DA COMPETÊNCIA/ATRIBUIÇÃO APÓS A LEI N.º 14.155/21.
A Lei n.º 14.155/2021, de 27 de maio de 2021, promoveu alterações no CP com o fim de tornar mais grave os crimes de violação de dispositivo informático, furto e estelionato cometidos de forma eletrônica ou pela internet e no CPP para definir a competência em modalidades do crime de estelionato.
Para a finalidade do presente artigo, faz-se necessário citar as alterações promovidas pela Lei de Crimes Cibernéticos, em especial a inserção do §2º-A do Artigo 171 do CP (Fraude Eletrônica) e do §4 do Art. 70 do CPP, que estabelecem, respectivamente, uma forma qualificada do crime de estelionato e uma regra de competência, senão vejamos:
Fraude eletrônica
§ 2º-A. A pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se a fraude é cometida com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo.
§ 4º Nos crimes previstos no art. 171 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), quando praticados mediante depósito, mediante emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado ou com o pagamento frustrado ou mediante transferência de valores, a competência será definida pelo local do domicílio da vítima, e, em caso de pluralidade de vítimas, a competência firmar-se-á pela prevenção. (COMO CITAR? NÃO ESQUECER DE INSERIR ABAIXO).
O §2-A do Art. 171 do CP estabelece uma forma qualificada do crime de estelionato. Com o nomen iuris de fraude eletrônica a nova previsão recrudesce a pena do caput, reclusão de 1 a 5 anos, para o patamar de reclusão de 4 a 8 anos.
Essa qualificadora pretende abarcar os estelionatos cometidos através das redes sociais, por meio de contatos telefônicos, envio de correios eletrônicos ou qualquer outro meio fraudulento análogo (ex: criação de sites falsos). Essa inovação legislativa pretende desestimular a utilização de canais de tecnologia no cometimento do delito, fato que cresceu drasticamente nos últimos anos, conforme abordado.
Nas palavras de Márcio Alberto Gomes Silva (2021, 227), competência pode ser definida como a medida de jurisdição, entendida como poder dever estatal de aplicar o direito objetivo ao caso concreto apresentado, com o fito de estabelecer a paz social abalada pelo conflito de interesses.
Até o advento do §4 do Art. 70 do CPP, o crime de estelionato mediante depósitos/transferências bancárias, aplicava o entendimento jurisprudencial majoritário do STJ, que entendia que o local de consumação dessa prática delitógena era o lugar de consumação da infração, ou seja, correspondia a circunscrição da agência bancária beneficiária.
Contudo, com a inserção dessa alteração, houve uma verdadeira reação legislativa, também denominada Ativismo Congressual ou Efeito Backslash, na regra de estabelecimento de competência do crime de estelionato praticado mediante depósito, emissão de cheques sem previsão de fundos ou com pagamento frustrado ou mediante transferência de valores, que deixou de ser o local da agência beneficiária do pagamento realizado (Informativo 663 STJ) e passou a ser, necessariamente, o local do domicílio da vítima e, em caso de pluralidade de vítimas, firmar-se-á pela prevenção.
Ora, com o advento da Lei de Crimes Cibernéticos, cai por terra toda a construção jurisprudencial realizada pela Corte da Cidadania, devendo ser aplicado a vontade do legislador ordinário que, sem dúvida, oferece uma comodidade a vítima de estelionato desse tipo de modalidade, que estará mais próxima da unidade policial com circunscrição para a apuração do fato. Mas será que isso é interessante para a investigação e futura ação penal? Será que especialistas da área, em especial, Delegados de Polícia foram instados a se manifestar sobre essa importante alteração legislativa? Será que as dificuldades investigatórias foram levadas em consideração na hora de prever essa nova regra de competência que caminha na contramão do entendimento jurisprudencial dominante?
DOS PONTOS POSITIVOS E NEGATIVOS DA INOVAÇÃO LEGISLATIVA
Para Joaquim Leitão Júnior (2022, 08), o delegado de polícia é:
Como se sabe, na moderna concepção investigativa, o Delegado de Polícia é o presidente da investigação e não tem interesse em atuar, em prol da parte investigada (suspeito/acusado/investigado) e nem em prol do Ministério Público (dominis littis), mas sim de buscar a verdade possível (antiga verdade real), com seus reflexos
A autoridade policial, sem dúvida, é um importante ator no cenário jurídico atual. Por ser o presidente das investigações conduzidas pela Polícia Judiciária, também conhecida como Polícia Investigativa, cabe ao Delegado de Polícia conduzir todas as investigações do Estado Investigação, fornecendo ao dominus da ação penal, Ministério Público, nos casos de ação penal pública incondicionada ou condicionada a representação e ao particular, nos casos de ação penal privada, elementos informativos que são fundamentais na futura ação penal correspondente.
Essa peculiar autoridade possui a missão precípua de presidir o inquérito policial e outros procedimentos investigativos que, nas palavras de Márcio Alberto Gomes Silva (CPP para carreiras policiais) correspondem a instrumentos hábeis à elucidação de fato supostamente criminoso e a coleta de elementos de convicção suficientes para a deflagração de um futuro processo penal (2021, 53).
Para Nestor Távora e Romar Rodrigues Alencar (CPP para carreiras policiais), com a ocorrência da infração é salutar que se investigue com o fito de colidir elementos que demonstrem a autoria e a materialidade do delito, viabilizando-se o início da ação penal (2021, 53).
Ora, o crime de estelionato passou a ser condicionado a representação da vítima, alterando a natureza da sua ação penal, que passou a ser pública condicionada com o advento da Lei n.º 13.964/2019. Assim, havendo representação criminal da vítima, ou seja, o preenchimento da condição de procedibilidade para a instauração de inquérito policial e prosseguimento da futura ação penal, cabe a Autoridade Policial, ou seja, ao Delegado de Polícia instaurar inquérito policial para apurar o cometimento do crime e identificar a sua autoria a fim de possibilitar elementos para uma futura punição estatal através da ação penal respectiva.
Ditas tais palavras, a alteração promovida pela Lei dos Crimes Cibernéticos, especificamente a inserção do §4 do art. 70 do CPP, que criou uma nova regra de competência e, por consequência, modificou a circunscrição policial de atuação investigatória dos Delegados de Polícia, constituiu uma verdadeira reviravolta na condução de procedimentos investigatórios pelas Polícias Judiciárias do Estado Brasileiro.
Como explicitado, antes da alteração legal, aplicava-se o entendimento jurisprudencial do STJ, que reconhecia a competência (atribuição investigativa), nos crimes de estelionato mediante depósitos/transferências bancárias, ao local da agência beneficiária da transação, fato que mudou drasticamente com a novel alteração legislativa que impõe como competente a área do domicílio da vítima.
Conforme já citado, essa alteração corresponde, sem dúvida, a uma maior facilidade de cobrança por parte da vítima, que após o registro da ocorrência, poderá, a qualquer momento, se deslocar até a unidade policial responsável, com o fim de cobrar providências em relação a investigação do crime a qual foi padecedor.
Contudo, tal alteração, prejudicou em muito, o objetivo principal de qualquer investigação promovida pela Polícia Judiciária, qual seja, angariar elementos informativos que comprovem a materialidade delitiva e identifiquem a autoria criminosa. Ora, na grande maioria dos casos, os beneficiários das contas utilizadas para depósitos/transferências bancárias residem em outras cidades/estados, distantes milhares de quilômetros da residência da vítima, fato que prejudica de forma significativa a condução das investigações.
A frase a vítima não se esconde, o investigado sim, corresponde a uma verdade no desenrolar de investigações de estelionatos. Tais criminosos correspondem a parcela mais inteligente e astuta do cenário delitógeno. A utilização de contas de laranja para o recebimento de valores, o uso de linhas telefônicas ativadas em nome de terceiros, a criação de sites falsos com impossibilidade de rastreio, entre outras técnicas, torna a investigação do crime de estelionato um dos mais desafiadores para a Polícia Judiciária.
Somado a isso, a distância física entre a unidade policial e o local de apuração do fato, no caso, agência recebedora do depósito/transferência bancária, provável local de residência do golpista, torna ainda mais difícil esse trabalho investigativo.
É claro que a autoridade policial poderá contar com a utilização de uma importante ferramenta no cumprimento de diligências que devem ser efetuadas em outras cidades/estado, qual seja, a carta precatória. Contudo, a realidade, infelizmente, é mais temerária que no mundo da teoria. No universo de cobranças que consomem a Autoridade Policial o cumprimento de cartas precatórias de outros lugares acaba tendo uma atenção pouco prioritária, que somada a escassez de profissionais, resta por prejudicar o andamento das investigações policias dos crimes de estelionato.
DA CONCLUSÃO
Assim, frente aos argumentos apresentados, entendo que a alteração de competência promovida pela Lei de Crimes Cibernéticos, especificamente, o §4 do art. 70 do CPP, apesar de oferecer uma maior comodidade para a vítima, corresponde a um retrocesso para a apuração do crime de estelionato mediante depósitos/transferências bancárias, fato que poderá prejudicar as ações penais de tais crimes e culminar na impunidade de golpistas.
A alteração legislativa não contou com o auxílio técnico necessário na sua confecção, se assim tivesse ocorrido, sopesaria o já consolidado entendimento jurisprudencial do STJ sobre a matéria, bem como levaria em consideração, entidades de classe que representam a figura do Delegado de Polícia, importante protagonista na elucidação de práticas criminosas.
Por fim, a alteração legislativa, como dito, prejudicou em muito a investigação desse tipo de estelionato, conforme as justificativas já expostas, fato que resultará na impunidade e, ao contrário do objetivo da lei, poderá intensificar o cometimento de tais delitos frente as dificuldades enfrentadas para a investigação de tais crimes.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 14.155, de 27 de maio de 2021. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14155.htm. Acesso em 11 de janeiro de 2021, às 08h04min.
CUNHA, Rogério. Código Penal para concursos. Salvador, BA:JusPodivm, 2021.
ESTELIONATOS aumentam mais de 200% na cidade de São Paulo em 2021. G1 São Paulo, São Paulo, 23 out. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/10/23/estelionatos-aumentam-mais-de-200percent-na-capital-em-2021.ghtml
ESTELIONATÁRIOS que levam vida de luxo são presos em São Paulo. Portal R7, São Paulo, 01 set. 2020. Disponível em: https://noticias.r7.com/sao-paulo/estelionatarios-que-levavam-vida-de-luxo-sao-presos-em-sp-01092020.
JÚNIOR, Joaquim. Da capacidade postulatória ou da capacidade de representação do delegado de polícia. Revista Sindepol, nº 8, vol. 1, janeiro/2022.
NEDEL, Christian. Manual dos delitos para concursos policiais. Salvador, BA:JusPodivm, 2020.
NÚMERO de golpes no Rio Grande do Norte triplica em 2021. Tribuna do Norte, Natal, 10 dez. 2021. Disponível em: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/naomero-de-golpes-no-rio-grande-do-norte-triplica-em-2021/527311.
PEREIRA, Emanuela de Araújo. A fraude eletrônica à luz da Lei nº 14.155. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6561, 18 jun. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91226. Acesso em: 11 jan. 2022.
SILVA, Márcio. Processo Penal para carreiras policiais. Salvador, BA:JusPodivm, 2021.
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA - CC: 167025. RS 2019/0201970-6, Relator: Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Data de Julgamento: 14/08/2019, S3 - TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 28/08/2019 RSDPPP vol. 119 p. 126. 2019a.
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA - CC: 169053. DF 2019/0317771-7, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento: 11/12/2019, S3 - TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 19/12/2019, 2019b.