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Companhias aéreas e reestruturação judicial

30/12/2021 às 13:45
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Comentamos os processos de falência e recuperação judicial das pessoas jurídicas que exploram serviços aéreos ou de infraestrutura aeronáutica no Brasil.

O Decreto-Lei 669/1969 excluía do benefício da concordata as pessoas jurídicas que explorassem serviços aéreos ou de infraestrutura aeronáutica, expondo os porquês[1]. Por sua vez, a Lei 7.565/1986[2], em seu art. 187, uma vez mais dispõe que não podem requerer concordata as jurídicas que tenham por objeto social a exploração de serviços aéreos de qualquer natureza ou de infraestrutura aeronáutica. Portanto, no Brasil, as companhias aéreas não se poderiam valer do vetusto e ab-rogado Decreto-Lei 7.661/45, até o ano de 2005.

Em 2005 ingressou no ordenamento jurídico pátrio a Lei 11.101/05, sendo que seu art. 199 estabelece que o art. 198[3] não é aplicável às entidades referidas pelo art. 187 da Lei 7.565/1986. Trocando em miúdos, as companhias de aviação se podem valer dos termos do texto legal de 2005 e requerer reestruturação judicial ou extrajudicial, ficando sujeitas à abertura judicial de falência, por consequência[4]. Assim agiu grande companhia nacional, que em seguida à entrada em vigor do referido texto normativo ingressou com pedido de recuperação judicial. O resultado é conhecido e não cabe discorrer a respeito.

Bem interessantes, plausíveis e razoáveis as justificativas apresentadas no Decreto-lei 669/1969 para proibir o favor legal da concordata às áreas, sendo que questões ligadas à segurança [inclusive de voo], regularidade, condições adequadas quanto a manutenção, supervisão e controle, sólida estrutura, dentre outras, foram consideradas quando da redação do texto legal em análise. 

 Apenas para lançar luz ao debate acadêmico, relembro aqui um caso internacional relativo à avaliação. Trata-se do acidente que envolveu aeronave da Spanair [Linha Aérea da Espanha], que caiu segundos após a decolagem [perderam a vida 153 dos 172 ocupantes][5]. Diz a matéria publicada no jornal O Estado de São Paulo que, à época do acidente, referida companhia área passava por problemas financeiros e teve de suspender as vendas de passagens, em virtude do preço do combustível.

Ainda, a jurídica chegou a anunciar um plano de viabilidade, que previa fechamento de rotas e demissão em massa de funcionários. No jornal O Estado do Paraná consta que referida companhia acumulava prejuízos e que pilotos publicaram, pouco antes do acidente, comunicado criticando graves carências de funcionamento, ameaçando greve[6].

Colocando na balança, de um lado, os princípios constitucionais da livre inciativa e da livre concorrência e, de outro, o princípio da dignidade humana e o critério de razoabilidade, foi correta a alteração legislativa nacional que permitiu às companhias aéreas se valerem da reestruturação judicial a fim de sair da crise e buscar o soerguimento e mantença no mercado competitivo? Em tempos de academia, eu sempre passava aos alunos uma questão relacionada ao referido art. 199 da Lei 11.101/05 e as respostas eram as mais diversas possíveis, os debates eram profundos e nunca se chegou a uma conclusão acerca de palpitante e complexo tema.

Afinal, existem outras atividades econômicas essenciais à sociedade que podem requerer os benefícios da lei e, mesmo assim, em tese, são passíveis de causar grandes prejuízos a essa mesma sociedade, considerando acidentes, por exemplo. Por outro lado, especificamente em relação às companhias áreas, importantes agentes econômicos que são, as razões apresentadas pelo legislador de 1969 eram e são bastante plausíveis e razoáveis, como dito, se se considerar principalmente a segurança de quem está dentro de uma aeronave.

O cidadão, tendo ciência de que determinada companhia aérea está sob recuperação judicial, continuaria a se utilizar dos serviços normalmente ou o fator processo judicial guarda relevância na hora da decisão acerca da escolha? Estaria ele preocupado, por exemplo, com a manutenção adequada e regular das aeronaves? E quanto ao estado de conservação destas, é importante tomar ciência de como se encontram? A crise empresarial aérea, para este mesmo cidadão, pesaria na balança, no momento de adquirir bilhete de um agente econômico sob recuperação judicial? Procuraria melhor custo-benefício, não importando quem o transportasse, sendo de somenos importância o processo de reestruturação?

Talvez essas questões não tenham sentido algum, para muitos, talvez. O consumidor incauto, não obstante os tempos globalizados e de informação diária, quiçá nem tome conhecimento da crise empresarial[7]. 

E assim prossegue o Brasil.


[1] Eis o texto legal, tal como redigido: CONSIDERANDO que a navegação aérea só pode ter eficiência, isto é, segurança, regularidade e precisão, se a emprêsa que a explora estiver em condições econômico-financeiras que permitam, em têrmos de planejamento, execução, manutenção, supervisão e contrôle, a perfeita sustentação de serviços através de uma sólida estrutura, capaz de plena atividade;

CONSIDERANDO que, se a emprêsa de navegação aérea, entra em falência, concordada ou liquidação, sua estrutura técnico-econômico-financeira não tem mais condições adequadas e necessárias a merecer a confiança de proporcionar serviços regulares, eficientes e, sobretudo, dotados da imprescindível segurança, que compete ao Govêrno fiscalizar e garantir;

CONSIDERANDO que a concordada, sendo um favor legal, que se dá à emprêsa estritamente comercial para continuar o seu negócio, não é de molde a ser admitida para a emprêsa de transporte aéreo, quando se tem em vista, acima do interêsse comercial da emprêsa, a regularidade e segurança do vôo,

DECRETA:

Art. 1º Não podem impetrar concordata as emprêsas que, pelos seus atos constitutivos, tenham por objeto, exclusivamente ou não, a exploração de serviços aéreos de qualquer natureza ou de infra-estrutura aeronáutica.

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Art. 2º O presente Decreto-lei entra em vigor na data de sua publicação, aplicando-se aos casos em curso.

Art. 3º Revogam-se as disposições em contrário.

[2] Código Brasileiro de Aeronáutica.

[3] Art. 198. Os devedores proibidos de requerer concordata nos termos da legislação específica em vigor na data da publicação desta Lei ficam proibidos de requerer recuperação judicial ou extrajudicial nos termos desta Lei.

[4] Em 2005, por mera e sensível política legislativa, considerando a necessidade de determinados setores da economia nacional, mergulhados em crise, resolveu-se, via lei, abrir a possibilidade de reestruturação às companhias aéreas. Nessa esteira, concedendo-se o direito de se utilizar da lei, os órgãos governamentais competentes passaram a ter mais responsabilidades quanto a efetiva fiscalização, com redobrada cautela e zelo, em relação àquelas entidades que, em recuperação judicial, por exemplo, poderiam oferecer serviço de navegação aérea à população.  Afinal, a importância dos serviços oferecidos tem um alto grau, exigindo rigorosa fiscalização estatal.

[5] Jornal O Estado de São Paulo de 21/08/2008, A14. Não farei referência a graves acidentes aéreos nacionais, para não gastar tinta e pena, porquanto públicos.

[6] O Estado do Paraná, 22/08/2008, p. 09.

[7] Bem disserta Manoel Justino Bezerra Filho quanto ao tema:  o medo que o imaginário popular cultiva em relação a viagem de avião é algo com peso econômico, pois, se acaso houver qualquer risco quanto à segurança, o eventual cliente vai buscar outra empresa. Por isso mesmo é que se proibia às companhias  de aviação o benefício da concordata, que, ao semear desconfiança entre os possíveis usuários, certamente traria mais prejuízos do que vantagens. Lei de recuperação de empresas e falências comentada. 4ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 144. Grifos no original.

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Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLARO, Carlos Roberto. Companhias aéreas e reestruturação judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6756, 30 dez. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95642. Acesso em: 26 abr. 2024.

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