal, é o aplicador da lei e não seu criador (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).
Para delegados estaduais e federais, com a nova Lei de Abuso de Autoridade, serão acrescidos novos crimes, que foram dispostos na nova legislação. No capítulo VI da Lei 13.869/2019, em seu artigo 13, considera-se crime constranger o preso a prática de algum ato não previsto em lei: Art. 13. Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a: I - exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública; II - submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei; III - produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro; [...]. (BRASIL, 2019).
Na lei anterior (BRASIL, 2021), em seu artigo 3°, define-se como crime qualquer atentado à liberdade de locomoção ou à incolumidade física do indivíduo, o que revela um tipo penal extremamente abrangente. Em contrapartida, na nova lei (BRASIL, 2019), em seu artigo 13, há a definição de que, para se configurar o crime, o constrangimento deve ser mediante violência, grave ameaça ou com a redução de sua capacidade de resistência a adentrar em qualquer um desses três incisos. 14 Assim como os demais delitos de abuso de autoridade, cuida-se de crime pluriofensivo, havendo 2 bens jurídicos protegidos.
Em um primeiro momento, protegem-se os direitos e garantias fundamentais das pessoas físicas e jurídicas, nesse caso, especificamente, a integridade moral, a honra e a imagem. Insta ressaltar que é perfeitamente possível a coautoria quando o constrangimento do preso deriva da vontade de múltiplos agentes, mesmo que só um deles possua qualidade exigida pelo tipo.
A título de exemplo, tem-se o conluio de um policial civil e de um agente de segurança de estabelecimento privado no constrangimento de preso, mediante grave ameaça, a exibir-se a curiosidade pública, por mero capricho. Conforme se vê no artigo 15 da Lei nº 13.869/2019, também será considerado abuso de autoridade: Art. 15. Constranger a depor, sob ameaça de prisão, pessoa que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, deva guardar segredo ou resguardar sigilo: Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem prossegue com o interrogatório: I - de pessoa que tenha decidido exercer o direito ao silêncio; ou II - de pessoa que tenha optado por ser assistida por advogado ou defensor público, sem a presença de seu patrono. (BRASIL, 2019b). Como se aponta no artigo acima, o abuso de autoridade se trata de um crime bipróprio, visto que o tipo penal exige não só que o sujeito ativo seja agente público ou autoridade, mas também que o sujeito passivo detenha características especiais, ou seja, estar sujeito ao dever de sigilo em razão da função, ministério, ofício ou profissão.
Os profissionais englobados pelo sigilo são indicados em diversas normas constitucionais, legais e infralegais, a exemplo do parlamentar art. 53, §3º da Constituição Federal [CF (BRASIL, 2021a)] e o advogado art. 7º, XIX da Lei nº 8.906/1994 (BRASIL, 2021a). É importante ressaltar que, com base no artigo supracitado, em que o interrogado exerce o direito de ficar calado, o fato de não ser possível consignar as perguntas não impede que a autoridade, logo após se identificar, indique o objeto da apuração de maneira pormenorizada, apontando os fatos investigados e as diligências já concluídas até o momento. Além disso, os dados sobre a qualificação e vida pregressa ainda continuam necessários e obrigatórios (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).
Ainda em relação ao art. 15, II, que trata sobre o constrangimento de pessoa 15 que tenha optado por ser assistida por advogado ou defensor público, sem a presença de seu patrono, o delegado não está obrigado a aguardar o comparecimento do causídico para então iniciar e concluir o interrogatório. Principalmente no caso de prisão em flagrante, que possui exíguo prazo para conclusão, não é necessário que o procedimento permaneça suspenso até a chegada do patrono, basta que não se prossiga com a inquirição do suspeito (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).
Continuando a análise dos desdobramentos práticos causados pela Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b) na atuação dos delegados de polícia, o artigo 18 assegura que é vedado submeter o preso a interrogatório policial durante o período de repouso noturno, salvo se capturado em flagrante delito ou se ele, devidamente assistido, consentir em prestar declarações (BRASIL, 2019b ). Como já exposto acima, os crimes de abuso de autoridade são classificados como próprios quanto ao sujeito ativo.
A infração penal em destaque não é exceção, pois o tipo penal exige uma qualidade especial do agente público. Trata-se de um crime próprio, mas não necessariamente de mão própria, uma vez que pode ser cometido não só pelo delegado de polícia que realiza o interrogatório policial durante o repouso noturno, mas também pelo escrivão que, sozinho, executa o ato.
Cabe ressaltar que a realização de oitivas de vítimas e de testemunhas também não foi abarcada pelo tipo penal acima, de modo que pode ocorrer em qualquer dia da semana e em qualquer horário. Trata-se de prática usual em investigações de homicídio. Um exemplo trazido pelo professor e delegado de polícia Henrique Hoffmann (2021a) seria quando da chegada de equipe policial em local de crime, ainda que em período de repouso noturno, os policiais costumam se defrontar com uma potencial testemunha, a qual, pelos ditames da lei, pode ser conduzida à delegacia para realização da coleta de seu depoimento.
É de fundamental importância mencionar que esse tipo incriminador comporta exceções. O interrogatório noturno pode ser realizado em razão de captura em flagrante e também com o consentimento do preso, estando esse devidamente assistido. Desse modo, fica evidente que o legislador buscou impedir o interrogatório noturno daquele que foi alvo de mandado de prisão temporária ou preventiva.
Sendo assim, no caso da captura em flagrante, o preso pode ser interrogado em qualquer horário, mesmo que não esteja assistido por familiares ou por advogado. Nessa continuidade, também será considerado abuso de autoridade manter 16 presos de ambos os sexos na mesma cela ou espaço de confinamento, como demonstra o artigo a seguir: Art. 21. Manter presos de ambos os sexos na mesma cela ou espaço de confinamento: Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem mantém, na mesma cela, criança ou adolescente na companhia de maior de idade ou em ambiente inadequado, observado o disposto na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). (BRASIL, 2019b).
Assim como os demais crimes de abuso de autoridade, como já exposto acima, trata-se de crime pluriofensivo. Sendo assim, pode se extrair do artigo supracitado que o crime pode ser praticado pelo responsável pela determinação ou pela execução do encarceramento de pessoas, a exemplo do delegado, do juiz e do policial penal. Entretanto, a manutenção de pessoa confinada, por exemplo, pode ser determinada por uma autoridade, mas executada por um terceiro que não detém tais atribuições, tratando-se, assim, de um crime próprio, mas não de mão própria.
É mister ressaltar que o artigo se refere a cela ou espaço de confinamento em sua parte final. Segundo Renato Brasileiro (2020), deve-se compreender por cela um espaço mais restrito, destinado ao recolhimento de presos. Já o espaço de confinamento é o ambiente improvisado, onde os presos permanecem transitoriamente custodiados até que haja o recolhimento ao local adequado para cumprir a determinação judicial de prisão.
Muitas mudanças foram promovidas com advento da nova Lei de Abuso de Autoridade em relação ao que pode ser abuso de autoridade na conduta dos delegados, como a inviolabilidade de domicílio, que consta em: Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei: Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. § 1º Incorre na mesma pena, na forma prevista no caput deste artigo, quem: I - coage alguém, mediante violência ou grave ameaça, a franquear-lhe o acesso a imóvel ou suas dependências; II - (VETADO); III - cumpre mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h (vinte e uma horas) ou antes das 5h (cinco horas). § 2º Não haverá crime se o ingresso for para prestar socorro, ou quando houver fundados indícios que indiquem a necessidade do ingresso em razão de situação de flagrante delito ou de desastre. (BRASIL, 2019a).
É indispensável mencionar que a lei anterior caracterizava o crime como qualquer atentado contra a inviolabilidade do domicílio. Sabendo que o tipo penal 17 acima protege a inviolabilidade da casa, convém verificar a previsão constitucional dessa proteção e suas exceções (em que autorizam a entrada no imóvel): Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; [...].(BRASIL, 2021a).
No que tange ao imóvel ou à casa, embora a Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b) tenha utilizado apenas o vocábulo imóvel, o objeto material é exatamente o mesmo. O policial, para adentrar uma residência, deve obedecer o disposto na lei, seja na Constituição Federal (BRASIL, 2019b) ou no Código Penal [CP (BRASIL, 2021)]. Vale lembrar que a mera denúncia anônima não basta para adentrar em um domicílio e que já há determinação do Comando Geral da Instituição quanto às situações em que é lícita a entrada do militar em residência alheia (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).
Outro ponto a ser destacado no que se refere à inviolabilidade de domicílio é o horário concedido para entrada no domicílio em relação ao dia e noite. A Doutrina divide-se quanto ao melhor critério para estabelecer o conceito de dia. Segundo o critério físico-astronômico, o dia é o período entre a aurora e o crepúsculo (nascer e pôr-do-sol). Outro critério utilizado foi o cronológico, que, por sua vez, engloba o espaço de tempo entre 6h e 18h, dividindo dia e noite em períodos iguais de 12hs.
Por fim, existe o critério misto entre os conceitos (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021). A Lei nº 13.869/2019 (BRASIL 2019b) define como crime, em seu art. 22, §1º, III, o cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h ou antes das 5h. Logo, foi adotado o critério cronológico, alterando seu intervalo de tempo. Dado o exposto, é importante mencionar que, excepcionalmente, é possível o início do cumprimento de mandado judicial na casa à noite.
São os casos de: flagrante delito, desastre e prestação de socorro. Nessa linha de pensamento, como a inviolabilidade não pode transformar o domicílio em reduto inexpugnável de criminalidade, o Supremo Tribunal Federal admitiu a entrada judicialmente autorizada em escritório de advocacia durante a noite, para viabilizar o êxito da instalação de equipamento de captação de comunicação ambiental (COSTA; 18 FONTES; HOFFMANN, 2021).
No capítulo VI da nova Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b), em seu artigo 25, considera-se crime de autoridade a obtenção ou utilização de prova ilícita, onde: Art. 25. Proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito: Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem faz uso de prova, em desfavor do investigado ou fiscalizado, com prévio conhecimento de sua ilicitude. (BRASIL, 2019). Apesar de estar previsto na Lei nº 4.898/1965 (BRASIL, 2021) antiga Lei de Abuso de Autoridade através de duas alíneas, a nova legislação criminaliza especificamente o agente que atua na obtenção de prova em procedimento de investigação ou fiscalização por meio ilícito.
O tema aplica-se, por exemplo, ao policial que obtém prova através do acesso ilegal ao telefone celular do detido ou abordado, olhando seus aplicativos de mensagem, arquivo de fotos e vídeos ou se passando pelo abordado durante ligações telefônicas (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021). Em relação ao tema, verifica-se jurisprudência nos Tribunais Superiores quanto à impossibilidade de realização dos atos descritos.
O procedimento correto é apreender o celular para que a autoridade policial possa emanar uma solicitação judicial para a quebra do sigilo de dados do aparelho telefônico (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021). Destaca-se ainda que, não obstante a condução do procedimento de obtenção de prova esteja comumente a cargo do delegado de polícia e/ou promotor de justiça, ou seja, daqueles que estão à frente da persecução penal, não se descarta a possibilidade de eles utilizem pessoas interpostas para concretizar seu desiderato, por exemplo, os peritos criminais.
É de fundamental importância mencionar que a vedação da utilização de provas ilícitas comporta exceções. É amplamente reconhecida a possibilidade de utilização da prova favorável ao investigado na persecução penal, mesmo que colhida com violação a direitos seus ou de terceiros, por aplicação do princípio da proporcionalidade conhecida como prova ilícita pro reo.
Desse modo, se a vedação probatória consiste em limitação ao direito de punir do Estado, para que não haja imposição de sanções a qualquer custo, esse objetivo também será atingido quando um inocente deixar de ser punido, ainda que com base em prova ilícita. Isso porque o direito de defesa e o princípio da presunção 19 de inocência merecem preponderância face ao direito de punir.
Nesse sentido, também pratica o crime quem faz uso de prova, ou seja, efetivamente a utiliza na persecução criminal. Deve o agente, nessa hipótese, ter prévio conhecimento de sua ilicitude. Não configura o delito usar a prova acreditando ser lícita e posteriormente descobrindo que viola o ordenamento jurídico.
Para exemplificar o caso em comento, Renato Brasileiro (2020) utiliza-se do seguinte exemplo: um policial militar realiza a captura do suspeito; mente ao delegado sobre a origem das drogas apreendidas e como se deu a busca e apreensão na casa do suspeito; a autoridade policial decide pela prisão em flagrante com base nessas provas e toma conhecimento da ilicitude da prova apenas quando o processo já está em curso.
4.2.PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS E SANÇÕES ADMINISTRATIVAS, CIVIS E PENAIS
Analisando os reais efeitos da Lei de Abuso de Autoridade (BRASIL, 2021), conclui-se que esses vão muito além da mera indenização, ou ainda da inabilitação ou perda do cargo, pois abrangem não somente a área penal, mas também a civil e administrativa, incluindo-se igualmente as Penas Restritivas de Direito (PRDs).
No que tange às PRDs substitutivas das privativas de liberdade, está previsto no art. 5º da Lei nº 13.869/2019: Art. 5º As penas restritivas de direitos substitutivas das privativas de liberdade previstas nesta Lei são: I - prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas; II - suspensão do exercício do cargo, da função ou do mandato, pelo prazo de 1 (um) a 6 (seis) meses, com a perda dos vencimentos e das vantagens; III - (VETADO). Parágrafo único.
As penas restritivas de direitos podem ser aplicadas autônoma ou cumulativamente. (BRASIL, 2019b). Nesses termos, o legislador ainda estabelece, no § único do art. 5º, que as penas restritivas de direito podem ser aplicadas autônoma ou cumulativamente. Assim, cabe ao juiz sentenciante avaliar a necessidade de aplicar fundamentadamente uma ou mais penas. Em caso de descumprimento de forma injustificada, a pena aplicada é convertida em privativa de liberdade.
Nessa esteira, o comportamento abusivo do agente público pode ensejar, a um só tempo, ilícitos de natureza penal, civil e administrativa. O artigo 6º da Lei nº 20 13.869/2019 assegura que: Art. 6º As penas previstas nesta Lei serão aplicadas independentemente das sanções de natureza civil ou administrativa cabíveis. Parágrafo único. As notícias de crimes previstos nesta Lei que descreverem falta funcional serão informadas à autoridade competente com vistas à apuração. (BRASIL, 2019b).
Com base no artigo acima, as responsabilidades civil e administrativa são independentes da criminal, não se podendo mais questionar sobre a existência ou a autoria do fato quando essas questões tenham sido decididas no juízo criminal. Nestes termos, o art. 8° da Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b) assegura a incidência das causas excludentes de ilicitude, uma vez que: Art. 8º Faz coisa julgada em âmbito cível, assim como no administrativodisciplinar, a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. (BRASIL, 2019b).
Insta salientar que a omissão do legislador quanto às causas supralegais de exclusão da ilicitude pode ser suprida por analogia in bonam partem. Segundo o Professor e Juiz de Direito Samer Agi (2021), esse dispositivo traz uma importante vinculação com o mérito da decisão do juízo criminal. Em conformidade com a lei, a decisão judicial que torne incontrovertida a existência do fato e os indicativos de autoria passa a ter força vinculante.
Não só a existência passa a vincular, mas também a inexistência deles. Ademais, é importante ressaltar que, segundo o Professor Rogério Sanches (2021), o art. 188 do Código Civil inspirou o art. 8º da Lei nº 13.869/2019, em que se lê: Art. 188. Não constituem atos ilícitos: I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo. (BRASIL, 2021).
Dessa forma, o que afasta a ilicitude dos atos praticados é a justificativa real, não se aplicando para o caso de descriminante putativa. A legítima defesa imaginada, por exemplo, não exclui a ilicitude, mas somente, a culpabilidade, caso essa exista, de maneira que não exime o réu de indenizar o dano na esfera cível (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021). Há divergência na doutrina em relação ao legislador ter mencionado que tais 21 questões precisam estar decididas no juízo criminal, o que pode suscitar dúvida sobre em qual instância tal fato ocorreria, visto que alguns defendem que o melhor a ser usado é a terminologia no âmbito criminal.
A doutrina majoritária adota a posição de que só com o trânsito em julgado da decisão é que tal vinculação se faz possível, por mais que o art. 8º da Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2021b) faça menção à sentença penal, o que remete ao decisório criminal de primeira instância. Não pode qualquer sentença penal promover tal vinculação, até porque ela está sujeita a um grande leque de recursos.
4.3. EFEITOS DA CONDENAÇÃO E COMPETÊNCIA
Destaca-se que a Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2021b), em seu artigo 4º, especifica os efeitos extras penais pelo crime de abuso de autoridade, ou seja, a condenação pelo crime se dá na própria norma específica, em que: Art. 4º São efeitos da condenação: I - tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime, devendo o juiz, a requerimento do ofendido, fixar na sentença o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos por ele sofridos; II - a inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública, pelo período de 1 (um) a 5 (cinco) anos; III - a perda do cargo, do mandato ou da função pública. Parágrafo único. Os efeitos previstos nos incisos II e III do caput deste artigo são condicionados à ocorrência de reincidência em crime de abuso de autoridade e não são automáticos, devendo ser declarados motivadamente na sentença. (BRASIL, 2021a).
É mister ressaltar que o rol era maior quando previsto pela Lei nº 4.898/1965 (BRASIL, 2021a), incluindo efeitos automáticos. Porém, há de se destacar que, na nova legislação, além dos efeitos previstos nos três incisos do art. 4°, o seu parágrafo único define que somente se aplicam os incisos II e III que promovem a inabilitação para cargo ou função, ou ainda a perda dele quando há reincidência específica em crime de abuso de autoridade.
A nova lei exclui, ainda, o efeito automático desses na sentença, devendo o magistrado, portanto, aplicá-los após motivação. Ademais, a obrigação de indenizar é efeito automático e incide mesmo em relação ao condenado primário. Todavia, diferentemente da regra geral do art. 387, IV do Código Penal (BRASIL, 2021a), o valor mínimo da indenização não é fixado obrigatoriamente pelo juiz, mas apenas se requerido pela vítima. Trata-se de uma 22 previsão específica da Lei de Abuso de Autoridade, que deve incidir por força do princípio da especialidade.
Assim sendo, a perda do cargo público e a inabilitação para seu exercício de 1 a 5 anos são condicionadas à reincidência em crime de abuso de autoridade, tratando-se de uma reincidência específica. Outro ponto importante é que os efeitos elencados nos incisos II e III só se aplicam no caso de reincidência. Isto posto, notase que a referida lei requer que os termos do art. 63 e 64 do CP (BRASIL, 2021a) sejam atendidos, vez que a mera prática de duas infrações penais não é suficiente para gerar tais efeitos.
Dentre os exemplos de Henrique Hoffmann (2021), esse seria o caso em que um policial que fosse beneficiado por transação penal, ou mesmo por sursis processual, não poderia ser considerado reincidente para fins de aplicação de tais institutos. Outrossim, mesmo que condenado por um crime de abuso de autoridade, em transcorrendo o período de depuração, o autor do fato voltaria a ser considerado primário nos termos da lei e, portanto, não seria considerado reincidente.
No que tange à competência, é a Justiça Estadual que, em regra, deve processar e julgar o delito de abuso de autoridade. No caso de abuso praticado por militar, aplica-se o rito indicado pela Lei Castrense, devendo ser frisada a vedação legal de incidência do rito e dos institutos de política criminal previstos na Lei nº 9.099/1995 (BRASIL, 2021e). Desse modo, a competência será da Justiça Federal apenas se o crime for praticado em detrimento de bens, serviços ou interesses da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, conforme art. 109, IV da CF (BRASIL, 2021b), o que ocorre no caso de delito cometido por funcionário público federal no exercício da função.
Sendo assim, é relevante frisar que tão só o fato de o delito ser praticado por agente público federal não atrai a competência da Justiça Federal, sendo imprescindível que o crime tenha relação com as funções desempenhadas, ou seja, também deve haver o nexo funcional. Trata-se ainda de competência da Justiça Federal o crime que for cometido a bordo de navio ou aeronave, ou contra interesse indígena. Além disso, havendo conexão ou continência entre crime estadual e federal, prevalece a Justiça Federal.