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A inversão do ônus da prova nas relações de consumo:

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15/03/2007 às 00:00
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O ÔNUS DA PROVA NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

Buscando equilibrar as forças entre os fornecedores e os consumidores, almejando extirpar do mercado práticas e condutas lesivas, o CDC soergueu um vasto leque de normas e de princípios jurídicos que devem nortear as relações de consumo.

Todo esse esforço, no âmbito do direito material, veio acompanhado de normas que viabilizam sua efetivação em juízo.

O legislador, em mais de um momento, se preocupou, especificamente, com a tutela jurisdicional dos direitos dos consumidores, assentando, no rol em que averbou os direitos básicos, no inciso VIII, do artigo 6º, como instrumento de facilitação da defesa dos seus interesses, a possibilidade de inversão ope iudicies do ônus da prova, quando presentes os requisitos autorizadores, que serão, um pouco mais adiante, enfrentados.

Se a relação jurídica de direito material levada à apreciação do Judiciário comportar submissão às normas do Código de Defesa do Consumidor, caberá ao juiz, apreciar ser devida ou não a aplicabilidade da disposição contida no artigo 6º, do inciso VIII.

E a possibilidade de inversão do ônus da prova, em sede de demandas que versem sobre relações de consumo, funda-se na constatação de que o consumidor, na atual sociedade massificada, na grande maioria das vezes, quando ameaçado ou lesado em seus direitos, não possui condição técnica ou material de provar os fatos que lhe incumbe demonstrar em juízo.

O desequilíbrio de forças econômicas e negociais existente nas relações de consumo guarda reflexos na seara processual.

É nesse quadro, desfavorável ao consumidor, que o CDC, através da possibilidade de inversão do ônus da prova, pretende viabilizar o equilíbrio de forças no plano processual, atento à circunstância de que o fornecedor está em melhores condições para realizar a prova de fato ligado à sua atividade.

E, com o ato de inversão, os fatos veiculados pelo consumidor passam a desfrutar de uma presunção relativa de veracidade que apenas será afastada por eventual prova negativa produzida pelo fornecedor.

Mas, não se trata de uma hipótese de inversão ope legis do ônus da prova, e, sim, sujeita ao crivo judicial, que aferirá, caso a caso, a presença dos requisitos autorizadores.

Quando não restarem presentes os requisitos legais, admoesta o mestre Humberto Theodoro Júnior, "a faculdade judicial não pode ser manejada em favor do consumidor, sob pena de configurar-se ato abusivo, com quebra do devido processo legal". [15]

Desta feita, quando ausentes os requisitos exigidos para que se proceda à inversão do ônus da prova, incidirão as regras ordinárias do Código de Processo Civil.

Haverá, por exemplo, necessidade do consumidor provar o nexo de causalidade entre o produto, o evento danoso e o dano, para pleitear qualquer indenização por acidente de consumo.

Ademais, vale trazer à baila a advertência do celebrado processualista paulista Cândido Rangel Dinamarco, segundo o qual:

Nem todas as provas podem ter o seu encargo invertido. Evidente que somente aquelas provas que estejam no âmbito técnico do fornecedor poderão ser atribuídas a ele. [16]

Em relação aos fatos cujas provas não se insiram no âmbito técnico do fornecedor, não há lugar para a inversão do onus probandi.

Sendo assim, a mesma não se justifica em causas cujo objeto probatório esteja desligado de circunstâncias técnicas, científicas ou operacionais do produto ou serviço.

Ocorre, no entanto, que mesmo após ter completado 16 (dezesseis) anos de vigência, no dia 11/09/2006, muitas controvérsias ainda reinam, tanto em ambiente forense, quanto em ambiente acadêmico, em torno da disciplina deitada no inciso VIII, de seu artigo 6º, que dão causa a calorosos debates.

Então, tendo por escopo a boa utilização desse importante instrumento, de facilitação da defesa dos direitos do consumidor, em juízo, imperativo que sejam estudados todos os seus contornos, o que se passará a fazer.


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A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NO CDC

Autoriza o supracitado inciso VIII, do artigo 6º do CDC, a inversão do ônus da prova, em favor do consumidor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências.

Mexe-se com a tradicional regra do artigo 333 do Código de Processo Civil, onde se estabelece competir ao autor provar o fato constitutivo do direito que alega e, ao réu o fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

Como, então, se interpretar a norma especial do Código de Defesa do Consumidor, autorizadora da inversão do onus probandi, permitindo a sua transferência para o fornecedor de produtos e serviços, mesmo quando este seja réu?

A primeira observação a ser feita diz respeito ao fato de que somente se admite a inversão do ônus da prova a favor do consumidor, reconhecida a sua vulnerabilidade - artigo 4º, inciso I -, não sendo possível, em conseqüência, determiná-la para beneficiar o fornecedor.

"Na verdade, somente haverá inversão do ônus da prova segundo a posição processual que esteja a ocupar quem é beneficiado pela regra". [17]Absolutamente coerente, no particular, foi o legislador, ao apenas admitir a possibilidade de inversão do ônus da prova, em favor do consumidor.

Ao se partir do pressuposto da fraqueza manifesta do consumidor no mercado, justificando lhe serem conferidos instrumentos processuais para melhor se defender, seria um completo absurdo até mesmo se excogitar da possibilidade de se proceder à inversão do onus probandi em favor do fornecedor.

A preocupação do legislador foi tamanha que veio a considerar no inciso VI, do artigo 51, nula qualquer cláusula contratual que estabeleça a inversão desse ônus em prejuízo do consumidor.

Em segundo lugar, entendendo a inversão como medida extraordinária e não como norma geral, automaticamente observável, em todo e qualquer processo que verse sobre relação de consumo. [18]

Isso, antes tudo, por que a inversão do onus probandi se revela absolutamente dispensável sempre que o julgador formar sua convicção, ao valorar as provas que sejam produzidas no processo.

Ademais, a simples leitura do dispositivo legal em tela, externa, e com solar clareza, que, apenas quando presentes os requisitos autorizadores, há lugar para a inversão do ônus da prova.

Assim, já veio a se manifestar o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, nos seguintes termos:

A chamada inversão do ônus da prova, no Código de Defesa do Consumidor, está no contexto da facilitação da defesa dos direitos do consumidor... Isso quer dizer que não é automática a inversão do ônus da prova. Ela depende de circunstâncias concretas que serão apuradas pelo juiz no contexto da facilitação dos direitos do consumidor. [19]

Deve-se ter plena consciência se tratar, o instituto em cerne, de uma das mais notáveis mudanças do Direito em nosso tempo, na linha da crescente atribuição de poderes ao juiz.

O mecanismo da inversão do ônus da prova apenas deverá ser aplicado quando seja necessário para soerguer, concretamente, um idealizado equilíbrio processual entre consumidor e fornecedor.

Não deve ser sumariamente aplicado, gerando um novo desequilíbrio na relação entre as partes, a tal ponto de atribuir ao fornecedor um encargo absurdo e insuscetível de desempenho.

Sob pretexto algum, poderá ser um mecanismo de impor um ônus impossível de se provar.

Até mesmo por que, a própria Lei 8.078/1990, em seu artigo 4º, inciso III, lança o ideal de equilíbrio, nas relações negociais entre os consumidores e os fornecedores, não sendo seu escopo consagrar um execrável privilégio.

Pensar de forma diferente representaria gritante violência ao princípio da paridade de armas, que se enlaça com o vetor constitucional da igualdade das partes perante a lei, que brota do caput do artigo 5º, da Carta Republicana de 1988.

Não se desconhece a moderna concepção de isonomia, que nos remete à noção de igualar os iguais e desigualar os desiguais, na proporção dessa desigualdade.

Tanto assim, que não se ousa, nesse despretensioso artigo, questionar a constitucionalidade da possibilidade de inversão do ônus da prova, sempre que presentes os requisitos autorizadores, que revelam, no caso concreto, um desequilíbrio processual entre as partes.

Reconhece-se que essa constitucionalidade veio a se pacificar em nossa melhor doutrina, sendo inclusive referendada, com razão, por mestres de inquestionável autoridade intelectual, como, v.g., Nelson Nery Junior. [20]

O que se afirma é que, a mesma não se legitima quando, no caso concreto, já existir um equilíbrio processual entre as partes.

A proteção ao consumidor não pode se transformar numa empreitada contra as empresas, em que, mesmo em demandas absurdas, a resolução se opere à luz da inversão do onus probandi, empregada de maneira a inviabilizar a defesa do fornecedor.

Isso por que, "de um modo geral, ao impor a uma das partes o ônus da prova, o juiz determina vitória da outra". [21]

Por mais que se concorde com a urgente necessidade de se extirpar do mercado de consumo toda sorte de condutas lesivas e abusivas que inúmeras empresas "se especializam" em praticar, tal não pode servir de paliativo para se atropelar a garantia da ampla defesa, sem a qual afigura-se impossível sequer se excogitar, ao menos com serenidade, de segurança jurídico-processual.

Dissertando sobre a finalidade da norma que prevê a inversão do onus probandi, valioso o magistério do professor Carlos Roberto Barbosa Moreira, nos seguintes termos:

A finalidade da norma é de facilitar a defesa dos direitos do consumidor e não a de assegurar-lhe a vitória, ao preço elevado do sacrifício do direito de defesa, que ao fornecedor se deve proporcionar. [22]

O que não se pode, data máxima venia, é se tolerar a proliferação de decisões judiciais nas quais, os julgadores, logo após reconhecerem que o consumidor nada provou, julgam procedentes suas ações, afirmando que, tendo em vista a inversão, o ônus da prova passa a ser dos fornecedores, mesmo em hipóteses em que flagrantemente estejam ausentes os requisitos autorizadores.


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OS REQUISITOS EXIGIDOS PARA A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA

O legislador ao admitir que o consumidor seja, via de regra, o elo mais fraco do mercado, incluiu, como aventado, no rol das medidas protetoras, a possibilidade de inversão judicial do ônus da prova, quando for constatada a verossimilhança de sua alegação ou a sua hipossuficiência, mesmo diante da oposição de setores da doutrina, que consideram tais critérios inadequados. [23]

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Passa-se, então, ao exame dos pressupostos expressamente exigidos em lei, para a sua adoção in concreto.


07

A VEROSSIMILHANÇA DAS ALEGAÇÕES

Quanto à verossimilhança, o primeiro aspecto é averbar que se trata de um conceito jurídico indeterminado.

Depende, pois, de avaliação objetiva, caso a caso, combinada com a aplicação de regras e máximas de experiência, para o pronunciamento judicial.

O vocábulo verossímil significa o que é semelhante à verdade, o que tem aparência de verdade, o que não repugna a verdade, enfim, o provável.

Mas, para a sua avaliação, não é suficiente, mister que se grife, a boa redação da petição inicial, por não se confundir com o bom uso da técnica de argumentação de que muitos profissionais desfrutam.

Não basta que o quod plerumque fir chancele a possibilidade de ser verídica a alegação do consumidor.

Nessa marcha, já se manifestou o Colendo Tribunal de Justiça de São Paulo, nos seguintes termos:

É necessário que o autor leve ao magistrado um mínimo de demonstração no sentido de que sua alegação é verossímil. Que ofereça elementos, ou dados, ou indícios quaisquer que, em confronto com a narração das circunstâncias de que dá conta a inicial, que, em cotejo com a descrição dos fatos que consubstanciam o direito controvertido, possam, a priori, indiciar, apontar, sugerir, induzir um quê de verdade. [24]

A verossimilhança das alegações diz respeito, então, ao convencimento do magistrado a ser elaborado em conformidade com os fatos invocados em petição inicial.

O juízo da verossimilhança ou não da alegação passa necessariamente pelo exame que o magistrado faz da afirmação, segundo a ótica filtrada pelas regras gerais e ordinárias da experiência comum.

Na lição de José Eduardo Carreira Alvim, a "verossimilhança somente se configurará quando a prova apontar para uma probabilidade muito grande de que sejam verdadeiras as alegações do litigante". [25]

Não obstante essa noção ser absolutamente exata, para fins de análise de preenchimento dos requisitos necessários para o deferimento de uma tutela antecipada, contexto em que foi defendida, pelo mencionado processualista, parece-nos ser extremada para fins de inversão do ônus da prova.

Uma alegação torna-se verossímil, para fins de apreciação da questão da inversão do onus probandi, sempre que venha a adquirir contornos de veracidade, por se tornar aceitável diante da modalidade de relação de consumo posta em juízo, não ensejando o convencimento de que possa ser descabida, em sede de cognição sumária.

Primando pela técnica, Luis Guilherme Marinoni disseca a questão, nos termos que se passa a expor:

Essa convicção de verossimilhança é claro, não se confunde com a convicção de verossimilhança da tutela antecipatória, pois não é uma convicção fundada em parcela das provas que ainda podem ser feitas no processo, mas, sim, uma convicção fundada nas provas que puderam ser realizadas no processo, e que, diante da natureza da relação de direito material, devem ser consideradas suficientes para fazer crer que o direito pertença ao consumidor. [26]

Em verdade, essa convicção de verossimilhança nada mais é do que a convicção derivada da redução das exigências de prova.

Afirma-se, com brilhantismo, que o julgador, "com a ajuda de máximas de experiência e de regras da vida, considera produzida a prova que incumbe a uma das partes" [27], que "apenas poderá ser derrubada se a outra demonstrar o contrário" [28], pelo que sequer haveria, aqui, uma verdadeira inversão do ônus da prova.

Assim, pela verossimilhança se extrai o que se pode chamar de verdade provável, que, tendo em mente a redução das exigências de prova, em favor do consumidor, haja vista as características das relações de consumo, passa a ser considerada como uma verdade suficientemente provada, que apenas poderá ser derrubada por eventual prova que seja produzida, no processo, como matéria de defesa, pelo fornecedor.

Permissível se concluir, então, com apoio em afamado mestre de nosso processo civil, que "a verossimilhança é o juízo de probabilidade extraída de material probatório de feitio indiciário, do qual se consegue formar a opinião de ser provavelmente verdadeira a versão do consumidor". [29]

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Sobre o autor
Alexandre Costa de Araújo

advogado no Rio de Janeiro (RJ), especialista em Direito do Consumidor pela Universidade Cândido Mendes.especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Cãndido mendes e Membro Honorário da Academia Brasileira de Direito Processual Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Alexandre Costa. A inversão do ônus da prova nas relações de consumo:: aonde vamos?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1352, 15 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9601. Acesso em: 18 abr. 2024.

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