Capa da publicação O jumento como síntese da luta pela liberdade do nordestino
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O Direito como arte: o jumento como uma síntese de vários movimentos e expressões sociais, na luta pela liberdade do povo nordestino

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15/01/2022 às 17:20
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O burro e a cruz

Eu só peço a Deus

Que a injustiça não me seja indiferente

Pois não posso dar a outra face

Se já fui machucado brutalmente[11].

(Raul Ellwanger).

O jumento e seus parentes, equus asinus, também chamado de asno e jegue, é uma espécie próxima do cavalo. Do cruzamento com uma mula (fêmea do cavalo), dá origem ao burro (macho) ou mula (fêmea). Não existiam no continente latino-americano quando do descobrimento. Foram trazidos das Ilhas de Madeira, Canárias e Cabo Verde.

Por serem animais de extrema resistência, são usados largamente para o transporte de cargas e tração. Foram animais de suma importância para a fixação de homem no nordeste brasileiro, uma vez que juntamente com seus tangedores foram responsáveis por desbravar sertões, colaborando de forma incisiva e decisiva para a construção de cidades, vilarejos e quejandos.

São animais que fazem parte do folclore brasileiro, da música popular brasileira e estão presentes em diversos filmes. No O Pagador de Promessas, filme brasileiro de 1962, drama escrito e dirigido por Anselmo Duarte e ganhador da Palma de Ouro do Festival de Cannes, denota-se claramente a importância desse tipo de animal para o nordestino.

Após seu burro Nicolau, ficar seriamente doente, Zé do Burro faz uma promessa num terreiro de candomblé pela recuperação daquele que diz ser seu melhor amigo. Se o burro se salvasse, dividira sua pequena propriedade igualmente entre os mais pobres. A promessa foi assim feita porque na região onde morava no interior da Bahia, não existia igreja em homenagem à Santa Bárbara[12], sua santa de devoção.

Começa então uma verdadeira peregrinação à Salvador (capital da Bahia e onde estava a Igreja de Santa Bárbara), sendo acompanhado por sua esposa, para pagar a promessa feita à Iansã. A promessa consistia em colocar no interior da igreja, uma cruz de madeira, que carregou por um longo percurso, enfrentando diversos obstáculos (fome, calor, humilhação). Todavia, o pior obstáculo foi resistência da igreja em não deixar que Zé do Burro cumprisse sua promessa. Para o pároco local (autoridade da igreja), a promessa tinha feições pagãs, o que inviabilizava seu cumprimento.

O filme revela a luta do brasileiro, notadamente o nordestino, contra a discriminação e pela reforma agrária. Com o cunho político, Zé do Burro acaba sendo morto por policiais e na última cena do filme, a população que o apoiou, coloca seu corpo estendido na cruz e entra a força na igreja.

A história de Zé do Burro ainda ganhou uma versão em forma de minissérie, escrita por Dias Gomes e adaptada da sua peça teatral homônima. Foi exibida pela primeira vez em 1988. No entanto, vários de seus capítulos tiveram cortes pela censura, limitando a atuação do personagem principal, no que diz respeito às lutas dos sem terras e posseiros, em busca da tão sonhada reforma agrária.

Com a censura, o cerne da trama melhor se trabalhou no filme, ou seja, o fato da igreja católica se posicionar contra a Reforma Agrária. O momento histórico confirma essa elucubração. O Pagador de Promessas foi escrito em 1960, quando a igreja atravessava uma forte transformação, que culminou com o Concílio do Vaticano II, entre 1961 e 1965, através da bula papal Humanae salutis, pelo Papa João XXIII e que firmou a Teologia da Libertação[13].

Em sequência, a Segunda Conferência Geral do Espiscopado Latino-americano, realizada em Medellin (Colômbia) em 1968, com o desiderato de aplicar os ensinamentos do Concílio às necessidades regionais da América Latina e com a leitura de que os evangelhos devem ser direcionados para os pobres e não para os ricos, ou seja, a corrente teológica cristã parte do principio de que sendo a preferência dos evangelhos pelos pobres, deve utilizar outras ciências, como a sociologia e a antropologia, para a consecução de seus fins.

A teologia perdeu força, notadamente a partir da década de 90, com o envelhecimento ou falecimento de seus idealizadores, como Leonardo Boff (que se desligou da igreja, mas não deixou sua luta), Dom Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Pedro Casaldáliga e Dom Oscar Romero. Todos dispostos a evangelizar sem colonialismo, e promoção da defesa dos direitos humanos dos mais pobres.

Felizmente a Teologia da Libertação tem voltado com potência e pujança, devido às ações humanitárias e sociais do Papa Francisco.


O protesto e o vinil

Vim de longe vou mais longe

Quem tem fé vai me esperar

Escrevendo numa conta

Pra junto a gente cobrar

No dia que já vem vindo

Que esse mundo vai virar

(Aroeira, Geraldo Vandré, 1967).

Zé Ramalho, expoente das canções nordestinas, invoca nas letras de suas músicas a luta do homem do campo. Em Admirável Gado Novo, conduz o texto de forma parabolicamente, na medida em que compara agricultores a um rebanho conduzido pelo homem dono do capital. Em outra, A Peleja do Diabo com o Dono do Céu, Ramalho retrata com base no maniqueísmo de José Saramago (O Evangelho Segundo Jesus Cristo), a exploração dos fazendeiros, os donos das terras: Cobiçam a terra e toda riqueza, do reino dos homens e dos animais.

Geraldo Vandré, outro nordestino, foi além. É conhecido no Brasil como o maior ícone da música de protesto, contrária ao estado de exceção, implantado no Brasil pelo golpe militar de 1964. Vandré cantou o homem do campo, em prosa retratou sua luta, seus sonhos de libertação. Em 1966, a música Disparada, ganhou o Festival da Música Popular Brasileira, na voz do iniciante Jair Rodrigues, e foi aplaudidíssima no Maracanãzinho[14]. A música (que expõe de forma clara a inteligência de Vandré) faz dura crítica, em tom de protesto acerca da impossibilidade de Jango[15] continuar no poder: Boiadeiro muito tempo, laço firme e braço forte. Muito gado, muita gente, pela vida segurei. Seguia como num sonho, e boiadeiro era um rei. Mas o mundo foi rodando, nas patas do meu cavalo. E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando[16]. As visões de clareando, até que um dia acordei. A música ainda entoa versos que invocam um país sem um governante eleito pelo povo, ou seja, sem o aval e a vontade popular[17].

Em outra apresentação no 2º Festival Internacional da Canção Popular, em 1968, com a música Prá não dizer que não falei das flores, Vandré ficou em 2º lugar e começou sua apresentação dizendo que o prêmio (1º lugar) era merecido por Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque de Hollanda, com a música Sabiá. A humildade de Vandré foi vaiada e ele refutou dizendo: a vida não se resume em festivais. A música de Vandré era a preferida do público e após cantá-la, foi ovacionado.

A música ficou gravada nos anais da música popular brasileira MPB, como o hino de protesto no Brasil contra a ditadura militar e atualmente é invocada para retratar as imposições do governo de Michel Temer[18]. Alguns a consideram como a Marselhesa brasileira, pelo seu conteúdo e rica musicalidade.

O ano de 1968 foi marcado por vários protestos e acontecimentos ao redor do mundo, dos quais destacamos o fim da Primavera de Praga, início da Guerra do Vietnã, as Barricadas de Paris, o assassinato de Martin Luther King e Roberto Kennedy. No Brasil, em 13 de dezembro de 1968, foi editado o Ato Institucional n. 5 pelo General Costa e Silva (na função de presidente do Brasil), a maior expressão do regime de exceção instaurado pelos militares em 1964. O AI-5 fechou o Congresso Nacional e impôs uma série de medidas restritivas às liberdades dos brasileiros, usurpando o estado democrático e social de direitos.

As manifestações em 1968 no Brasil, em repúdio ao golpe militar, intensificaram-se após o assassinato do estudante Edson Luís, no mês de março. Em 29 de setembro do mesmo ano, Vandré apresentava sua música ao Brasil e com ela conclamava os brasileiros para a luta armada: Vem vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora não espera acontecer, e dando ênfase ao movimento estudantil: E acreditam nas flores[19] vencendo o canhão.

Com o AI-5, Vandré foi obrigado a exilar-se (sic). No entanto (e é como acreditamos) Vandré foi duramente torturado pelo regime militar. A ditadura no Brasil matou o gênio, que hoje, apesar de vivo, não é mais o mesmo. Contudo, e para tristeza dos traidores da pátria, Vandré estará sempre à frente de manifestos em defesa da liberdade e dos direitos humanos no Brasil.

A música de Vandré, que em 1968 era propagada através do disco de vinil, hoje está mais presente do que nunca. Apesar de ter sido duramente censurada logo após seu lançamento (sendo liberada muito tempo depois, em 1979), Pra não dizer que não falei das flores, continuará sendo cantada, mesmo que as flores venham de fato a vencer os canhões, porque além de música de protesto, é uma verdadeira obra de arte musical.

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O Monumento Jumento

Ainda no período ditatorial do Brasil, em Santana do Ipanema[20], uma cidade do interior do Estado de Alagoas e que faz parte do sertão brasileiro, foi inaugurado em 6 de março de 1969, o Monumento do Jumento, pelo então prefeito Adeildo Nepomuceno Marques. Concomitantemente, também foi inaugurado na cidade o sistema de abastecimento dágua. Com o novo sistema, o Monumento do Jumento ficou conhecido como a intenção do prefeito de lembrar os cidadãos santanenses, sobre o nascimento da cidade, que contou com o apoio crucial dos jumentos e seus tangedores. Mas não é somente essa vontade que entendemos estar por detrás da investida de Marques.

O Monumento Jumento, composto por duas estátuas, a do jegue (jumento) e do seu tangedor (Candinho), representa a luta do homem sertanejo pela água nos períodos da seca. O jegue com ancoretas em seu lombo ilustra a dificuldade em abastecer de água as casas. A água até então era buscada no Rio Ipanema e transportada para consumo nas costas do animal.

Para quem conhece um pouco da história de Adeildo Marques, poderá conjecturar que o mesmo não pensou no Monumento do Jumento apenas como uma manifestação simplória. Marques foi prefeito de Santana de Ipanema por três legislaturas (de 1951 a 1955, de 1966 a 1969 e de 1973 a 1977), deputado estadual e apontado como chefe do Sindicato da Morte na região, uma sociedade de institucionalização dos crimes de mando, cometidos por jagunços e quebra-facas. De vida política intensa, representando interesses dos coronéis, foi brutalmente assassinado com sete facadas (os executores erraram os disparos de arma de fogo), em 28 de janeiro de 1978, deixando viúva sua terceira esposa, Anete, e uma filha de apenas dois meses, de nome Sara.

Pouco se tem de relatos escritos sobre as ações de Marques como político. Contudo, não podemos negar sua origem sertaneja e sua grande influência política na região. Seu irmão, Aguinaldo Nepomuceno Marques, foi historiado com mais profundidade.

Aguinaldo contribuiu para a redução da mortalidade infantil, um dos programas de seu irmão Adeildo, quando prefeito de Santana do Ipanema. Foi autor de diversos livros, dentre os quais, Fundamentos do Nacionalismo (São Paulo, Fulgor, 1960), De que morre o povo brasileiro? (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963) e Origens e trajetórias do socialismo (Rio de Janeiro, BIZ, 1995). Os seus livros, suas ideias e suas ações acabaram por provocar a ira do regime militar, uma vez que se portava nitidamente, contrário ao regime de exceção e era adepto ao socialismo.

Por sua vez, o pai de Adeildo e Aguinaldo, Joel Marques, foi um homem que desagradou políticos de expressão na região do nordeste brasileiro, e ainda na década de 30, foi uma pessoa preocupada com o meio ambiente e atuou de forma incisa contra todos aqueles que desrespeitassem as leis trabalhistas, tendo o mandato de prefeito cassado pelo Estado Novo.

Fazendo uma digressão das premissas não nos parece falacioso afirmar que Adeildo, apesar da fama de ser um homem violento, por vezes inescrupuloso, era um homem preocupado com seu povo e com o progresso da região.

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Sobre a autora
Rosana Colen Moreno

Rosana Cólen Moreno. Procuradora do Estado de Alagoas. Membro da Confederação Latino-americana de trabalhadores estatais (CLATE). Especialista em previdência pública pela Damásio Educacional e em direitos humanos pela PUC/RS (em finalização). Autora do livro Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção, publicado pela LTr. Coordenadora da Comissão Internacional Avaliadora instituída pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO-UNESCO) e denominada “Desigualdades, Exclusão e Crises de Sustentabilidade dos Sistemas Previdenciários da América Latina e Caribe. Educadora, Professora, Instrutora, Palestrante, Consultora. Participante do programa de doutorado em Direito Constitucional pela Universidad de Buenos Aires – UBA. Especialista em Regimes Próprios de Previdência (Damásio Educacional). Autora do livro: Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORENO, Rosana Colen. O Direito como arte: o jumento como uma síntese de vários movimentos e expressões sociais, na luta pela liberdade do povo nordestino. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6772, 15 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95952. Acesso em: 25 abr. 2024.

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