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A inversão do ônus da prova nas relações de consumo:

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15/03/2007 às 00:00
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08

A HIPOSSUFICIÊNCIA

Quanto a hipossuficiência, trata-se da impotência do consumidor para apurar e demonstrar a causa do dano cuja responsabilidade é imputada ao fornecedor.

Inicialmente, é preciso se afirmar que a mesma não é jurídica, não sendo presumida, como se existente em toda e qualquer relação de consumo.

Não se confunde com a vulnerabilidade do consumidor, que é presumida no artigo 4º, inciso I, do CDC, mas não autoriza a inversão do ônus da prova.

Para que a mesma seja considerada configurada, é necessário que haja um plus.

Decorre de uma característica pessoal da parte, necessitando de análise em cada caso concreto, dependendo de comprovação.

Sem razão, ao nosso sentir, aqueles que, em doutrina, defendem que o consumidor já chegue ao processo desfrutando dessa qualidade que apenas poderia ser elidida por eventual prova em contrário produzida pelo fornecedor, em matéria de defesa. [30]

Esse requisito pressupõe uma situação em que, concretamente, se estabeleça uma dificuldade muito grande para o consumidor de desincumbir-se de seu natural onus probandi, estando o fornecedor em melhores condições para esclarecer o evento danoso.

Quanto ao significado da expressão hipossuficência, mesmo na doutrina mais autorizada vozes se levantam para defender que lhe seja aplicável o conceito constante no artigo 2º da Lei 1.060/1950, como chegou a sustentar, v.g., o insigne professor Kazuo Watanabe. [31]

Pretende-se emprestar uma conotação econômica à expressão ora enfrentada. [32]

Mas, ao nosso sentir, com as devidas vênias, tal posição afigura-se completamente equivocada.

A questão, para fins de inversão do ônus da prova, não pode ser vista como forma de proteção à parte mais pobre, até mesmo por que, produção de prova diz respeito ao direito processual, enquanto que a condição econômica do consumidor diz respeito ao direito material.

Para proteger o consumidor economicamente carente, existe, sempre, a possibilidade de lhe ser deferido o benefício da gratuidade de justiça, que implica em isenção de pagamento de custas e demais despesas processuais, sem que se especule da necessidade de inversão do ônus da prova.

Combatemos até mesmo a concepção mista defendida pelo admirável mestre mineiro Humberto Theodoro Júnior, que, claramente, sustenta que deva ser observada tanto a impotência econômica quanto a impotência técnica. [33]

A expressão deve merecer interpretação restritiva e puramente técnica nitidamente ligada ao aspecto cultural (lato sensu), sem qualquer significação econômica.

O legislador, claramente, se referiu à impotência do consumidor num contexto atrelado ao monopólio de informação. [34]

Impotência do consumidor, no caso concreto, diante de uma assimetria de informações.

O que se perquire é se existe ou não o desconhecimento técnico e informativo, sobre o produto e o serviço, quanto aos aspectos que podem ter gerado o acidente de consumo, as características do vício etc.

Não em outro sentido, vem decidindo o E. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, nos seguintes termos:

A inversão prevista no CODECON não diz respeito a hipossuficiência econômica, mas sim à probatória, porque casos há em que isso se afigura muito difícil para o consumidor, sendo mais fácil para o fornecedor a sua produção... [35]

Trata-se, em essência, da invencível dificuldade que impede o acesso à obtenção de informações nas quais estaria consubstanciada a prova do direito alegado.

Aqui, segundo doutrina, com absoluta razão, laureado processualista paranaense, deve-se vislumbrar uma hipótese de impotência técnica apenas quando restar configurada "a impossibilidade de prova ou de esclarecimento da relação de causalidade trazida ao consumidor pela violação de uma norma que lhe dá proteção, por parte do fabricante". [36]

Sempre que o consumidor for uma pessoa esclarecida e bem informada, ciente do defeito do produto ou da causa do seu prejuízo, inclusive com acesso aos meios de provas necessários à demonstração do(s) fato(s) que alega, não há lugar para a inversão do ônus da prova, sob pena de quebra do devido processo legal.

Assim, o excerto de jurisprudência que ora se traz a baila:

Mesmo caracterizada a relação de consumo, o ônus da prova só é de ser invertido quando a parte requerente tiver dificuldades para a demonstração de seu direito dentro do que estabelecem a regras processuais comuns, ditadas pelo artigo 333... [37]

Apenas será legítima a inversão do onus probandi, quando os pólos da relação processual se encontrarem em posições que não sejam isonômicas.

Ressalte-se, no entanto, que a inversão, com fundamento na impotência técnica do consumidor, apenas poderá ocorrer quando existir real possibilidade probatória de parte do fornecedor. [38]

Vale dizer, não se justifica o decreto de inversão do ônus da prova, quando se queira imputar ao fornecedor, com o mesmo, a prova de um ou mais fatos que, de per si, sejam impossíveis de se provar, sob o risco de lhe impor a sucumbência, o que colidiria com o dogma constitucional da ampla defesa.


09

PRESSUPOSTOS LEGAIS ALTERNATIVOS OU CUMULATIVOS?

A leitura do inciso VIII do artigo 6º da Lei 8.078/1990 propõe a seguinte questão: a inversão do ônus da prova exige a verossimilhança da alegação e a hipossuficiência do consumidor ou apenas um desses elementos?

A dicção normativa haveria de ser interpretada como aglutinativa ou como alternativa?

Prevalece em nossa doutrina, a concepção de que, para o decreto de inversão, seja exigível apenas um ou outro requisito, sob o argumento de que a própria interpretação gramatical impõe essa conclusão.

E como o legislador restringiu, não seria lícito ao intérprete ampliar.

Nesse sentido, o magistério dos eminentes Humberto Theodoro Júnior [39], Kazuo Watanabe [40], Marcelo Abelha Rodrigues [41] e Cláudia Lima Marques. [42]

Em sede pretoriana, o E. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro também vem encampando esse entendimento, como se extrai do excerto que ora se transcreve:

Agravo de Instrumento. Rito Sumário. Relação de Consumo. Comprovada a hipossuficiência da agravante, habilita-se esta a obter a facilitação da defesa dos seus direitos mediante a inversão do ônus da prova, nos termos do artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor que não exige para a obtenção da vantagem, a cumulação do requisito da verossimilhança com o requisito da hipossuficiência, bastando a presença de um só deles, indiferentemente... [43]

Refletindo sobre esses argumentos, se afiguram, realmente, razoáveis.

Senão, vejamos:

Em sendo verossímil a versão do consumidor e considerando a redução da carga probatória que se lhe é exigida, restará suficientemente provada a sua pretensão, que apenas poderá ser derrubada por robusta prova contrária que seja produzida pelo fornecedor, como matéria de defesa.

Pelo que, não seria necessária a presença cumulativa do requisito da impotência técnica do consumidor.

De outro lado, sempre que estiver presente uma invencível dificuldade que impeça, ao consumidor, o acesso à obtenção de informações nas quais esteja consubstanciada a prova do direito pelo mesmo alegado, ter-se-á, por equânime a inversão do ônus da prova.

Isso, haja vista, inclusive, a aplicação, no processo, da teoria do risco do empreendimento que pesa sobre o fornecedor, que, por se tratar do pólo mais forte da relação de consumo, dispõe de melhores condições de provar ao julgador da causa a verdade dos acontecimentos.

Mas, como aventado, a questão está longe de ser pacífica.

A doutrina minoritária, encabeçada pela erudição intelectual de Cândido Rangel Dinamarco [44] exige, para o decreto de inversão, a presença cumulativa de ambos os requisitos deitados no inciso VIII, do artigo 6º, do CDC.

Concepção que encontra amparo em boa sede jurisprudencial, como se observa do excerto que ora se transcreve:

Apelação Cível. Indenizatória. Cerceamento de Defesa. Não ocorrência. Inversão do Ônus da Prova. Ausência de Requisitos. Improcedência. Sentença correta. A inversão do ônus da prova de acordo com o artigo 6º, inciso VIII do CDC fica subordinada ao critério do julgador, quanto às condições de verossimilhança das alegações e de hipossuficiência, segundo as normas de experiência e de exame fáticos dos autos. O que não ocorreu neste caso. Desprovimento do recurso. [45]

E isto, porque, segundo argumentam os seus defensores, somente a conjugação dos 02 (dois) requisitos soerguidos pelo legislador seria capaz de revelar, no campo do processo, a efetiva desigualdade das partes, que justifica a inversão do ônus, para que ambas tenham as mesmas oportunidades dentro da lide. [46]

A leitura nominal do comando legal seria inconstitucional, pelo que, para salvá-lo, se defende uma interpretação aproximativa. [47]

De nossa parte, reconhecendo a viabilidade dessas duas linhas de pensamento, que são igualmente defensáveis, projetamos as causas em que, mesmo restando presente o requisito da hipossuficiência do consumidor, sua versão venha a ser, prima facie, temerária.

Não nos parecem meramente teóricas essas hipóteses em que, havendo relação de consumo, reste caracterizada a impotência técnica do consumidor, mas sua versão seja náufraga ou mesmo contraditória, pela própria narrativa deitada em peça vestibular.

Ademais, se o consumidor invocar, na peça inicial, como causa de pedir, fatos indefinidos, que, obviamente, não terá como provar, não poderá se valer do mecanismo da inversão do ônus da prova, mesmo que, concretamente, haja uma assimetria de informações.

Em tais circunstâncias, ainda que, na prática, se revelem absolutamente excepcionais, a inversão do ônus da prova acabaria por inviabilizar a defesa do fornecedor, que não teria a possibilidade de demonstrar a não existência do fato constitutivo.

Nesses casos, o que se terá, com o decreto judicial de inversão do fardo probatório, é a imposição de uma perda e não apenas a transferência de um ônus.

Pelo que, mais razoável se adotar a seguinte interpretação: sempre que restar demonstrada a verossimilhança, a inversão deverá ser efetivada [48].

Mas, ainda quando se constatar a impotência técnica do consumidor, o juiz deverá aferir a seriedade de suas alegações, que deverão ser lastradas por material probatório de feitio indiciário, sob pena do decreto de inversão se revelar abusivo.

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Até mesmo por que, a interpretação de leis é obra de raciocínio, mas também de sabedoria e de bom senso, não podendo o intérprete ater-se exclusivamente aos vocábulos, mas, sim, aferir os princípios que informam as normas positivadas.

Assim, apenas o caso concreto poderá revelar serem exigíveis, para a inversão do ônus da prova, a presença cumulativa ou alternativa dos requisitos autorizadores.


10

O MOMENTO PROCESSUAL DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA

A necessidade de prévio anúncio, pelo juiz, às partes, da inversão do onus probandi constitui questão controvertida, que tem provocado valorosos debates.

Existem, claramente, três grandes correntes de pensamento, sobre o tema.

Os majoritários, liderados pelos mestres paulistas Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, partindo da premissa de que não haja momento para o juiz fixar o ônus da prova ou sua inversão, por não se tratar de regra de procedimento e, sim, de regra de juízo, defendem que a sentença, e não antes, seja o momento adequado para a aplicação da regra. [49]

E isso por que, argumentam esses, somente após a instrução do feito, no momento da valoração da prova, estaria o juiz habilitado a afirmar se existe ou não situação de non liquet, sendo caso ou não, conseqüentemente, de inversão do ônus da prova. [50]

Sustenta-se que o fornecedor não poderá alegar cerceamento de defesa por já saber, de antemão, desde o início da demanda de consumo, quais são as regras do jogo, tendo que provar tudo o que estiver ao seu alcance e for de seu interesse.

Mas, essa interpretação recebe forte resistência do maior processualista brasileiro, um dos primeiros do mundo, que não admite que o momento próprio para o juiz proceder à inversão do ônus da prova seja a sentença. [51]

Prestigioso processualista gaúcho bem resume a crítica:

Dizer que a parte pode prever a inversão do ônus da prova, sempre que fundada a ação em relação de consumo implica negação do caráter judicial dessa inversão. O Código de Proteção e Defesa do Consumidor é expresso: a inversão ocorre a critério do juiz que, portanto, pode determiná-la ou não. Não é de se supor que a lei haja imposto à parte o ônus adicional de adivinhar o critério que o juiz ou tribunal irá adotar na sentença ou no acórdão. [52]

De outro lado, "se o ônus da prova é uma regra do juízo, já não se pode dizer o mesmo da norma que prevê a sua inversão, que é eminentemente uma regra de atividade". [53]

Ao nosso sentir, realmente, a inversão, quando procedida em sentença, surpreende a defesa, ofende, frontalmente, ao princípio do contraditório, e, ainda que de forma reflexa, à ampla defesa, não se sustentando, pois.

O devido processo legal exige que as regras do processo a ser julgado sejam previamente conhecidas pelas partes, não podendo ser alteradas no curso do procedimento em prejuízo para qualquer uma delas.

Uma segunda corrente admite a inversão do ônus da prova ab initio, quando o juiz analisa a petição inicial, sob o argumento central de que, assim, o réu, ao ser citado, será, igualmente, intimado da inversão, que poderá inclusive ser alvejada pelo recurso de agravo, sem qualquer violência aos princípios da ampla defesa e do contraditório.

Nesse sentido, merece destaque o magistério do professor João Batista de Almeida. [54]

Entendimento esse que enfrenta a dura oposição de Humberto Theodoro Júnior, segundo o qual, "antes da contestação, nem mesmo se sabe quais fatos serão controvertidos e terão, por isso, de se submeter à prova", tornando-se, "então, prematuro o expediente do artigo 6º, inciso VIII, do CDC". [55]

Ao nosso sentir, no entanto, os argumentos contrários não se revelam suficientemente fortes para elidir a viabilidade da inversão do ônus probandi nesse momento processual, visto que, v.g., as medidas de urgência que exigem, no mínimo, a fumaça do bom direito, podem ser deferidas ab initio sem que tais providências se revelem abusivas.

O que se deve aferir, caso a caso, é se os requisitos autorizadores se fazem presentes em concreto.

Sempre que a resposta for positiva, nenhum óbice há para que a inversão seja decretada, com acerto, pelo julgador.

Finalmente, uma terceira corrente, que tem em suas fileiras, v.g., nomes como o de Voltaire de Lima Moraes [56], e que vem ganhando fôlego, defende que o momento adequado para a inversão do ônus da prova seja por ocasião do saneamento do processo, quando serão fixados, pelo juiz, quais sejam os pontos controvertidos.

Sustenta-se que, nesse momento, já foi instaurado o contraditório, já tendo o juiz elementos suficientes para aferir a presença dos requisitos legais, sem que se venha, ademais, se surpreender à defesa.

Reconhecemos ser esse o melhor momento para a inversão do ônus da prova, visto o feito já estar maduro, sem que, com isso, enxerguemos óbice, como já averbado, para a sua efetivação, ab initio, apenas quando a peça vestibular vier acompanhada de material probatório de feitio indiciário, além de permitir ao juízo aferir eventual impotência técnica do consumidor, o que, na praxe forense, não é algo assim tão raro.

Concluímos então, considerando ser cabível, a inversão do ônus da prova, entre o momento em que o juiz aprecia a peça vestibular e o despacho saneador.

Mas, em sede de feitos que tramitem perante aos Juizados Especiais Cíveis, tendo em vista a disciplina deitada nos artigos 28 e 33, ambos da Lei 9.099/1995, que consagram o princípio da concentração dos atos processuais, as provas serão produzidas na audiência de instrução e julgamento, momento procedimental em que a atividade de saneamento ocorrerá.

Pelo que, nessa sede, a inversão do ônus da prova, acaso não seja deferida ab initio, quando o juiz estiver a analisar a inicial, deverá ser feita, com fundamento no artigo 29 da Lei 9.099/1995, em sede de audiência de instrução e julgamento, a qual deverá ser fracionada [57], para prosseguimento em data próxima [58], facultando-se ao fornecedor a possibilidade de produzir as provas decorrentes desse seu novo ônus, sob pena de se revelar abusiva. [59]

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Sobre o autor
Alexandre Costa de Araújo

advogado no Rio de Janeiro (RJ), especialista em Direito do Consumidor pela Universidade Cândido Mendes.especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Cãndido mendes e Membro Honorário da Academia Brasileira de Direito Processual Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Alexandre Costa. A inversão do ônus da prova nas relações de consumo:: aonde vamos?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1352, 15 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9601. Acesso em: 19 abr. 2024.

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