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Ciclismo e mobilidade urbana: análise do PL 1887/2021

09/01/2022 às 23:42
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O ciclismo tem ultrapassado as fronteiras das modalidades esportivas, integrando, cada vez mais, o cotidiano dos grandes centros urbanos. O PL 1887/2021 se insere nesse contexto, na tentativa de normatizar as novas tendências da mobilidade urbana.

Na atualidade, tem-se observado um fenômeno em que, cada vez mais, o uso de bicicletas tem ganhado destaque como meio de transporte nos ambientes urbanos. Seja por conta de uma maior preocupação com sustentabilidade, como forma de tentar escapar do caos trazido pelo trânsito nos momentos de pico nas grandes cidades ou uma tentativa de adotar um estilo de vida mais saudável, o uso das bikes tem ganhado mais e mais adesão no espaço urbano.

Assim, os diversos benefícios trazidos por esse meio de locomoção têm sido um grande atrativo para a ampliação de seu uso nos núcleos urbanos. Nesse sentido, Vale (2020, p. 30) traz que:

A bicicleta, um dos meios de transporte ativo, possui grandes vantagens por ser de baixo custo de aquisição e manutenção, ser de fácil utilização, maior disponibilidade de estacionamento, além de proporcionar benefícios à saúde, especialmente, ao meio ambiente. São muitas as prerrogativas associadas à bicicleta, portanto, o modal tem sido considerado um meio de transporte sustentável, barato e acessível para toda a população, contribuindo para deslocamentos mais eficazes no meio urbano.

Com isso, nota-se que o uso da bicicleta tem ultrapassado as fronteiras das modalidades esportivas, gradativamente adentrando o cotidiano das cidades e integrando a vida de seus moradores. Particularmente a partir de 2015, esse fenômeno tem ganhado mais atenção, isto é, dentro da lógica da construção de cidades mais inteligentes e sustentáveis. Nesse sentido, Bastos (2020) trata dessa temática ao abordar a questão da micromobilidade, expressão cunhada nos Estados Unidos e utilizada para tratar de deslocamentos empregando veículos leves (tais como bicicletas e patinetes). Assim, afirma que:

Desde 2015, sistemas de micromobilidade tornaram-se um dos antídotos promissores e capazes de favorecer a permeabilidade urbana em centralidades congestionadas e densas da capital paulista, buscando influenciar comportamentos e preferências de deslocamentos de uma parcela da população em microterritórios. Respaldado por aplicativos de smartphone e sensores de GPS que localizam em tempo real a oferta e a localização desses veículos leves, a operacionalização desses sistemas por corporações e startups tem oferecido oportunidades mais sustentáveis de deslocamentos na cidade e, ao mesmo tempo, incitado novas interfaces tecnológicas entre o cidadão e seu comportamento de viagem.

Nesse sentido, diversos projetos de lei e políticas públicas têm procurado se adaptar a essa nova realidade. A título de exemplo, vale mencionar o PL 5367/2020, que foi apensado ao PL 2556/2015 e, atualmente, encontra-se sujeito à apreciação pelo plenário. Essa proposta visa a instituição da obrigatoriedade de uma previsão de percentual de ciclovias em todos os projetos que modifiquem a malha viária urbana. Assim, por de trás dessa imposição, estaria inserida a lógica de que o uso da bicicleta deveria ser vislumbrado como uma modalidade de transporte regular, havendo a necessidade de elaboração de estruturas que favoreçam o uso das bikes nas vias urbanas.

Outro exemplo é o PL 1919/2019, que busca alterar a Lei nº 10.257/2001 legislação que trata das diretrizes gerais da política urbana e regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal. Dessa forma, esse projeto de lei procura determinar a implantação de ciclovias e ciclofaixas no plano de transporte integrado das cidades com mais de quinhentos mil habitantes, isto é, por meio da inclusão de § 4º no artigo 41 dessa norma. Em abril de 2019, essa proposta foi apensada ao PL 6108/2016 e, atualmente, também aguarda apreciação do plenário.

No âmbito das políticas públicas, vale mencionar as medidas tomadas pela prefeitura de São Paulo durante o período de 2013 a 2016, instaurando uma série de ciclovias por toda a cidade. Além disso, também foram incluídas uma série de ciclofaixas em diversos locais, criando espaços reservados para a circulação de bicicletas nas ruas e ao lado dos automóveis o que resultou intensificação da tensão do convívio entre bikes e carros. Desse modo, é coerente mencionar os entendimentos de Tarikian (2017, p. 16) sobre o assunto:

As vias vermelhas, que destoam do monocromático (cinza) característico da cidade, criaram um espaço exclusivo para a circulação de bicicleta, na tentativa de integrar esse modal da realidade urbana de São Paulo. Abriu-se um espaço reservado, ao lado dos automóveis e outros veículos, para que os ciclistas pudessem passar com maior integração e segurança. Mas, ainda que aparentemente isolados por uma faixa, estar cerceado de automóveis denota uma série de relações que pautam conflituosamente a vida urbana na cidade.

Tendo isso em vista, o aumento do uso das bicicletas é algo que pode ser comprovado por meio do uso de estatísticas. De acordo com pesquisa Origem e Destino divulgada pelo Metrô de São Paulo, houve um aumento de 24% no uso das bikes como meio de locomoção entre 2007 e 2017 na cidade de São Paulo (METRÔ SÃO PAULO, 2017).

Contudo, embora tenha havido um aumento significativo no uso das bicicletas, o automóvel permanece como um dos principais meios de transporte urbano. De acordo com dados extraídos da Secretaria de Mobilidade e Transportes e apresentados no portal Mobilize Brasil, em maio de 2021, havia 1,6 milhões de bicicletas em circulação da cidade de São Paulo. Por outro lado, a frota total de veículos totalizava cerca de 9,1 milhões aproximadamente 5,5 vezes o número de bicicletas (MOBILIZE BRASIL, 2021).

Caminhando mais um pouco, vale ressaltar que, com a crescente tendência de ampliação do uso das bicicletas, maximiza-se o contato entre ciclistas e veículos. Ocorre que não é sempre que o seu convívio se dá de modo harmônico. A proximidade entre bicicletas e automóveis nas ciclofaixas, assim como a desatenção de ciclistas e motoristas pode dar causa a inúmeros acidentes. E é dentro dessa perspectiva que se insere a análise do PL 1887/2021.

Esse projeto de lei foi proposto pelo Deputado Márcio Marinho (REPUBLIC/BA) e busca a alteração do Código de Trânsito (Lei nº 9.503/1997). Atualmente, encontra-se pronta para inclusão na pauta de votações na Comissão de Viação e Transportes. Assim, essa proposta aspira a inclusão de um inciso XIV no artigo 29, a fim de determinar a prioridade na circulação de bicicletas e estipular a existência de presunção legal de culpa do motorista em acidente com ciclistas. Desse modo, propõe-se a inclusão do dispositivo com o seguinte enunciado:

XIV as bicicletas deverão ter preferência de circulação sobre os veículos automotores e considerar-se-á presumida a culpa do condutor do veículo em caso de acidente com ciclista, salvo prova em contrário.

Dessa forma, a principal justificativa para a apresentação desse projeto encontra o seu fundamento em uma tentativa de garantir a maior atenção dos motoristas no trânsito e estimular o respeito aos ciclistas. Além disso, também procura adaptar a legislação brasileira às novas tendências do Direito Comparado, buscando maior responsabilidade dos condutores e privilegiando a circulação de bicicletas em relação a outros veículos automotores (MARINHO, 2021).

De certo modo, é possível reconhecer que essa medida vai ao encontro de um princípio que já está bastante presente no ordenamento brasileiro: a proteção do hipossuficiente. Essa ideia é frequentemente aplicada em relações consumeristas e trabalhistas. De modo semelhante, na relação entre bicicletas e carros, dificilmente haverá uma efetiva paridade de armas. Isso porque o veículo automotor possui maior tamanho e potência, além de melhor proteger o condutor. Por outro lado, na bicicleta, o ciclista encontra-se mais vulnerável a influências do meio, estando mais propenso a sofrer lesões em um eventual acidente com outros veículos.

Ademais, a aprovação do projeto de lei viria no sentido da positivação de uma ideia que parcela da jurisprudência já tem aplicado na prática. Nesse sentido, vale mencionar precedente apreciado pelo TJ/RS:

ACIDENTE DE TRÂNSITO. MANOBRA DE CONVERSÃO EM RODOVIA. COLISÃO EM BICICLETA. PRESUNÇÃO DE CULPA DO CONDUTOR DO VEÍCULO MOTORIZADO. DEVER DE CAUTELA E CUIDADO ACENTUADO. DEVER DE INDENIZAR LIMITADO AOS DANOS MORAIS. PENSIONAMENTO AFASTADO. RECURSO PROVIDO EM PARTE.

(TJRS. Recurso Cível, Nº 71004382586, Terceira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Cleber Augusto Tonial, Julgado em: 26-06-2014)

Contudo, apesar desse projeto de lei trazer alguns aspectos positivos, é preciso atentar para certas circunstâncias que devem ser levadas em consideração. Não é sempre que há culpa do motorista do automóvel, sendo imprescindível que a presunção trazida pela proposta seja encarada de forma relativa. Interpretá-la em sentido absoluto poderia representar uma afronta para a justiça. Daí a importância da ressalva colocada na última oração da proposta de enunciação do inciso XIV: salvo prova em contrário.

Assim, isso pode ser justificado pelo fato de que a jurisprudência também conta com uma série de precedentes onde os acidentes não foram causados pelos condutores dos veículos motorizados. Também é preciso se atentar para casos em que há culpa exclusiva da vítima ou culpa concorrente entre o ciclista e o motorista do automóvel. Vide os julgados a seguir:

DIREITO CIVIL. AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO POR DANO MATERIAL E MORAL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. VÍTIMA FATAL. CONDUÇÃO DE BICICLETA SEM FREIOS E INVASÃO DA CONTRAMÃO DIRECIONAL. CULPA EXCLUSIVA DA VITIMA. EXCLUSÃO DA CAUSALIDADE. VEÍCULO DE TRAÇÃO MECÂNICA. CONDUTOR NÃO HABILITADO. FATO QUE POR SI SÓ NÃO ENCERRA CULPA OU PRESUNÇÃO DESTA. PRECEDENTES.

1. A responsabilidade civil subjetiva, incidente como regra nos casos de acidente de trânsito, é disciplinada matricialmente nos artigos 186 e 927 do Código Civil. Presentes a antijuricidade da conduta do agente, o dano à pessoa ou coisa da vítima e a relação de causalidade entre uma e outra, resta configurada a responsabilidade civil, a qual impõe ao causador dos prejuízos o dever de reparação.

2 Ao trafegar pela contramão direcional o condutor da bicicleta, sem freios, contribui tão sobremaneira para a ocorrência do evento que determina, por si só, o dano sofrido, excluindo assim a responsabilidade civil do condutor do veículo de tração mecânica que trafegava no sentido correto do fluxo, em exegese que se faz do artigo 945 do Código Civil.

3. O só fato de não ser o condutor do veículo de tração mecânica habilitado para guiá-lo de per si não implica culpa ou presunção desta, tratando-se de ilícito administrativo sem qualquer repercussão no âmbito da responsabilidade civil, sendo pacífica a jurisprudência a respeito.  

 (TJMG -  Apelação Cível  1.0084.11.000871-5/001, Relator(a): Des.(a) Otávio Portes , 16ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 26/06/2014, publicação da súmula em 07/07/2014)

APELAÇÕES CÍVEIS AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS, MATERIAIS E ESTÉTICOS ACIDENTE DE TRÂNSITO ACIDENTE ENVOLVENDO VEÍCULO E BICICLETA FALTA DE ACOSTAMENTO NA RODOVIA BICICLETA TRAFEGANDO SEM SINALIZAÇÃO CULPA CONCORRENTE RECURSO DE JOB DO AMARAL COSTA IMPROVIDO E DE NELSON DONADEL PROVIDO PARCIALMENTE. Há elementos probatórios para que se conclua que o condutor da bicicleta, por transitar em condições incompatíveis para o local e circunstâncias, contribuiu para o desfecho lesivo. Destarte, embora a manobra efetuada pelo motorista do veículo sem as cautelas que se impunham, tal imprudência não foi a causa única do sinistro, observando-se a conjugação de causas ao seu desfecho e configurando a culpa concorrente, em igual proporção, minorando o valor das condenações na proporção de 50% para cada uma das partes, bem como a sucumbência.

(TJMS. Apelação Cível n. 0808069-55.2012.8.12.0002,  Dourados,  1ª Câmara Cível, Relator (a):  Des. Divoncir Schreiner Maran, j: 27/02/2019, p:  28/02/2019)

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Tendo tudo isso em vista, conclui-se que o aumento do uso das bicicletas como meio de locomoção é algo que tem se efetivado na realidade prática. O ciclismo tem ultrapassado as barreiras das modalidades esportivas, passando a ser algo rotineiro no cotidiano dos grandes centros urbanos. Diante disso, surge a necessidade de regulamentação dessa situação e da relação entre os ciclistas e motoristas no espaço urbano. O PL 1887/2021 se insere dentro dessa dinâmica de discussão acerca da normatização dessas interações sociais, possuindo aspectos negativos e positivos que devem ser sopesados na aprovação dessa proposta. Em efeito, ela traz grande potencial para garantir maior responsabilidade dos motoristas no trânsito, isto é, desde que a presunção de culpa não seja empregada de modo absoluto no dia-a-dia dos tribunais. Se aplicado com seriedade pelos magistrados, os prós desse projeto mostram-se superiores aos contras.


REFERÊNCIAS

BASTOS, P. A dimensão humana da mobilidade e o campo das práticas na cidade de São Paulo. In: MARINO, F. Paradigmas da Mobilidade: Análises e Experiências da Mobilidade Ativa no Espaço Urbano Brasileiro. Brasília: VI Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, 2020. Disponivel em: <http://enanparq2020.s3.amazonaws.com/SL/22050.pdf>. Acesso em: 11 setembro 2021.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 1919/2019. Câmara dos Deputados. Disponivel em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2196257>. Acesso em: 11 setembro 2021.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 5367/2020. Câmara dos Deputados, Brasília. Disponivel em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2265998>. Acesso em: 10 Setembro 2021.

MARINHO, M. PL 1887/2021. Câmara dos Deputados, 2021. Disponivel em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01ihgxjcbv5vty1i87y8tag8phz7987274.node0?codteor=2014305&filename=PL+1887/2021>. Acesso em: 13 setembro 2021.

METRÔ SÃO PAULO. Pesquisa Origem Destino 2017. Metrô São Paulo, São Paulo, 2017. Disponivel em: <https://transparencia.metrosp.com.br/sites/default/files/S%C3%8DNTESE_OD2017_ago19.pdf>. Acesso em: 11 setembro 2021.

MOBILIZE BRASIL. São Paulo: Mobilidade em Dados 2021. Mobiliza Brasil, 2021. Disponivel em: <https://www.mobilize.org.br/estatisticas/66/sao-paulo-mobilidade-em-dados-2021.html>. Acesso em: 11 setembro 2021.

TARIKIAN, F. S. Mobilidade Urbana: uma análise sociológica das Ciclovias e Ciclofaixas na cidade de São Paulo. Dissertação (Dissertação em Ciências Sociais) - PUC/SP. São Paulo. 2017.

VALE, E. A. D. D. Potencialidades e Desafios do Uso da Bicicleta no Contexto da Mobilidade Urbana em Campos dos Goytacazes/RJ. Dissertação ( Dissertação em Desenvolvimento Regional, Ambiente e Políticas) - UFF. Campos dos Goytacazes/RJ. 2020.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SHAFFERMAN, Karina Cesana. Ciclismo e mobilidade urbana: análise do PL 1887/2021. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6766, 9 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95788. Acesso em: 23 abr. 2024.

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