Capa da publicação Sentença da Boate Kiss e o poder de punir
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Análise da sentença da Boate Kiss.

Uma discussão acerca do poder de punir

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10/01/2022 às 14:16

Resumo:


  • Em 27 de janeiro de 2013, o incêndio na Boate Kiss em Santa Maria, Rio Grande do Sul, causou a morte de 242 pessoas e deixou mais de 636 feridos durante uma festa universitária.

  • O desastre acarretou debates sobre segurança e uso de efeitos pirotécnicos em locais fechados, além de discussões sobre a responsabilidade de fiscalização. Quatro réus foram condenados pelo evento, incluindo os donos da boate e membros da banda que se apresentava.

  • A cobertura midiática intensa e as consequências jurídicas do caso repercutiram nacional e internacionalmente, influenciando a opinião pública e o julgamento, que se tornou um marco na história jurídica brasileira.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

No dia 10 de dezembro de 2021, quatro réus foram condenados pelo incêndio da Boate Kiss em Santa Maria. O fatídico acidente ocorreu em 27 de janeiro de 2013, quando a Boate sediava uma festa universitária denominada “Agromerados”. No palco, se apresentava a banda Gurizada Fandangueira, quando um dos integrantes disparou um artefato pirotécnico cujas centelhas atingiram parte do teto do prédio, que era revestido de espuma, que pegou fogo. O incêndio se alastrou rapidamente, causando a morte de 242 pessoas e deixando mais de 636 feridos.

Esta foi a segunda maior tragédia no Brasil em número de vítimas em um incêndio, sendo superado apenas pelo o episódio do Grande Circo Norte-Americano, que ocorreu em 1961, em Niterói no estado do Rio de Janeiro, que vitimou o inacreditável número de 503 pessoas, e teve características semelhantes as do incêndio ocorrido na Argentina, em 2004, na casa noturna República Cromañón. Rotula-se também como o quinto maior desastre da história do Brasil, o maior do Rio Grande do Sul, o de maior número de mortos nos últimos 50 anos e o terceiro maior desastre em casas noturnas no mundo.

Logo se iniciaram as investigações para a apuração das responsabilidades dos envolvidos, dentre eles os donos da casa noturna, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann que eram sócios, Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Bonilha Leão, auxiliar do grupo musical e dos representantes do poder público. Este fato desencadeou um debate nacional sobre a segurança e o uso de efeitos pirotécnicos em ambientes fechados com grande quantidade de pessoas. As responsabilidades da fiscalização dos locais também foram debatidas em todos os tipos de mídia. As imprensas nacionais e mundiais se manifestaram de diversos modos, que variaram de mensagens de solidariedade às famílias e amigos, a críticas sobre as condições das boates no país e a omissão das autoridades.

O inquérito policial apontou inúmeros responsáveis pelo fato, mas apenas alguns foram denunciados pelo Ministério Público (MP) à Justiça , dentre eles os sócios da Boate Kiss, o vocalista da banda Gurizada Fandangueira e o auxiliar da banda. Foi instaurado o processo, ou seja, materializou-se o jus puniendi (direito de punir) e se iniciou a oitiva dos depoimentos como preparação para o julgamento, entretanto parentes dos mortos e sobreviventes temiam que a impunidade fosse à tônica do evento criminoso. De fato, os servidores civis e militares, bem como as autoridades públicas, corriam pouco risco de sofrerem punições, fato que realmente se enfatizou.

Por inquérito policial, se compreende o conjunto de diligências (atos investigatórios) realizado pela polícia judiciária (civil e federal); com o objetivo de investigar as infrações penais e colher elementos necessários; para que se possa ser proposta a ação penal que nada mais é do que o direito de provocar o Estado na sua função jurisdicional para a aplicação do direito penal objetivo em um caso concreto. Também é o direito do Estado, único titular do “jus puniendi”, de atender a sua pretensão punitiva. A ação penal é um direito autônomo, abstrato, subjetivo e público.

O júri da Boate Kiss teve início em 01 de dezembro de 2021. Passaram pelo plenário do 2º andar do Foro Central 28 depoentes, dos quais, 12 vítimas, 13 testemunhas, pessoa capaz, estranha ao feito, chamada a juízo para depor o que sabe sobre o fato litigioso. A testemunha reproduz acontecimentos passados retidos em sua memória, desde o momento em que presenciou o fato litigioso ou dele tomou conhecimento. Três informantes, pessoa que fornece voluntariamente à polícia ou à justiça informações relativas a atividades suspeitas, criminosas ou proibidas pelas autoridades, tanto de pessoas como de organizações.

Inicialmente, seriam ouvidas 34 pessoas, mas cada parte (acusação e defesa) abriu mão de oitivas, audição de uma testemunha ou daqueles que se encontram envolvidos no processo que está sendo julgado. O artigo 400 do Código de Processo penal (CPP) prevê a regra da oitiva das testemunhas arroladas pela acusação antes das testemunhas arroladas pela defesa. Essa sequência somente pode ser alterada se houver concordância de ambas as partes, ou, de acordo com o próprio artigo, quando ocorrer oitiva de testemunha por carta precatória.[2]

Os interrogatórios dos réus começaram na noite do dia oito de dezembro. Sendo que o interrogatório do acusado constitui um ato processual de grande relevância e, por esse motivo, encontra-se rigidamente regulado em lei, com previsão no Título VII, Capítulo III do CPP. É ato personalíssimo do acusado de infração penal em queixa-crime, equivalente à denúncia oferecida pelo MP só que utilizada apenas por particular, nos casos em que o interesse da vítima prepondera sobre o interesse público, utilizada para os casos de ação penal privada e é apresentada em juízo pelo próprio ofendido ou representante legal, por meio de um advogado ou denúncia prevista no Art. 41 do CP sendo interposta para os crimes que devem ser processados por meio de ação penal pública, cuja o titular é o representante do MP, sendo este indagado sobre os fatos que lhe são imputados na peça acusatória (denúncia ou queixa crime), e conduzido pelo juiz competente, o qual se valorará das palavras do réu para formar seu convencimento de forma sólida e convincente.

A maioria das mortes foi relacionada às lesões causadas pelas queimaduras. Contudo, a principal causa mortis de indivíduos expostos a incêndios ocorre devido a males causados pela inalação de fumaça. Em certas situações, cerca de 80% dos óbitos são por inalação de vapores e produtos químicos, principalmente monóxido de carbônico e cianeto.

O grande vilão da história, apontado por laudos técnicos como a causa de 100% das mortes dos estudantes, junto com o monóxido de carbono, foi o tão mencionado cianeto, que é uma substância encontrada na natureza e também é um produto da atividade humana, que foi liberado na queima do isolamento acústico, isolamento este muito usual em toda a cidade, uma vez que, inúmeras vezes, casas vizinhas das boates da cidade, formalizaram reclamações nos órgãos competentes relatando o barulho emitido por estas.

A forma usada, na maioria dos locais que emitiam som, era isolar com uma espuma de colchão. Não só para minimizar os efeitos do som, mas também por pedidos dos DJs e bandas, porque aumentava a qualidade dos sons graves e agudos, a nitidez e ainda eliminava o eco. Kiko, como era conhecido Elissandro, mandou instalá-la com esse intuito, mas a espuma era ineficiente para o propósito pretendido, logo foi removida quando executaram o projeto acústico na boate. Contudo, foi novamente instalada, por exigência dos DJs e músicos, para impedir o eco de som. Os órgãos de fiscalização não notaram a instalação dessa espuma inadequada. Sendo que a fiscalização do município não era treinada para reconhecê-la e mesmo o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio Grande do Sul só através de alguma denúncia tomava conhecimento desse material. Quanto ao Corpo de Bombeiros, apenas vistoriavam as instalações inerentes a combate a incêndio, como por exemplo, iluminação e saídas de emergência e hidrantes entre outros. Lixeiros encontraram enormes quantidades destas espumas próximas às casas que a tinham instaladas. Segundo a imprensa, dois deles relataram ter coletado 50 sacos para vender às recicladoras.

Assim os réus Elissandro Callegaro Spohr, Luciano Augusto Bonilha Leão, Mauro Londero Hoffmann e Marcelo de Jesus dos Santos foram condenados por homicídio qualificado prescrito no Artigo 121[3] do Código Penal (CP) parágrafo 2º que denota ser qualificado o ato de matar alguém quando o responsável pelo crime tem a intenção de matar por um motivo específico, quer sejam envenenamento, encomenda de assassinatos com recompensa, emprego de explosivos ou fogo, tortura, asfixia, emboscadas, entre outros. BRASIL (2016, p.46)

A condenação veio de acordo com a denúncia, peça inicial da ação penal pública que é apresentada pelo MP, proferindo como crime homicídio com dolo eventual, aquele que ocorre quando o agente age ou deixa de agir, conhece do risco de produzir um resultado danoso a um bem jurídico penalmente tutelado através de sua conduta e se conforma caso este venha a acontecer, ou seja, o agente prevê que seus atos tenham um resultado ruim, mas segue em frente assumindo o risco de que algo ocorra, demonstrando não se importar com o resultado.

Entretanto, durante toda a sessão plenária ocorreu à discussão a cerca do dolo eventual e da culpa consciente, quando o crime ocorre quando a pessoa sabe que há um risco, mas acha que esse risco não vai se materializar porque ela é muito boa no que faz ou por qualquer outro motivo, de forma simplificada, o sujeito prevê um resultado ruim, mas não acredita que vá acontecer. A diferença é tênue como se pode observar.

O dolo eventual tem se tornado cada vez mais comum nos tribunais, mas é muito difícil de ser comprovado. E o ônus da prova é sempre de quem acusa.

Ônus da prova consiste no indivíduo estar incumbido do dever de comprovar o seu interesse e os fatos que o favorecem em um processo. A princípio, aquele que afirma tem dever de sustentar suas alegações.

A denúncia por dolo eventual foi baseada nas ações dos réus durante o incêndio. A promotoria entendeu que, mesmo que os sócios não tivessem acendido o sinalizador que causou o incêndio, eles instalaram o isolamento acústico inadequado, permitiram a superlotação da boate, não providenciaram extintores de incêndio em quantidade adequada.

Fato este que foi comprovado na fase investigatória devido a inúmeros erros e omissões que foram apurados tais como: Documento emitido pelos bombeiros que foi usado como Plano de Prevenção e Combate a Incêndio (PPCI), em 26 de junho de 2009. Este documento era emitido de forma quase que automática, uma vez que o sistema era eletrônico e simplesmente emitia um relatório do que deveria ser instalado, conforme informações dadas pelos próprios clientes. Não existia status de Alvará. Apesar das fragilidades desse documento, o primeiro alvará de incêndio foi concedido pelo Corpo de Bombeiros, em agosto de 2009, com vigência de um ano; Alvará este emitido após inspeção e verificação do local conforme a planta anexada no plano. A casa iniciou suas atividades em 31 de julho de 2009, somente com o alvará de incêndio, sem o alvará de localização da prefeitura, só emitido em 2010. De agosto de 2010 a agosto de 2011, a Kiss ficou sem o alvará dos bombeiros, que só foi renovado em nove de agosto de 2011. Sendo que o alvará estava novamente vencido na data do fato.

A empresa de engenheira responsável pelo PPCI disse ter elaborado o plano conforme uma planta-baixa, em 2009, mas não acompanhou a execução das obras. Em 1º de agosto de 2009, devido à falta do alvará de localização, a boate foi notificada para fechar as portas. Pelo menos quatro vezes, entre agosto e dezembro de 2009, em vez de ser fechada, a boate foi somente multada, fato este que retrata a falta de imperícia dos órgãos fiscalizadores.

Sem que o alvará fosse expedido e com a boate em funcionamento, as multas foram aplicadas sucessivamente. Em 14 de abril de 2010, depois de oito meses de funcionamento o alvará de localização foi finalmente expedido.

Em 09 de abril de 2012 a fiscalização da prefeitura fez uma vistoria e descobriu que o alvará de incêndio estava prestes a vencer, além disso, as investigações mostraram que a boate não tinha saídas de emergência adequadas e muitas vítimas foram impedidas de sair pelos seguranças, que obedeciam à ordem de um dos donos, que temia que as pessoas não pagassem as contas.

Diante de tais apontamentos é necessária a justificativa de que o Estado é um ente dotado de personalidade jurídica de direito público, possuindo prerrogativas frente ao particular. A personalidade jurídica é definida como a ideia de que uma pessoa, seja física (pessoa natural), seja jurídica (empresa, ente público, associação sem fins lucrativos) tenha capacidade de adquirir direitos e contrair deveres na sociedade (direito civil).

Tais poderes destinados aos Estados visam garantir o bem comum, onde o mais importante é a coletividade, em supressão, muitas vezes, dos direitos individuais. Dessa forma não se justifica a condenação de quatro pessoas físicas que perante o Conselho de sentença e a população leiga arcaram sozinhas com um dano pessoal, para garantir o bem da sociedade. Foi com este intuito, que a Constituição da República Federal (CR), em seu artigo 37, §6º disciplinou a responsabilidade civil do Estado pelos danos causados por seus agentes ao particular, garantindo assim que os cidadãos lesados por uma atividade estatal pudessem ser ressarcidos e indenizados pelos prejuízos sofridos BRASIL (1988, p.39)[4]. Dessa forma o não indiciamento do Poder Público, frente à catástrofe que assolou Santa Maria não foi aceitável.

Voltando a discussão a cerca do dolo indireto eventual, consagrado no art. 18, inciso I, do CP, este significa que o sujeito não quer (diretamente) produzir certo resultado, entretanto prevê a sua possível ocorrência e assente/consente na sua produção, manifestando indiferença quanto ao bem jurídico em questão[5].

Para BITTENCOURT (2012, p.354)[6] haverá dolo eventual quando o agente não quiser diretamente a realização do tipo, mas a aceitá como possível ou até provável, assumindo o risco da produção do resultado.

Dessa forma, em síntese, pode-se dizer que o dolo indireto eventual se perfaz quando presentes os elementos:

a) o sujeito quer praticar a conduta, mas não quer diretamente o resultado criminoso;

b) representa a possibilidade de ocorrência do resultado;

c) atua com desprezo (ou indiferença) frente à possibilidade de ocorrência do resultado. Todos esses requisitos são cumulativos.

FRAGOSO e HUNGRIA (1983, p.122)[7] compreendem que assumir o risco é alguma coisa mais que ter consciência de correr o risco: é consentir previamente no resultado, caso venha este, realmente a ocorrer

Em linguagem popular, pode-se concluir que há dolo eventual quando o sujeito diz para si mesmo: “que se dane”! “Eu não quero o resultado, mas se ocorrer que se dane”! Nas hipóteses de homicídios dolosos eventuais - o autor pensa consigo mesmo: “Eu não quero matar, mas é possível que morram; se morrerem, paciência”!

Dessa forma a doutrina prevê a aplicação dos institutos do dolo eventual e da culpa consciente, entretanto, é notório a diferenciação de ambos sendo que em caso a caso deve ser analisada a tenacidade, fato este que não vem ocorrendo na atualidade.

São vários os fatores contribuintes para que isto ocorra, como o fomento da violência, o clamor público, a pressão exercida pela mídia e a sensação de impunidade que se alastra na sociedade. A análise do crime é importante para definir essa questão. Deste modo, o presente estudo tem como objetivo contribuir diretamente na analise de qual forma vem sendo aplicada nos julgamentos, visto que, atualmente tais institutos estão sendo tratados de maneira trivial, não dando importância para a devida análise sobre a real intenção do agente e as circunstâncias do crime, por questão de mera conveniência, enquanto deveria estar sendo aplicado com base nos pilares da justiça.

Assim sendo busca-se contribuir para que tal instituto (dolo eventual) seja aplicado de forma mais cautelosa, apenas nas hipóteses em que for comprovado que o agente agiu assumindo o risco, de maneira a ter consentido com o resultado.

O caso se tornou polêmico e de comoção nacional, visto a intensa cobertura dos meios de comunicação, as análises infundadas e a quantidade de vítimas. Diante desse fato ocorreu o desaforamento do julgamento, ou seja, o julgamento foi submetido a foro (local) estranho ao delito.

O desaforamento trata-se de um procedimento exclusivo do Tribunal do Júri o qual só poderá ser decretado após a preclusão da pronúncia, fase em que ocorre a acusação oferecida para encaminhar o acusado a julgamento perante o júri, a preclusão consiste na perda do direito de se manifestar num processo, principalmente devido ao fato de não ter exercido a sua manifestação no momento correto e da forma prevista.

Em síntese os julgamentos ocorrem nas cidades onde os crimes aconteceram, mas, no caso da Boate Kiss, foi transferido para Porto Alegre, e ganhou o número 001/2.20.0047171-0, esse fato é o que se denomina no DP de desaforamento, ocorrendo em casos de grande comoção e repercussão, para que os jurados não sejam influenciados.

Santa Maria é uma cidade pequena, muita gente perdeu alguém na tragédia, dificilmente seria um júri isento, explica FARAH (2021)[8]

Na sessão plenária os representantes de acusação e defesa, utilizaram de ferramentas técnicas e emocionais para converter 04 dos 07 jurados a favor da sua tese e a decisão proferida pelo magistrado Orlando Faccini Neto, foi uma afronta ao Direito Penal, pois em 43 páginas, o magistrado trata não só do caso concreto, mas também do que diz respeito aos julgamentos pelo tribunal do júri. E ao final, Faccini Neto cita o habeas corpus preventivo, que é um mecanismo aplicado quando ainda existe apenas uma ameaça ao direito. Nesse caso, qualquer pessoa física que se achar ameaçada de sofrer lesão a seu direito de locomoção tem direito de fazer um pedido de habeas corpus (HC), esse instituto é denominado remédio constitucional e a pessoa assolada por ele é chamada de “paciente”. Fato este que levou os agentes no processo terem sua prisão evitada.

Os réus no processo criminal respondiam por homicídio simples que é o crime que se refere à ação de matar alguém sem agravantes cruéis (qualificadoras) ou sem domínio de violenta emoção (privilegiado) em número de 242 vezes consumado pelo número de mortos, tipo penal integralmente realizado, ou seja, quando o tipo concreto amolda-se perfeitamente ao tipo abstrato, assim o crime restará consumado com a morte da vítima; e 636 vezes tentado pelo número de feridos, crime que ocorre quando o agente inicia a execução do delito, mas este não se consuma por circunstâncias alheias à sua vontade.

A sentença de Faccini condenou os sócios Elissandro Spohr, a 22 anos e seis meses de prisão por homicídio simples, praticado com dolo eventual e Mauro Hoffmann, a 19 anos e seis meses de prisão por homicídio simples, praticado com dolo eventual. Na interpretação do magistrado os sócios determinaram a instalação, em paredes e no teto da boate, de espuma altamente inflamável, olvidando indicações técnicas de uso que, em sua condição empresarial, deveriam obedecer. Mais do que isso, empreenderam a contratação de show musical no qual era cediça a utilização de artefatos similares a fogos de artifício, sem prestar a devida informação sobre os riscos associados à conjugação destes dois fatores. Portanto, contribuíram num grau excepcional com a situação de perigo que culminou na causação dos danos verificados. Isto para não dizer do fato que aceitaram, sem controversas, manter a casa noturna com lotação demasiada, sem que tivessem atuado no sentido de viabilizar adequadas condições de evacuação, em casos de necessidade. Tudo no processo, ademais, corrobora a ideia de que coadunaram com a atuação de funcionários sem os treinamentos obrigatórios, e, no ensejo dos fatos da denúncia, chegaram a, ainda que genericamente, e no início do desdobramento do evento, ordenar aos seguranças para que impedissem a saída de pessoas do recinto, acaso não demonstrado o pagamento das despesas de consumo na boate. Tal conjunto de atos, no somatório tendente ao desfecho intensamente fatal que promoveu, de forma a encerrar elevado grau de censurabilidade. Com efeito, sendo os acusados imputáveis, ou seja, aquele que possui a capacidade de entender o caráter criminoso do seu ato e de determinar-se de acordo com esse entendimento - sendo, pois, a vontade livre do homem o fundamento da imputabilidade, de maneira a auferirem lucros em contrapartida a falta de segurança, tornando dessa maneira indiscutível a consciência da ilicitude do comportamento, viabilizando juízo desfavorável sobre essa circunstância[9].

Já Marcelo de Jesus, vocalista da banda foi condenado a 18 anos de prisão por homicídio simples, praticado com dolo eventual e Luciano Bonilha, auxiliar da banda condenado a 18 anos de prisão por homicídio simples, praticado com dolo eventual. Na prolatação de Faccini ambos contribuíram igualmente quanto ao grau de censura acentuado. Não obstante conhecendo o local do fato, onde já haviam atuado, acionaram os artefatos pirotécnicos que sabiam, ou no mínimo deveriam saber, serem destinados a uso em ambientes externos, sendo que um destes foi direcionado para o teto da boate, de modo leviano e insensível, o que deflagrou, a queima do revestimento inflamável. A importância causal desta conduta, para a produção de tamanho número de mortes, é inequívoca e o peso elevado das consequências deve ser suportado por aqueles cujo comportamento foi mesmo decisivo para a eclosão das mortes. Sem contar que teriam saído do local sem alertar o público acerca do fogo e da necessidade de evacuação, dando à vida dos frequentadores nenhuma importância e egoisticamente buscando preservar a sua. De modo que a reprovabilidade é intensa, sendo os acusados imputáveis e sendo-lhes, fortemente, exigido comportamento diferente daquele que adotaram por ocasião da efemeridade.[10]

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A decisão proferida pelo Conselho de Sentença, formado por sete jurados (seis homens e uma mulher), causou uma revolta no mundo jurídico. Não se trata de uma indignação simplesmente de advogados, pois, se fosse, poderia ser tomada como um corporativismo de classe. Longe disso. É uma revolta de advogados, de delegados de polícia sérios e honestos juridicamente, de promotores de justiça comprometidos com a ordem jurídica, enfim, é uma indignação de operadores do Direito comprometidos com o Direito e com a Justiça, que não utilizam seu caráter e conhecimento acadêmico e intelectual como moeda de troca para enaltecer o ego e a vaidade à custa da destruição de mais quatro famílias. Será que diante da tragédia ocorrida ainda era necessário causar mais dor?

Seria razoável encarcerar quatro réus, punir quatro famílias, para diminuir um pouco a dor daqueles que perderam seus entes queridos, visto que a dor daqueles que perderam alguém na tragédia nunca irá desaparecer ou sequer terá respaldo monetário que as supra, sendo que a indenização por danos morais e materiais tal como precede a Carta Magna em seu Art. 5º, V e X apontam a legalidade desta para aqueles que de alguma forma sofreram danos.

Dessa forma os representantes das vítimas em esfera civil solicitaram a título indenizatório o valor de 03 milhões de reais por morte e de 300 mil reais por vítima internada. Estes números foram obtidos baseando-se nas idades atuais e da quantidade de anos de vida perdidos, ou seja, porque muitos anos de vida produtiva em potencial foram tirados das vítimas. Este processo seria movido contra os sócios da casa e contra os músicos.

Os pedidos de indenizações foram dirigidos aos órgãos públicos, prefeitura e estado, bem como aos sócios da boate e ainda aos fabricantes das espumas. Os dependentes financeiros das vítimas pleiteariam uma liminar de antecipação de tutela em caráter de urgência, concomitante à ação principal.

A tutela antecipada pode ser concedida liminarmente ou não. Se, depois que a parte contrária se manifestar, o juiz deferir o pleito, terá ele proferido uma decisão por meio da qual antecipou a tutela, mas não se tratará de uma decisão liminar.

A Defensoria Pública acionou três dos seus núcleos especializados, para além de obter as indenizações, pleitear junto ao estado assistência médica e psicológica integral para as vítimas, sendo que conforme informado pela própria Defensoria os indiciados já estariam com 05 imóveis e uma conta no valor de mais de 500 mil reais bloqueados. Porém estes bens não seriam suficientes para satisfazer as ações indenizatórias, o que acarretaria a necessidade de obter o recebimento a partir da responsabilidade objetiva do Estado.

É fato que a responsabilidade do Poder Público não existirá ou será atenuada quanto a conduta da Administração Pública não der causa ao prejuízo ou concorrem outras circunstâncias que possam afastar ou mitigar sua responsabilidade

Com a adoção da responsabilidade objetiva, o cidadão (3º prejudicado) deixa de se situar em uma posição de fragilidade perante o Estado, pois agora a responsabilização independe da demonstração da culpa, e a simples demonstração de nexo causal entre a ação (ou omissão) do Estado e o prejuízo já é o suficiente para existir o direito de indenização.

O pedido foi motivado diante das conclusões resultantes de investigações da Polícia Civil, que apontaram que houve negligência por parte da Prefeitura de Santa Maria e do Corpo de Bombeiros (Estado do Rio Grande do Sul) na fiscalização da casa noturna, permitindo seu funcionamento em condições inadequadas de segurança. Conforme as informações divulgadas pelo jornal Folha de São Paulo, a Prefeitura, que, em 19/04/2012, concedeu alvará de localização para a Boate Kiss, tinha conhecimento das irregularidades do local desde o ano de 2009, tendo inclusive realizado avaliação da boate por arquiteto próprio, embora não tivesse tomado nenhuma providência diante das falhas de segurança verificadas.

Considerando o porte da tragédia, que resultou em 242 vítimas fatais, as ações foram propostas contra a Prefeitura de Santa Maria e ao Estado do Rio Grande do Sul, visto que os proprietários, ainda que eventualmente condenados, não teriam condições de arcar com todas as indenizações.

Nos casos em que há conduta omissiva do Estado, ou seja, quando o agente faz alguma coisa que estava proibido, fala-se em crime comissivo; quando deixa de fazer alguma coisa a que estava obrigado, tem - se um crime omissivo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem entendido que a responsabilidade civil é subjetiva, e tem resguardo na regra dos artigos 186 e 927 do Código Civil (CC), devendo ser comprovada a relação de causalidade entre a omissão do Estado e o dano sofrido por aquele que pleiteia a indenização (o Estado deveria ter agido, mas não o fez).

A responsabilidade subjetiva é o dever de indenizar os danos causados diante de uma ação ou omissão, dolosa ou culposa, devendo estarem presentes quatro elementos: culpa ou dolo, ato ilícito, dano, nexo de causalidade. No Código Civil, a responsabilidade subjetiva é a regra.

Essa é a hipótese da Boate Kiss, uma vez que a tragédia ocorreu pela não fiscalização adequada do estabelecimento. A responsabilidade somente é objetiva, isto é, não depende de dolo ou culpa estatal, conforme previsão do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição, quando o dever de indenizar tem origem no nexo causal entre o ato administrativo e o prejuízo ao particular.

Conforme informe do Império do Direito em 09 de setembro de 2015 foi julgada a primeira ação cível referente ao incêndio ocorrido na Boate Kiss, sendo que a decisão, proferida pela 1ª Vara Cível - Fazenda Pública condenou a empresa responsável pela Boate ao pagamento de indenização por danos morais, no valor de R$ 20.000,00, para cada um dos autores. Por outro lado, julgou improcedentes os pedidos em relação ao Município de Santa Maria e ao Estado do Rio Grande do Sul.

Segundo a sentença, restou amplamente caracterizado o dever de indenizar por parte da empresa, ante a falha na prestação do serviço.

Havia superlotação na casa noturna, os extintores não funcionaram, havia somente uma saída de emergência e a espuma de vedação acústica utilizada era inadequada e tóxica. Soma-se a tudo isso a responsabilidade da Boate em impedir a utilização de artefatos pirotécnicos no interior do local, os quais certamente exporiam os frequentadores a risco.

Ainda que a atitude de disparar o artefato tenha partido de um dos integrantes da Banda “Gurizada Fandangueira”, em se tratando de entidade privada, não há exclusão da responsabilidade por culpa exclusiva de terceiro, uma vez que o grupo foi contratado pela casa noturna.

Na culpa exclusiva de terceiros compete à parte autora a prova da existência do fato, do dano e do nexo de causalidade entre eles, cabendo à parte ré, em contraposição, a prova de eventual causa excludente da responsabilidade, como a culpa exclusiva da vítima.

O ato ilícito, neste caso, configura fortuito interno, ou seja, conceito jurídico bastante utilizado no âmbito das relações de consumo. Trata-se em linhas gerais do dever dos empreendedores de arcarem com as avarias decorrentes da própria atividade desenvolvida que venham a trazer prejuízos inesperados para o consumidor, assim sendo deve a empresa responder pelos danos gerados, segundo a teoria do risco do empreendimento que leciona que todo aquele que se disponha a exercer alguma atividade no mercado de consumo tem o dever de responder pelos eventuais vícios ou defeitos dos bens e serviços fornecidos, independentemente de culpa.

Entendimento diverso foi dado à responsabilização do Estado do Rio Grande do Sul (Corpo de Bombeiros) e do Município de Santa Maria. Ainda que tenha ocorrido, de fato, omissão do Poder Público, que deixou de fiscalizar as condições de funcionamento da empresa – nas quais havia flagrante descumprimento das normas de prevenção de incêndio, de lotação etc., houve rompimento do nexo de causalidade, vínculo fático que liga o efeito à causa, ou seja, é a comprovação de que houve dano efetivo, motivado por ação, voluntária, negligência ou imprudência daquele que causou o dano, diante do ato exclusivo e absolutamente independente de terceiro.

A causa juridicamente relevante para produção do resultado danoso foi à utilização do artefato pirotécnico pela Banda no interior do estabelecimento, que acarretou o incêndio do forro, o qual era constituído de material altamente inflamável e tóxico. Desta forma, segundo a decisão, ainda que o Poder Público tivesse promovido à fiscalização de forma eficiente e estivessem cumpridas todas as exigências legais, com todos os alvarás válidos, não haveria como se inferir que o incêndio não teria ocorrido ou que as proporções seriam reduzidas.

Dessa forma, tem-se que o Estado e o Município, falharam no seu dever de fiscalizar e eventualmente interditar a “Boate Kiss”, e que tal falha enseja responsabilidade política dos dois entes, e também eventual responsabilidade administrativa e/ou penal dos agentes envolvidos – mormente se restar de fato demonstrada atuação dolosa e/ou fraudulenta de algum servidor.

Na responsabilidade administrativa, penal e civil constantes do direito administrativo disciplinar as comissões e a autoridade têm o dever legal de comunicar às autoridades competentes quando se deparar com indícios de cometimento de crimes, ilícitos cíveis, por ventura, cometidos pelo servidor, acusado em processo disciplinar.

Todavia, tal conduta dos Entes Públicos não gera dever de indenizar em razão da ausência de nexo de causalidade direto com o evento danoso, simplesmente porque terceiros agiram ativamente e com suas condutas deram causa ao resultado, logo, são esses terceiros que deverão arcar com as reparações respectivas.

Diante do ato exclusivo de terceiro, houve rompimento do nexo de causalidade entre o dano e as condutas dos agentes públicos municipais e estaduais, isento o Estado do Rio Grande do Sul e o Município de Santa Maria do dever de indenizar.

Com base nos mesmos fundamentos, ocorreu a condenação solidariamente de todos os sócios da Boate Kiss ao pagamento de indenização por danos morais aos pais de uma das vítimas fatais do incêndio, no valor de R$ 50.000,00 para cada um, totalizando R$ 100 mil reais para o casal.[11]

Em decorrência de Responsabilidade solidária, havendo pluralidade de devedores, o credor pode cobrar o total da dívida de todos ou apenas do que achar que tem mais probabilidade de quitá-la. Todos os devedores são responsáveis pela totalidade da obrigação. O devedor que pagar o total deve receber dos demais a parte que pagou por eles.

Essa foi uma forma que a Justiça abriu precedentes para futuras indenizações a famílias de vítimas.

É fato que a condenação na esfera criminal para os familiares das vítimas é efêmera e sutil, para os réus é permanente e lancinante. Essa dor é uma chama ardente e que consome tudo o que for lançado nela. Uma dor que será perpetuada pela eternidade.

Entretanto, é notório que o processo que lançou os quatro réus no rol dos culpados não será suficiente para aplacar tamanha dor. Nada será suficiente. Se fossem condenados todos os envolvidos direta ou indiretamente no fato, ainda assim não seria suficiente. Se fossem torturados todos e se fosse aplicada a pena de morte posteriormente, ainda assim não seria suficiente.

Cabe ao Direito, em especial ao Direito Penal ajustar as expectativas para a condenação justa, concreta, visando o todo e não somente a parte, uma justiça que não seja influenciada pelos olhos de uma mídia que condena sem resquícios verídicos de forma a causar frustrações e descréditos aos operadores do direito de forma a afetar a confiança no sistema de justiça.

Nem mesmo sob o enfoque de um utilitarismo voltado a satisfazer o anseio vingativo e compreensivelmente humano, mas irracional de quem perdeu um familiar seria possível concordar com uma condenação como a que ocorreu. Do ponto de vista jurídico, não há justificativa nenhuma para tal feito.

O magistrado Orlando Faccini Neto enfatizou em sua tese condenatória que a fundamentação para a fixação da pena se fundamentou desde sempre na imputação do dolo eventual. Dessa forma o juiz cita JESUS que fundamenta a pura culpabilidade aquele que “retira o dolo da culpabilidade e o coloca no tipo penal”, o que indicaria que “relaciona-se com a teoria finalista da ação”, ou melhor, naquela em que a infração penal só se constitui com conduta tipificada, antijurídica e culpável. A conduta é composta de ação/omissão somada ao dolo perseguido pelo autor, ou à culpa em que ele tenha incorrido por não observar dever objetivo de cuidado.

Faccini continua se utilizando das palavras de ESTEFAM, que enfatiza que mediante a perspectiva de que no âmbito do sistema finalista se identificou a natureza puramente normativa da culpabilidade, a qual passou a ser composta de imputabilidade, possibilidade de compreensão da ilicitude da conduta e de exigir do agente comportamento distinto. Sendo complementado por BITENCOURT, que assevera que uma das mais caras contribuições do finalismo é a extração do âmbito da culpabilidade de todos aqueles elementos subjetivos que a integram até então e, assim, dando origem a uma concepção normativa pura da culpabilidade. [12]

Dessa forma a prolatação levou em consideração o descrito no Art. 59 do CP que determina que o juiz atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, a personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime[13], dessa forma o juiz, dentro dos limites estabelecidos pelo legislador (mínimo e máximo, abstratamente fixados para a pena), deve eleger o quantum ideal, valendo-se do seu livre convencimento (discricionariedade), embora com fundamentada exposição do seu raciocínio (juridicamente vinculada).

Assim sendo o magistrado quando expôs a culpabilidade, a resumiu como a reprovação pessoal que se faz contra o autor pela realização de um fato contrário ao Direito, embora houvesse podido atuar de modo diferente de como o fez, o que, assim, significaria que a reprovação pessoal contra o agente do fato fundamenta-se na não omissão da ação contrária ao Direito ainda e quando podia havê-la omitido.

Professores da Universidade de São Paulo (USP) como Ana Elisa Bechara, professora de Direito Penal, e Maurício Dieter professor da área de criminologia, observam a controversa acusação do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP), apontando crime doloso contra a vida (intencional) e que levou o caso a júri popular.

A professora Ana Elisa segue a linha apresentada pela defesa e vê confusão entre as figuras de dolo e culpa no caso, de acordo com a docente a tragédia poderia ter sido evitada (ou seja, há responsabilidade), mas tem uma análise técnica da qual não se pode fugir. Quando se passa por cima dos conceitos técnicos de Justiça para julgar conforme uma ansiedade da sociedade, se abre uma porta perigosa, a do arbítrio, de cada um, de maneira que o julgamento poderá ser efetuado de maneira subjetiva, não de acordo com o conhecimento técnico. Num caso como esse, quando se diz que essas pessoas conheciam o resultado morte como muito provável e ficaram indiferentes, se está dizendo que elas eram, no mínimo, suicidas.[14]

É fato que a vontade do agente é de suma importância para que se possa classificar sua conduta, de forma culposa ou dolosa, uma vez que, nas infrações, o agente assume o risco de seus atos.

O professor Dieter segue na mesma linha sustentando que o problema principal não vigora na distinção entre dolo e culpa, fazendo a consideração de que em uma prova de DP, o gabarito do caso da boate Kiss, provavelmente, seria incêndio com resultado morte, sendo que tal crime não seria competência do tribunal do júri, mas sim julgado por um juiz comum, com pena de seis a doze anos. Acrescenta ainda que as evidências apresentadas indicam que não houve dolo eventual pelos acusados.[15]

Tanto no dolo eventual ou culpa consciente, o agente no recebimento da sua pena, terá na sua aplicação uma punição severa ou branda por parte do Estado.

Dessa forma a sustentação do professor Dieter vai de desencontro com o que foi exposto pelo magistrado em sua tese quando salienta que quando se fala na intensidade do dolo se aborda a cerca do dolo direto ou de dolo eventual. Para o magistrado o dolo não se estrutura em termos puramente descritivos e não deixa de revelar um estado de indiferença ou de desinteresse frente aos valores comportados pelo Direito. Neste contexto, ademais, a indiferença aparece como um critério a ser tomado em conta para a sempre difícil distinção entre o dolo eventual e a culpa consciente[16].

Assim sendo, para o juiz a ausência de oposição interna do autor frente à lesão do bem jurídico, quando essa, a lesão, afigura-se o dolo eventual.

Percebeu-se dessa forma que à bancada da Defesa, lutou com todas as suas forças, tentando evitar a injustiça e salvar o Direito, mas mesmo assim a Defesa, que é sempre a última trincheira contra o abuso punitivo, sucumbiu, e com ela caiu o Direito, e isso gerou fraturas sérias nos pilares que sustentam o Tribunal do Júri como Instituição democrática no Brasil.

O que se viu do lado contrário, por parte da acusação, foram teses vaidosas, hipócritas, uma acusação despreparada tecnicamente. Viu-se um promotor falar em “teoria do domínio do fato” para tentar justificar o, porquê certos réus não foram incluídos na denúncia. Sendo que a teoria reconhece a figura do autor mediato, desde que a realização da figura típica, apresente-se como obra de sua vontade reitora, que é reconhecido como o “homem de trás”, e controlador do executor.

Esse promotor sequer sabe o que é a teoria do domínio do fato, pois, se soubesse, teria vergonha do que disse, visto que a teoria referida não é teoria probatória, mas limitativa do poder punitivo; é teoria que pressupõe culpa formada, atua no “pós” e não na “pré” apuração da culpa (sentido lato).

Foi abordada a teoria da cegueira deliberada como mero subterfúgio teórico e falso para levar os jurados a incorrer em erro.

Sendo a teoria da cegueira deliberada ou instruções de avestruz (ostrich instructions) definida por SOARES (2019, p. 06) como instituto do direito criminal que, por meio da ampliação do espectro conceitual de autor e partícipe de delitos, possibilita a responsabilização criminal daqueles que, deliberadamente, evitam o conhecimento sobre o caráter ilícito do fato para o qual concorrem, ou acerca da procedência ilícita de bens adquiridos ou movimentados.[17]

Além do mais, se viu uma promotora passar “vergonha jurídica” por se fazer de desentendida e violar o direito ao silêncio durante o interrogatório de um dos réus. Viu-se a utilização de imagens de corpos das vítimas como instrumento apelativo para cegar os jurados. O sangue que ofusca as vistas ocultou a realidade e as consequências da decisão.

Uma insensibilidade sem tamanho com os familiares presentes, uma crueldade sem limites. Viu-se também um advogado, atuando como assistente de acusação, violar os direitos dos réus, indo na contramão do que todos os operadores do direito juram quando recebem a licença: atuar com ética, defender a Constituição, defender a Ordem Jurídica.

Um show de horrores. Se injustiça fosse um tipo penal, a bancada da acusação deveria responder a título de dolo direto, sabiam o que estavam fazendo. Não eram tolos, foram maldosos, insanos.

O resultado quatro réus condenados por homicídio com dolo eventual, enfatizado pelo magistrado como imensa gravidade, ficando até mesmo difícil supor a possibilidade de que fatos assim ocorram sob a modalidade do dolo direto, visto que a produção da morte de tão vasto número de indivíduos, quando o agente quer diretamente o resultado, muitas vezes se convola noutros tipos penais, como seja o terrorismo – conceituado pela lei 13.260/2016 em seu Art. 2º como uma prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública[18]·; o genocídio definido pela lei 2.889/1956 em seu Art. 1 como quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso[19], e outros envolvendo um conjunto tão plural de vítimas, o que quase permitirá dizer que em situações catastróficas e de produção da morte de um expressivo número de pessoas o dolo eventual já é, ele mesmo, o elemento subjetivo de maior gravidade, porquanto se de dolo direto se tratasse muito provavelmente se estaria diante de outros modelos de crimes. Faccini Neto enalteceu que nenhum julgador, será capaz de colocar-se na mente de quem atuou criminalmente para, daí, inferir qual teria sido o seu elemento subjetivo.

O fato é que os réus deveriam ser condenados por homicídio culposo que é aquele quando uma pessoa mata outra sem a intenção, quando a culpa é inconsciente. As causas do homicídio culposo são norteadas pela negligência, imprudência ou imperícia. Não era preciso absolver, simplesmente tipificar a ação corretamente. Às vezes a razão não está nos extremos, mas no meio.

Para MARTELO FILHO (2020, p. 469) o “o dolo é um juízo, e não um objeto de valoração”; de maneira que a imputação do dolo nunca é, portanto, um simples derivado de processos psicológicos.[20]

Para o julgador a questão do dolo é uma atribuição, entretanto se faz necessário a menção de que a conduta foi única, sendo que o DP se debruça sobre a conduta, não considerando, para aferir a responsabilidade a título de dolo ou culpa o número de mortes, pois isso é feito num segundo momento, na dosimetria de pena. A culpa não se convola em dolo pelo elevado número de resultados, mas sim pela ação do agente.

O dolo eventual e culpa consciente é algo difícil de entender, o erro é compreensível. Não são formas tão complicadas que justifiquem uma decisão tão equivocada. As teses foram bem, muito bem, explicadas em plenário.

Partindo-se da dicção legal, no dolo eventual o agente “assume o risco” de produzir o resultado. A redação legal é precária, pois há assunção de um risco, do ponto de vista fático, tanto no dolo eventual quanto na culpa consciente. Assim se o agente pega seu carro e sai de sua casa com pressa para chegar em determinado local e passa um semáforo que estava fechado para ele, este esta assumindo a possibilidade de atropelar e matar alguém.

Se isso ocorrer, não é possível dizer, por si só, que o agente agiu com dolo eventual porque “assumiu o risco”. O dolo eventual exige mais que assumir o risco de produzir um resultado: é necessário se conformar com o resultado caso venha ocorrer, ser indiferente com relação a ele. É essa INDIFERENÇA quanto à produção do resultado que permite distinguir o dolo eventual da culpa consciente.

Aqui precisa ficar claro que a mera previsão do resultado (aquilo que pode acontecer) não define que o crime é doloso, porque tanto no dolo (direto ou eventual), quanto na culpa (com exceção da culpa inconsciente), a previsão está presente.

A cerca do veredicto é necessário se salientar que não se pode culpar o Conselho de Sentença, que é soberano, entretanto é necessário se salientar que esses juízes leigos não conhecem a justiça de forma plena e pior ainda veem com uma opinião pré-formada pela imprensa que teima em condenar e julgar sem a devida técnica. Também não se pode deixar de lembrar que a soberania carrega consigo a noção de responsabilidade, de imparcialidade.

O Conselho não é culpado pelo erro, mas em certa medida são responsáveis pela injustiça praticada, pois poderia, terem decidido de outra forma se dominassem técnica, leis e a realidade dos fatos, sem a intromissão dos meios de comunicação. Então como diferenciar dolo eventual e culpa consciente para cidadãos leigos, sem o temido e incompreendido juridiquês?

Seria necessário o questionamento se os réus poderiam prever que acionar o dispositivo pirotécnico em local fechado poderia ocasionar fogo, “os réus poderiam prever que em caso de fogo as pessoas poderiam morrer?”

Somente assim poderia ocorrer a compreensão de que tais argumentos não definem uma conduta como dolosa (dolo eventual), ou seja, aquela conduta em que a pessoa age intencionalmente para alcançar um resultado. A conduta dolosa se diferencia da culposa, que é aquela em que não se tem a intenção de se chegar ao resultado, mas isso decorre de um comportamento negligente, imprudente ou não feito com a habilidade apropriada.

Algumas situações deveriam ter sido analisadas com mais esmero pelo Júri e que poderiam ter levado a uma decisão mais justa e correta tais como: Será que naquele dia todos (sócios, músico, roadie) saíram de suas casas em direção à Kiss sabedores de que o dispositivo pirotécnico seria acionado, que poderia dar início ao fogo causando um incêndio que mataria centenas de pessoas, e foram indiferentes com relação a isso? Os quatro réus tinham amigos e conhecidos lá dentro da boate. Será mesmo que eles eram indiferentes com relação à morte dessas pessoas? Mais que isso, os réus que estavam lá dentro eram indiferentes com relação às suas próprias vidas? Eles tinham família, eram indiferentes com relação aos seus? Eram indiferentes se iriam retornar aos seus lares? Eram indiferentes com seus suicídios?

Afinal todos os réus eram primários, ou seja, aquele agente que não havia sido anteriormente condenado por sentença transitada em julgado. Seu conceito é na verdade a antítese daquele que define réu reincidente, ou seja, o réu já condenado por sentença transitada em julgado. Não possuíam antecedentes, não possuíam qualquer envolvimento com o Poder Judiciário na esfera penal. Nas palavras de Celso Delmanto em seu Código Penal Comentado: São os fatos anteriores de sua vida, incluindo-se tanto os antecedentes bons como os maus. Dessa forma por mera vontade de matar eles quiseram dar novo rumo às suas vidas e agir como assassinos? Claro que não.

Ali tudo era uma festa, como muitas outras realizadas pelos acadêmicos e pelos donos da boate, as pessoas se divertiam. Os músicos queriam entreter as pessoas e a pirotecnia seria uma forma de potencializar o divertimento, haja vista que tal artifício é utilizado pelos mais renomados artistas brasileiros.

É notório que ocorreu imprudência, negligência e imperícia que se diferem na ação tomada pelo agente. Assim, na imperícia e na imprudência o agente tem uma atitude comissiva, ou seja, de ação. Na imperícia, o agente faz sem ter a habilidade necessária, enquanto que na imprudência o agente faz sem o cuidado devido. Já na negligência a atitude é omissiva, posto que o agente deixe de fazer algo que seguramente deveria fazer, dessa forma como acreditar que o músico e o roadie saíram de sua casa levando consigo um sentimento de indiferença com relação à morte de centenas de pessoas?

O fato é que antes do acidente da na Boate Kiss não existia fiscalização adequada por parte do Poder Público. Prefeituras, Bombeiros e MP não fiscalizavam. Quando havia algum tipo de fiscalização era feita “só pra inglês ver”. A de se ver que após o incêndio muitas regras foram modificas nas casas de show em todo o país, para encobrir as falhas dos Poderes e órgãos públicos, a única postura que entenderam adequada foi uma escolha covarde, uma escolha de quem não tem coragem para enfrentar a opinião pública e os familiares das vítimas e assumir sua parcela de responsabilidade, uma escolha de fazer uso de bodes expiatórios, de bois de piranha.

Jogar quatro réus aos tubarões se equipara a Roma antiga quando os reis jogavam cristãos para serem devorados por leões no Coliseu. O importante era entreter o povo para mantê-lo sob controle. O tempo passa e a tática continua sendo a mesma. Antes, contudo, se dilacerava só o corpo dos infortunados, agora o corpo e a alma. Hoje a morte vem a prazo, em parcelas anuais de encarceramento em prisões medievais. Infelizmente a população ainda não evoluiu. O choro de um injustiçado não comove mais. No íntimo se prefere pensar que o erro decorrente de uma injustiça não é um erro da comunidade em geral, mas sim de quem acusou; de quem julgou; um efeito colateral do Sistema, um dano que se pode absorver, isso é um erro, afinal todos são corresponsáveis, pela injustiça praticada em 10/12/2021 e se esse julgamento não for anulado a população será testemunha ocular do mais grave erro judiciário do Brasil.

O magistrado enfatiza que a culpabilidade dos acusados é elevada, por ser intenso o elemento subjetivo com que agiram; mesmo sendo o dolo eventual, permite um juízo desfavorável no nível da aplicação da pena, juízo que não está limitado por uma ideia de que necessariamente haveria de ser menos gravoso do que o oriundo de um caso cometido com dolo direto[21]. Para o juiz se utilizando das palavras de GUNTHER (2002, p. 219) a vítima, ou seus familiares, são reconhecidos como alguém que não padeceu de um mero infortúnio ou fatalidade, e sim uma conduta ilícita, reprovada pela coletividade[22].

O fato é que os meios de comunicação exaltaram o caso, afirmando que Elissandro Spohr, popularmente conhecido como Kiko, tinha a intenção de usar sua casa noturna para alavancar sua carreira na música. Sendo assim, ele buscava sempre um público de jovens universitários, incentivando-os a organizarem suas festas para angariarem fundos de formatura em sua boate. Kiko divulgava o evento e contratava os músicos e as bandas, repassando uma comissão para os estudantes proporcional ao da venda de ingressos, gerando assim uma corrida dos formandos atrás de clientes. Nesses moldes, de 3 a 4 festas por semana eram realizadas na boate, nos valores médios de 15 a 25 reais por pagante. A casa estava lotada na data do fato, por esta razão, ótimo custo-benefício para universitários da UFSM.

O apelo midiático foi tanto que Santa Maria se tornou manchete no mundo inteiro. A imprensa internacional noticiou o ocorrido com destaque. A CNN, umas das principais redes de televisão dos Estados Unidos e do mundo, relatou tragédia tanto na televisão como na Internet, afirmou que o mundo não aprendeu com os erros do passado. Já o Clarin, jornal argentino, comparou o incêndio com a da Boate em sua capital, que vitimou fatalmente 194 pessoas e deixou inúmeras feridas. El 20 País, o principal jornal da Espanha, veiculou o incidente como um dos piores da história do Brasil.

As principais emissoras de televisão do Brasil tiveram toda a sua programação alterada para poder passar cada detalhe do fato em suas coberturas. Algumas delas obtendo mais de 15% de aumento em suas audiências na região metropolitana de São Paulo, segundo o site de notícias R7 da rede Record.

A atuação midiática, diz respeito à colisão entre a liberdade de imprensa, e consequente direito à informação, e outros diversos direitos garantidos pela ordem constitucional ao acusado, como a presunção de inocência e o direito à honra e à intimidade, dentre outros.

Para enfatizar tal afirmativa cita-se que o Jornal Nacional, exibido em 28 de janeiro de 2013, tratou a tragédia da Boate Kiss, com uma edição de cerca de 50 minutos, divididos em 04 blocos, dando destaque para a prisão de 04 pessoas envolvidas no incêndio, depoimentos exclusivos dos músicos falando como tudo aconteceu, análise e suspeita contra o Corpo de Bombeiros, o início do enterro das vítimas, o atendimento das vítimas nos hospitais, além de depoimentos de parentes e sobreviventes, uma simulação de como o fogo se propaga em um ambiente com o material que revestia a boate foi simulada. Tais meios se referem ao imediatismo e ao sensacionalismo midiático que transformam a notícia em informação como meio de adquirir audiência e furos jornalísticos.

A Tragédia da Boate Kiss tornou-se um episódio marcante, já que além de promover a comoção pública por conta propriamente dos fatos em si, ademais entra para a memória do jornalismo brasileiro pelas particularidades da sua cobertura, como o interagendamento com as redes sociais.

É notório que em tempos de tecnologia avançada, a instanteidade dada às notícias e as ferramentas que atribuem “poder” aos internautas, tornam-se fatores primordiais para a dissipação dos mais distintos fatos noticiosos. Se as redes sociais nascem com o intuito de viabilizar as relações humanas, por sua vez, com o advento das redes sociais digitais, os vínculos humanos deixam de ser propriamente físicos e ganham um novo tipo de status relacional, o ciberespaço, também conhecido como ambiente virtual.

No caso da Boate Kiss, os meios de comunicação não apenas desempenharam papel para o convívio virtual, mas contribuíram na diversidade de conteúdo disposto sobre o ocorrido. Considerando-se alguns aspectos fundamentais acerca do episódio, por exemplo, o fato de ser uma cidade interiorana, o horário, o dia, a quantidade de vítimas fatais.

Os celulares e smartphones registraram os mais diversos momentos daquela tragédia. Enquanto algumas somente fizeram gravações tidas como “amadoras”, outras optaram pelas redes sociais como instrumento tanto de obter cliques ou likes quanto de serem elementos propagadores de fatos, gerando um verdadeiro reality show da vida real.

A abertura do Fantástico daquela data foi um composto de imagens dos instantes iniciais do pós-incêndio. Com apelo emotivo forte que emocionaram uma sociedade e que posteriormente influenciariam no desaforamento do caso para Porto Alegre e na opinião emitida pelo Conselho de Sentença.

Segundo Kleber professor da Universidade de Santa Cruz do Sul enaltece à dimensão política entrelaçada ao acontecimento trágico que vitimou 242 jovens, e feriu outros tantos, numa noite que seria de festa.

Dessa forma o professor de processo penal da PUCRS, Felipe Oliveira em entrevista para o site G1 sustenta que independentemente dos desdobramentos, este tribunal de júri já causa impactos na justiça brasileira. A decisão oriunda do julgamento terá peso muito grande em termos históricos. Um fato extremamente triste e que entra para a história do judiciário. [23]

O advogado Fabiano Clemente em entrevista para o mesmo site fundamenta dolo eventual como uma terminologia para quando os acusados sabem que suas ações podem causar a morte e, mesmo assim, assumem este risco. Ele pratica uma ação, prevê a ocorrência do resultado e assume o risco, se desimportando do que vier a acontecer. Se costuma dizer que, no dolo eventual, o sujeito está indiferente.[24]

O fato é que a literatura e a ficção por vezes se tornam realidade. Nos livros de romance policial, muitas vezes, a narrativa se confunde com casos cotidianos, que se acompanha pelas páginas de jornais e redes de TV. Uma mídia que incita, entra na casa das pessoas, coloca a sua versão dos fatos sem a devida preocupação com os aspectos legais do crime. A busca pela audiência é incessante, e assim os meios de comunicação não poupam esforços para tornar um fato real em um roteiro novelístico.

Dessa forma o jurista e professor da de Direito da Unisinos, Lênio Streck, não teve dúvidas: os quatro réus que respondiam por homicídio simples com dolo eventual no caso da boate Kiss seriam condenados. “É crônica de uma condenação anunciada”, afirma.[25]

Streck deixa claro que sua opinião quanto ao desfecho não implica que seja favorável ou contrário à sentença proferida pelo juiz Orlando Faccini Neto, que presidiu o júri. Reforça que se dá em termos de constatação, percepção e experiência. “Esse é um caso que envolve todas as condições adversas da natureza, é o julgamento mais triste e mais dramático da história brasileira”.[26]

Ribeiro em artigo para o âmbito Jurídico enfatiza que a condenação não deriva de fatores especulativos a cerca do caso, entendendo que a sentença causou revolta até mesmo nos meios de comunicação, visto que os veículos de comunicação não conseguem na boate Kiss, fazer o mesmo “estardalhaço” que foi visto no caso dos irmãos Cravinhos (que executaram o assassinato aos pais de Suzane Von Richtofen, planejado pela filha do casal) ou do caso Nardoni (em que o pai e a madrasta da menina Isabela Nardoni, então com cinco anos, foram condenados pela morte da criança, jogada do sexto andar de um edifício em São Paulo). “O caso da boate Kiss é difícil de lidar, é uma tragédia que intimida, como se fosse um holocausto, é constrangedor para o ser humano”. Para o autor “o conceito de sociedade de espetáculo não se aplica num caso dessa dimensão.”[27]

A maioria das vítimas eram estudantes, quase na totalidade da UFSM, Universidade Federal de Santa Maria, que interrompeu todas as suas atividades acadêmicas até o dia 1º de fevereiro de 2013. Até 31 de janeiro, 143 pessoas estavam hospitalizadas com pneumonite química na cidade, com mais de 70 em condições críticas. Esta patologia é gerada pela inalação de vapores tóxicos e resulta na falta de ar, muitas vezes levando a vítima à morte. Progressivamente o número de internados crescia, pois os sintomas levam horas para aparecerem. O estresse pós-traumático das vítimas foi outra sequela tardia do ocorrido.

Inúmeros boatos surgiram nas redes sociais do tipo teoria da conspiração. Alguns postaram sobre o Holocausto, pois havia a coincidência das datas de 27 de janeiro, data da tragédia gaúcha e de homenagens às vítimas do holocausto. Alegavam que teria sido um evento premeditado. Para justificar tais alegações internautas juntaram vários indícios para fundamentar sua teoria, como: caveira em chamas no cartaz da festa; Die Young, a última música executada; uma sobrevivente disse ter visto uma mulher de vermelho sorrindo; as portas foram lacradas pelos seguranças; só um dos membros da banda morreu; a banda teria anunciado o incêndio no Facebook, antes do show, em um post, que após foi removido, meras insanidades.

Dessa forma pode-se afirma que a efetividade do clamor público, obrigava o judiciário a tomar alguma atitude, pois a imprensa atribuiu a culpa ao legislativo, por deixar defasar as leis, entretanto é preciso a compreenção de que a defasagem das leis já vem de longa data, mas é preciso que os operadores do direito analisem o caso concreto, emitam fundamentações, sejam imparciais, interpretem os pontos obscuros de parágrafos e incisos para prolatar uma sentença de cunho justo coerente e coeso para todas as partes envolvidas.

O advogado Rubens Decoussau Tilkian, sócio do escritório Decoussau Tilkian Advogados em entrevista para o Migalhas sustenta ser tarefa fácil encontrar os limites da imprensa responsável, principalmente em situações de repercussão nacional e internacional, em que os chamados "furos jornalísticos" se sobrepõem ao dever e aos limites de transmitir informação. Nesse contexto, há nítida e inegável colisão de direitos fundamentais constitucionais; de um lado, o que protege a liberdade de expressão (inciso IV, do artigo 5º e artigo 220 da CR), sendo vedada a censura (§ 1º, art. 220 da CR) e, de outro, os direitos e garantias intrínsecos ao indivíduo, a saber, a intimidade, a privacidade, a honra, a imagem e o nome (inciso V e X, do artigo 5º, da Constituição da República Federativa e artigos 11, 12 e 17, do Código Civil).[28]

Frente ao poderio que adquiriu no mundo contemporâneo, a imprensa deve agir com a virtude da razão: a prudência. Precisa ser ética e limitar-se a veicular somente informação de interesse público, sem juízo de valor e sem qualquer caráter sensacionalista, esses últimos para simplesmente atrair a curiosidade popular e prestigiar o interesse econômico em detrimento dos valores básicos que sustentam um Estado democrático de direito.

A mídia com objetivo de alcançar audiências cada vez maiores veicula o crime e a violência de um modo recorrente, como se fossem produtos à venda aos expectadores que, na lógica do comércio e da obtenção de lucro, tornam-se consumidores. Para vencer a forte concorrência do mercado, muitas vezes a mídia apela ao sensacionalismo ao informar a ocorrência de determinados crimes, impondo assim, um discurso criminológico fundamentado no medo, que é capaz de mexer com o lado emocional das pessoas.

O contrato de informação midiática, é, em sua base, marcado pela contradição entre a finalidade de fazer saber, que deve buscar um zero grau de espetacularização da informação, satisfazendo a seriedade que se espera da mídia, ao produzir efeitos de credibilidade; e a finalidade de fazer sentir, escolhendo-se estratégias apropriadas à encenação da informação e satisfazendo a emoção ao produzir efeitos da dramatização. CHARAUDEAU (2012, p.12)[29]

É evidente que o incêndio da boate Kiss jamais será esquecido, visto a inegável importância social, pública e familiar, um marco na história, que como no caso do Ed. Joelma e Andraus que alterou legislação e tecnologias na prevenção de incêndio na época. Este pareceu de proporções maiores, que os do passado, isto devido à globalização que os meios de comunicação a alcance de todos proporciona, notícia em tempo real, exarcebação de conteúdos, condenação pelos meios de comunicação que não são dotados de técnicas.

Fica evidente que a mídia, não só a local como a mundial, como sempre fez seu papel de polemizar ao máximo, apontar culpado e induzir o poder público a adotar medidas emergenciais como forma de solucionar e prevenir novos acontecimentos. Foi esta mídia a principal motivadora, da condenação de quatro réus, de quatro famílias e pior da espetacularização de milhares de vidas.

E no final desta história, ocorreu a condenação de quatro réus, de quatro famílias, um rechaço ao DP que ficará na memória dos operadores do Direito que buscam a plenitude da defesa no Estado democrático de direito.

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Sobre a autora
Sandra Mara Dobjenski

Advogada, pesquisadora de Direito Penal e Processual Penal e sobre a relação com a mídia nos casos de grande repercussão. Especialista em Direito Penal, Criminologia, Processo Penal e Direito Penal Econômico - UNINTER.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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