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Fármacos experimentais: termo final do estudo clínico e a contradição da Anvisa

16/02/2022 às 09:20
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Todas as vacinas contra a covid-19 aplicadas atualmente no Brasil estão sendo ainda avaliadas por estudos clínicos. Pra onde foram as normas da própria Anvisa?

Os produtos farmacêuticos em desenvolvimento nos estudos clínicos têm recebido especial atenção nos últimos anos, especialmente em razão das demandas judiciais que envolvem pedidos para que o Sistema Único de Saúde SUS custeie o fornecimento de medicamentos não registrados pela Anvisa ou medicamentos que, embora registrados, tenham sido aprovados pela Anvisa para finalidades diversas daquelas pretendidas pelos autores – o chamado uso off label.

Em razão dessa necessidade jurídica de delimitação das fases do estudo clínico para que se possa indicar o seu efetivo termo final, tendo em vista a possibilidade de rejeição judicial de pedidos relacionados ao fornecimento de tratamentos experimentais, faz-se necessário analisar algumas normas administrativas expedidas pela Anvisa em um passado recente.

Inicialmente, registre-se que os estudos clínicos possuem quatro fases bem delimitadas, como demonstra a definição do Instituto Butantan, em esclarecimento na sua página virtual sobre como ocorrem os processos de registro das vacinas desenvolvidas por essa instituição[1], sendo destacado pelo ente que somente após a finalização do estudo de fase III e obtenção do registro sanitário é que a nova vacina poderá ser disponibilizada para a população.

De acordo com a autora Letícia Alonso[2] (2018, p. 95)

Os tratamentos são considerados experimentais tanto na fase pré-clínica quanto na maior parte da fase clínica, tornando-se um medicamento aprovado/novo apenas na fase IV, quando já ocorreram os testes em humanos e já está ocorrendo a comercialização .

Em face da pandemia de COVID-19, no entanto, a Anvisa admitiu a necessidade de mitigar parcialmente a exigência de finalização do estudo de fase 3 como pré-requisito para a concessão do registro.

Em 03/02/2021, a Anvisa anunciou uma atualização no guia de uso emergencial de vacinas (Guia n.º 42/2020) que facilitou o procedimento de registro das vacinas contra a COVID-19, divulgada pela imprensa sob o título Anvisa retira exigência de estudo em fase 3 para vacina contra COVID-19[3]. As alterações promovidas pela Anvisa na mencionada data envolveram diversos ajustes no Guia n.º 42/2020[4], sendo incluída até mesmo uma previsão de que os documentos previstos poderiam deixar de ser apresentados, desde que previamente discutidos com a Anvisa e justificados com dados e evidências, sendo dispensada a obrigatoriedade de ensaio clínico de fase 3 em andamento e em condução no Brasil.

Com as alterações realizadas pela Anvisa em fevereiro de 2021 no Guia n.º 42/2020, as vacinas contra a COVID-19 passaram então a ser aceitas pela agência, uma vez considerados preenchidos os requisitos mínimos para submissão de solicitação de autorização temporária de uso emergencial, em caráter experimental, de vacinas COVID-19, como indicado no título do mencionado guia.[5]

Retornando à sequência lógica desenvolvida anteriormente, tem-se, então, que a regra até o ano de 2020 era de que os registros somente poderiam ser concedidos pela Anvisa após a conclusão dos estudos clínicos. Em razão desse fato, era possível afirmar que o registro da Anvisa equivalia de fato à conclusão do período experimental. Em outras palavras, um produto registrado pela Anvisa era um produto cuja avaliação de eficácia e segurança já havia sido plenamente comprovada nas três primeiras fases do seu estudo clínico.

Mas isso mudou após a pandemia de COVID-19.

A partir do momento em que a Anvisa mitigou as regras para permitir a aprovação das vacinas contra a COVID-19, permitindo inclusive a postergação da conclusão da fase 3, deixou de existir a máxima de que o registro concedido pela Anvisa equivaleria a um selo de conclusão bem-sucedida dos estudos clínicos de determinado fármaco, não sendo possível aplicar mais esse axioma ao menos não em relação às vacinas contra a COVID-19 que passaram pelo crivo da agência, havendo uma tendência para que essa nova modalidade de avaliação seja incorporada pela Anvisa para todos os demais tratamentos.

Não sendo mais válido o uso da aprovação pela Anvisa como fator de comprovação de que determinado fármaco não estaria mais sendo avaliado em estudos clínicos, deve-se buscar então na fonte a norma que presuma com maior grau de confiabilidade qual seria o marco que definiria o termo final de um estudo clínico, e essa norma consiste justamente na Resolução da Diretoria Colegiada RDC n.º 9, de 20 de fevereiro de 2015[6], expedida pela Anvisa.

Na mencionada RDC/Anvisa n.º 09/2015, artigo 6.º, inciso XIV, há a definição de Data de Término do Ensaio Clínico - corresponde à data da última visita do último participante do ensaio clínico no mundo ou outra definição do patrocinador, determinada expressamente, no protocolo específico do ensaio clínico.

Nesse mesmo artigo 6.º há a definição, no inciso XXXI, do que seria Medicamento experimental produto farmacêutico em teste, objeto do DDCM, a ser utilizado no ensaio clínico, com a finalidade de se obter informações para o seu registro ou pós-registro.

Portanto, com a derrogada do axioma de que o registro concedido pela Anvisa seria a prova de que determinado fármaco não seria mais experimental, e de acordo com as definições da própria Anvisa transcritas acima, tem-se que o termo final de um estudo clínico corresponde à data da última visita do último participante de ensaio clínico ou outra definição do patrocinador, determinada expressamente no protocolo específico de ensaio clínico, sendo considerado experimental o fármaco até que seja definitivamente concluída a fase 4 do estudo, uma vez que até mesmo a fase de pós-registro é considerada ainda experimental, pois há o acompanhamento dos usuários no pós-venda.

Registre-se, por oportuno, que a RDC n.º 09/2015, embora tenha sido publicada há mais de 6 (seis) anos, não se encontra desatualizada, tendo inclusive sofrido pequenas alterações já no curso da pandemia de COVID-19, a exemplo da Resolução RDC/Anvisa n.º 449, de 15 de dezembro de 2020, que alterou os artigos 3.º, 38 e 71[7]. Portanto, caso a pandemia de COVID-19 houvesse alterado também os antigos conceitos determinados pela Anvisa em RDC´s anteriores, certamente teria havido alteração das definições conferidas pelo art. 6.º da RDC n.º 09/2015.

Observa-se também que a Anvisa, na Instrução Normativa n.º 45, de 21 de agosto de 2019[8], além de haver repetido o conceito de medicamento experimental atribuído pelo art. 6.º da RDC n.º 09/2015, acrescentou ainda uma nova definição, estendendo esse conceito aos fármacos que, embora registrados, utilizem uma forma diferente da registrada, sendo possível até mesmo concluir que essa definição incluiria o fármaco que, estando ainda em estudo clínico, teve a sua fórmula alterada após o registro (como no caso da vacina contra a COVID-19 da Pfizer, que já sofreu 15 alterações de adjuvantes, todas autorizadas pela Anvisa, e obteve a aprovação da inclusão de versão infantil com fórmula diferente daquela indicada no registro concedido em fevereiro de 2021, como se se tratasse de mera extensão do registro original):

XI - medicamento experimental: produto farmacêutico em teste, objeto do Dossiê de Desenvolvimento Clínico de Medicamento (DDCM), a ser utilizado no ensaio clínico, com a finalidade de se obter informações para o seu registro ou pós-registro; ou Forma farmacêutica de uma substância ativa ou placebo testada ou utilizada como referência em um ensaio clínico, incluindo um produto com registro quando utilizado ou montado (formulado ou embalado) de uma forma diferente da registrada, ou quando utilizado para uma indicação não registrada, ou quando usado para obter mais informações sobre a forma registrada.

É possível confirmar que todas vacinas contra a COVID-19 em distribuição no Brasil ainda se encontram na Fase 3 dos estudos, tendo sido aprovadas pela Anvisa apenas em caráter condicional inclusive aquelas que já obtiveram o registro, uma vez que suas fabricantes permanecem obrigadas a enviar frequentes relatórios para a Agência, possuindo data final designada para que se demonstre a eficácia e a segurança de seus fármacos até lá. As próprias fabricantes informam no Clinical Trials que a conclusão dos estudos clínicos ainda irá demorar:

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A própria Anvisa expõe em sua página virtual a situação de todos os fármacos e vacinas relacionados à pandemia de COVID-19, evidenciando que estão todos nas fases 1, 2 ou 3. Em tabela denominada Lista dos Ensaios Clínicos com medicamentos para prevenção ou tratamento da COVID-19 autorizados pela Anvisa[9], atualizada até 10/09/2021, constam 114 (cento e quatorze) fármacos e vacinas em acompanhamento pela Anvisa, sendo listadas as seguintes informações quanto às vacinas: a) Comirnaty/Pfizer protocolos C4591001 (fases 1/2/3, término em 15/05/2023, conforme o link indicado na tabela[10]), C4591015 (fases 2/3, término em 06/2022), C4591031 (fase 3, sem previsão de término) e C4591024 (fase 2B, término em 01/2023); b) Oxford/AstraZeneca protocolo COV003 (fase 3, término em 31/03/2023, conforme o link indicado na tabela[11]); c) Janssen-Cilag/Johnson&Johnson protocolos VAC31518 COV3001 (término em 03/2023), VAC31518 COV2004 (fase 2, término em 06/2023), VAC31518 COV3009 (fase 3, término em 05/2023), VAC31518 COV3006 (fases 2/3 sem previsão de término) e VAC31518 COV3003 (fase 3, término em 02/2023) e d) Coronavac/Instituto Butantan protocolo COV-02-IB (fase 3, término em 02/2022, conforme o link indicado na tabela[12].

Por todo exposto, é inegável o fato de que todas as vacinas contra a COVID-19 aplicadas atualmente no Brasil estão sendo ainda avaliadas por estudos clínicos.

Considerando-se o conceito de que um fármaco sob estudo clínico seria aquele ainda com participantes sendo avaliados até a fase de pós-registro, e tendo em vista a definição de que estudos clínicos ainda em andamento seriam considerados pela própria Anvisa como medicamentos experimentais, por serem produtos farmacêuticos em teste (RDC n.º 09/2015, art. 6.º, inciso XXXI), a conclusão lógica é de que as vacinas contra a COVID-19 aplicadas no Brasil são, ao menos até fevereiro de 2022, fármacos experimentais.

Toda essa aparente redundância na argumentação tem uma razão de ser: apesar de haver definido todos os conceitos acima de modo cristalino, a Anvisa tem afirmado, no entanto, que nenhuma das vacinas contra a COVID-19 aplicadas no Brasil seria experimental.

Na Nota Técnica n.º 496/2021/SEI/GGMED/DIRE2/ANVISA, de 23 de dezembro de 2021[13], a Anvisa afirma que as vacinas contra COVID-19 autorizadas no Brasil não são experimentais, tendo todas cumprido com as etapas de desenvolvimento clínico completo. Mas como isso seria possível, se nenhum dos estudos clínicos conduzidos até o momento apresentou os dados finais, conclusivos, da fase 3 e concluiu o acompanhamento da fase pós-registro prevista na Instrução Normativa n.º 45, de 21 de agosto de 2019 para que os fármacos deixem de ser experimentais?

Para que não reste nenhuma dúvida sobre a situação acima relatada, destaca-se que nenhum dos países que distribuem os fármacos em questão consideram que seus estudos clínicos estejam concluídos. Nos Estados Unidos, apenas a título de exemplo, os pais de crianças e adolescentes aptos a receber a vacina Comirnaty/Pfizer são informados no momento da vacinação que o produto é ainda experimental e que os riscos são desconhecidos até o momento, motivo pelo qual são expressamente comunicados de que não são obrigados a vacinar-se, podendo rejeitar a vacinação caso desejem. Como se trata do mesmo produto aplicado no Brasil, é necessário ressaltar esse ponto.

Desconhece-se com que embasamento a Anvisa esteja agora negando a sua própria legislação a respeito de fármacos com estudos clínicos em condução, sendo preocupante, para as demandas relativas ao Direito de Saúde, essa contradição evidente entre a normativa de farmacovigilância da Anvisa e as manifestações da Agência acerca de fármacos específicos, sendo necessário que haja uma correção dessa contradição, uma vez que a jurisprudência pátria tem se posicionado no sentido de não permitir que o SUS seja obrigado a fornecer judicialmente fármacos considerados experimentais.


Notas

  1. https://butantan.gov.br/pesquisa/ensaios-clinicos (acesso em 02/02/2022).
  2. ALONSO, Letícia. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE: Custeio dos Tratamentos Experimentais pelo Estado. Juiz de Fora: KDP, 2018. ISBN 978-17-2302-852-6.
  3. Anvisa retira exigência de estudo em fase 3 para vacina contra Covid-19 | CNN Brasil. Disponível em: 30 jan. 2022.
  4. https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2021/atualizado-guia-de-uso-emergencial-de-vacinas-confira. Disponível em: 30 jan. 2022.
  5. guia-sobre-os-requisitos-minimos-para-submissao-de-solicitacao-de-autorizacao-temporaria-de-uso-emergencial-em-carater-experimental-de-vacinas-covid-19 (www.gov.br). Disponível em: 30 jan. 2022.
  6. http://antigo.anvisa.gov.br/documents/10181/3503972/RDC_09_2015_COMP.pdf/e26e9a44-9cf4-4b30-95bc-feb39e1bacc6
  7. https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-rdc-n-449-de-15-de-dezembro-de-2020-294648964
  8. https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-in-n-45-de-21-de-agosto-de-2019-211914031
  9. https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/medicamentos/pesquisaclinica/arquivos/ensaios-clinicos-covid.pdf
  10. https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT04368728?term=NCT04368728&draw=2&rank=1. Disponível em: 30 jan. 2022.
  11. https://www.isrctn.com/ISRCTN89951424?q=cov003&filters=&sort=&offset=1&totalResults=1&page=1&pageSize=10&searchType=basic-search. Disponível em: 30 jan. 2022.
  12. https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT04456595?term=COV-02-IB&draw=2&rank=1. Disponível em: 30 jan. 2022.
  13. https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2021/anvisa-responde-em-nota-tecnica-questionamentos-enviados-a-agencia-por-grupo-de-medicos/sei_anvisa-1721596-nota-tecnica-496.pdf. Disponível em: 30 jan. 2022.
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Sobre a autora
Vivian Marassi

Bacharela em Direito pela UFRN, Especialista em Direito Tributário pelo IBET, servidora do Judiciário Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARASSI, Vivian. Fármacos experimentais: termo final do estudo clínico e a contradição da Anvisa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6804, 16 fev. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96306. Acesso em: 29 mar. 2024.

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