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O Provedor de Justiça em Moçambique

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23/03/2022 às 14:25
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Órgão de natureza Singular

O Provedor de Justiça exerce as suas funções e emite as suas recomendações e pareceres sem dependência de um poder deliberativo prévio provindo de um determinado quórum.

A natureza singular do Provedor de Justiça deve ser entendida em contraposição à natureza colectiva que caracteriza por exemplo, órgãos como a Assembleia da República, que, nas decisões para a eleição do Provedor de Justiça e nas decisões de aprovação de leis e monções, necessita de reunir um certo quórum deliberativo.

Trata-se de um órgão singular que, diferentemente do que sucede com outros órgãos singulares com idoneidade constitucional, funciona sem estar sustentando em um outro órgão de substrato colegial. Veja-se que, por exemplo, o Presidente da Assembleia da República, é um órgão de natureza singular mas assente em um órgão de base colegial, a Assembleia da República, sendo que, algumas das suas competências se traduzem na presidência do órgão colegial no procedimento de tomada de decisões, e ainda, é incumbido da função de representação do órgão que preside, de acordo com o estabelecido nas alíneas a) e e) do artigo 190 da Constituição.

O Governador de Província e o Administrador de Distrito, são outros órgãos singulares com idoneidade constitucional, assentes em outros órgãos de substrato colegial, respectivamente, o Conselho Executivo Provincial vide o nº 1 do artigo 279 e o Conselho Executivo Distrital vide o nº 1 do artigo 283, ambos da Constituição.

Atento à função contida no artigo 255 e às competências elencadas no artigo 258 da Constituição e mesmo recorrendo à perquirição das normas de organização e funcionamento do Provedor de Justiça, aprovadas pela Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto, com fundamento no artigo 260 da Constituição, resulta comprovado que o Provedor de Justiça e um órgão excelentemente singular desprovido de suporte em outro órgão de substrato colegial.


Órgão de Assessoria da Administração Pública

Examinando a Constituição da República de Moçambique, constata-se que o órgão Provedor de Justiça está enquadrado no Capítulo III do Título XII, sob epígrafe Administração Pública, Polícia e Provedor de Justiça.

Não há dúvidas que a Administração Pública integra vários órgãos de natureza administrativa, caracterizados essencialmente pelo exercício de actividades de gestão pública através da prática de actos administrativos. Temos como exemplo, as Autarquias Locais que, pelo disposto no artigo 286 da Constituição, prenuncia ser uma pessoa colectiva pública, dotada de órgãos representativos próprio. Enfatizando, o legislador constituinte, através da disposição do artigo 289 do mesmo dispositivo legal atrás referenciado, descrimina os três órgãos das autarquias locais, nomeadamente, uma Assembleia Autárquica com poderes deliberativos; um Conselho Autárquico e um Presidente do Conselho Autárquico, com poderes executivos.

Nos órgãos de governação descentralizada Provincial e Distrital, se destacam os artigos 277 e 281, igualmente da Constituição, que alistam como órgãos, respectivamente para cada um destes níveis, a Assembleia Provincial, o Governador de Província e Conselho Executivo Provincial e ainda, a Assembleia Distrital, o Administrador de Distrito e o Conselho Executivo Distrital.

A Polícia da República de Moçambique é um serviço público, apartidário, de natureza paramilitar, integrado no Ministério que superintende a área da ordem e segurança pública[20], tendo como missão garantir a lei e a ordem, a salvaguarda da segurança de pessoas e bens, a tranquilidade pública, o respeito pelo Estado de Direito democrático e a observância estrita dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.

Denota-se que o Provedor de Justiça não é um órgão de natureza administrativa, embora, como todos os órgãos do Estado, tem funções mínimas de natureza administrativa. Não é um órgão de natureza paramilitar, pois as suas competências não fazem parte e nem completam a acção militar, como sucede com a Polícia da República de Moçambique.

Da perquirição de suas competências feita nos números precedentes, constatou-se igualmente que o Provedor de Justiça em Moçambique não exerce funções de natureza legislativa e nem de natureza judicial. Exerce, no entanto, funções de assessoria da Administração Pública, através da emissão de recomendações não vinculativas.

Neste sentido, porque de forma efectiva a Constituição não conceitua e nem o caracteriza como tal, tomando como critério de fundamentação, as funções acometidas, se pode concluir que o Provedor de Justiça é um órgão de assessoria da Administração Pública.


Órgão para-judicial

O provedor de Justiça no ordenamento jurídico moçambicano é, na essência dos seus privilégios concernentes às imunidades, direitos e regalias e ainda, porque o exercício das suas funções se encontra protegido pelos princípios da independência e da inamovibilidade, um órgão para-judicial, posto que goza actua como se de um magistrado se tratasse, faltando-lhe nesta vertente, apenas o poder de tomar decisões revestidas de carácter vinculativo.


Acção do Provedor de Justiça na Actividade Forense

A Ciência Forense é genericamente vista como a aplicação de um conjunto de técnicas científicas para responder a questões relacionadas ao Direito, podendo se aplicar a crimes ou actos civis e/ou administrativos. O esclarecimento de factos com relevância jurídica é tido com sendo a função de destaque da prática forense.

Recapitulando o conteúdo do artigo 255 da Constituição da República de Moçambique, o Provedor de Justiça é um órgão do Estado imbuído da função de agir no propósito de garantir os direitos dos cidadãos, a defesa da legalidade e da justiça, na actuação da Administração Pública.

Outrossim, o Provedor de Justiça em Moçambique, tem-se debruçado igualmente sobre a persistente falta de colaboração dos Tribunais, no que respeita à actividade jurisdicional, suportando a sua actuação nesse âmbito, com base na disposição do nº 1 do artigo 26 da Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto, que impõe de um modo geral, sobre o dever de colaboração de todas as Autoridades Públicas.

É amostra desse facto, o relato contido no Informe retro citado, nas suas páginas 11 e 12, nos termos do qual se refere que:

No tocante à esta parte do grau de colaboração dos órgãos dos poderes e seus titulares, notou-se um retrocesso em relação às respostas aos pedidos dos cidadãos sobre a morosidade processual que reina nos tribunais e procuradorias, desde que se entendeu que o Provedor de Justiça não deveria encaminhá-los, directamente aos tribunais ou procuradorias, mas sim para os Conselhos Superiores da Magistratura Judicial, da Magistratura Judicial Administrativa e da Magistratura do Ministério Público, órgãos de gestão e disciplina dos magistrados, que se responsabilizariam pelo envio aos tribunais ou procuradorias em causa, para finalmente, estes responderem directamente aos cidadãos com conhecimento que deveria ser dado ao Provedor de Justiça através dos respectivos órgãos de gestão e disciplina dos magistrados. (destacamos).

Dos mapas de pedidos aos Conselhos Superiores da Magistratura Judicial, da Magistratura Judicial Administrativa e da Magistratura do Ministério Público, que veremos mais adiante, conclui-se pela existência de pedidos de informação aos tribunais comuns e administrativos de todos os níveis e das procuradorias da Cidade de Maputo e do Distrito da Machava, de que não se obtém resposta, há mais de dois anos, um ano e meio, oito meses, etc., mesmo com pedidos de insistência.

E mais, o quadro nº 7 do acima referenciado Informe Anual do Provedor de Justiça à Assembleia da República, sob epígrafe Instituições Demandadas, enuncia a existência de 57 (cinquenta e sete) Tribunais e 08 (oito) Procuradorias em demanda, no período compreendido ente os meses de Abril de 2016 e Março de 2017.

No âmbito dos processos judiciais, o Informe é mais incisivo quando aborda sobre o direito à justiça, ao referir que no período acima indicado, foram abertos 51 processos relacionados com a morosidade processual nos tribunais nacionais. Considera ainda que do total dos processos abertos pelo Provedor de Justiça, 8 (oito) incidiam directamente sobre conteúdos de decisões judiciais, razão pela qual mereceram despacho de indeferimento liminar, por força do disposto no n.º 3, do artigo 18, da Lei n.º 7/2006, de 16 de Agosto.

Como estratégia discursiva para encontrar legitimidade da sua actuação no âmbito judicial, realça o Informe que o Provedor de Justiça solicita informações dos tribunais e das procuradorias relativos aos atrasos processuais, através dos Conselhos Superiores da Magistratura Judicial, da Magistratura Judicial Administrativa e da Magistratura do Ministério Público, órgãos de gestão e disciplina dos magistrados, para respondê-las directamente, mas com o conhecimento do Provedor de Justiça, o que não ocorre com frequência, como pode-se ver do rol de pedidos de informações dirigidos ao Conselho Superior da Magistratura Judicial, ao Conselho Superior da Magistratura Judicial Administrativa e ao Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público.

Para conferir robustez ao Informe, foram apresentadas três tabelas constantes nas páginas 21, 22 e 23. A primeira é referente aos Pedidos dirigidos ao Conselho Superior da Magistratura Judicial; a segunda respeita aos pedidos dirigidos ao Conselho Superior da Magistratura Judicial Administrativa, e a terceira concerne aos pedidos dirigidos ao Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público.

Conclui o Informe que, para além da conformação com os atrasos processuais, alguns dos referidos tribunais e procuradorias posicionam-se com manifesto desinteresse em prestar informações que os particulares lhes solicitam, o que contraria o princípio deles colaborarem com os particulares (vide artigo 8, das Normas de Funcionamento dos Serviços da Administração Pública, aprovadas pelo Decreto n.º 30/2001, de 14 de Outubro, bem como o princípio do dever de colaboração com o Provedor de Justiça (vide artigo 26, da Lei n.º 7/2006, de 16 de Agosto).

Seja questionando directamente aos Tribunais e Procuradorias, como indirectamente sobre a actividade jurisdicional, por via dos Conselhos Superiores das Magistraturas Judicial, Judicial Administrativa e do Ministério Público, tal actuação não encontra amparo quer na Constituição como na lei, por não integrar as competências do Provedor de Justiça.

No entanto, impõe-se que a norma do nº 1 do artigo 26 da Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto, retro citada, que tem sido considerada pelo Provedor de Justiça para realizar incursões fiscalizadoras junto dos Tribunais em matéria judicial, seja interpretada e aplica conforme a Constituição, no sentido de que as autoridades públicas aí consideradas são unicamente aquelas da Administração Pública, com expressa exclusão das autoridades de natureza judicial, quando se trata de questões igualmente judiciais.

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Aliás, da interpretação sistemática do conteúdo do nº 1 acima citado, com o conteúdo dos nºs 2 e 3 do mesmo artigo, e considerando o carácter imperativo do princípio da independência que que regra geral caracteriza a acção dos magistrados, conclui-se que ser de Constitucionalidade duvidosa, pretender que o Provedor de Justiça, por via directa ou indirecta tome acção no questionamento da actividade jurisdicional dos magistrados.

É, por conseguinte, questionável a constitucionalidade e legalidade da intervenção nesse âmbito, se se tomar em consideração que a actuação do Provedor de Justiça está limitada à acção da Administração Pública, como tempestivamente demonstrado.


Valor Jurídico das Recomendações do Provedor de Justiça

A abordagem feita nos pontos precedentes permitiu concluir que o Provedor de Justiça é um órgão de natureza singular; de assessoria à Administração Pública e para-judicial.

Questionar o valor jurídico das recomendações do Provedor de Justiça traduz a necessidade de compreender se as referidas recomendações vinculam ou não o seu destinatário.

Entende-se por recomendações vinculativas, aquelas que devem ser acatadas pelo respectivo destinatário sob pena de imposição de consequências imanentes à omissão do dever de obediência.

A título exemplificativo, no ordenamento jurídico moçambicano vigoram as denominadas Instruções de Execução Obrigatória, no âmbito de processos sujeitos à fiscalização do Tribunal Administrativo, aprovados pelo Despacho nº 06/GP/TA/2008, de 02 de Julho, do Venerando Presidente do Tribunal Administrativo. Por exemplo, o artigo 9 das mencionadas Instruções dispõe sobre informação de cabimento de verba, impondo que:

1. A informação sobre cabimento de verba, necessária à verificação da cobertura orçamental da despesa resultante do acto ou contrato a visar deve ser exarada no documento a submeter a visto e no respectivo duplicado.

2. Tal informação conterá:

a) A indicação da rubrica orçamental pela qual será suportada a despesa e do ano a que respeita o orçamento;

b) A referência à dotação global da referida rubrica, do saldo disponível antes da assunção dos encargos emergentes do acto ou contrato a visar;

c) A data, a assinatura e a identificação do funcionário responsável pela informação.

O incumprimento das normas contidas nas instruções de execução obrigatória importa a denegação da pretensão contida no processo, através da recusa do Visto, por exemplo, por aplicação do disposto na alínea b) do artigo 77 da Lei nº 14/2014, de 14 de Agosto, republicada pela Lei nº 8/2015, de 6 de Outubro.

Decorre destas Instruções efeitos imanentes ao seu descumprimento, nomeadamente, a improcedência da pretensão da Administração Pública, podendo ainda culminar com a aplicação de sanções por infracção financeira.

Recorrendo ao Direito comparado, o Código do Procedimento Administrativo português, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015 - Diário da República n.º 4/2015, Série I de 2015-01-07, através do Capítulo VII - Dos pareceres, Artigo 91 - Espécies de pareceres, determina que:

1 - Os pareceres são obrigatórios ou facultativos, consoante sejam ou não exigidos por lei, e são vinculativos ou não vinculativos, conforme as respectivas conclusões tenham ou não de ser seguidas pelo órgão competente para a decisão.

2 - Salvo disposição expressa em contrário, os pareceres legalmente previstos consideram-se obrigatórios e não vinculativos.

O regime adoptado pelo legislador moçambicano em matéria das competências do Provedor de Justiça, excluiu a obrigatoriedade de acatamento das recomendações deste órgão. No entanto, há que considerar a relevância excepcional no que concerne ao disposto no nº 3 do artigo 26 da Lei nº 7/2006, de 16 de Agosto, que dispõe no sentido de que, A falta de comparência não justificada ou justificação não aceite por parte de quem houver sido convocado para prestar esclarecimentos ou explicações pelo Provedor de Justiça, constitui crime de desobediência, sem prejuízo do procedimento disciplinar que houver lugar.

O legislador moçambicano considerou duas situações distintas:

A primeira, em que perante a falta de acatamento das recomendações dadas pelo Provedor de Justiça, numa determinada situação processual, no que respeitar às posições a serem adoptadas pela Administração Pública, não decorrem quaisquer efeitos.

E, a segunda situação é aquela que, no decurso da tramitação de um processo legal, decorrente do exercício de competências, fundado em queixas apesentadas pelos cidadãos ou por iniciativa própria do Provedor de Justiça, perante aos factos de que por qualquer outro modo tenha conhecimento, havendo notificação legal para comparência de um agente, se este não o fizer sem justificação ou com justificação infundada, degenera no crime de desobediência, sem embargo de concomitantemente haver lugar a procedimento disciplinar.

Resulta, por conseguinte, que as recomendações emitidas pelo Provedor de Justiça no exercício das suas funções não impõem vinculações, pelo menos, de per si, à Administração Pública. Trata-se de recomendações de cumprimento meramente facultativo, distintamente do que sucede com as decisões judiciais, por exemplo, que à luz do disposto no artigo 214 da Constituição, impõe-se o seu acatamento quer pelos destinatários imediatos e bem assim pelas demais pessoas jurídicas, ainda que delas não se concorde, desde que não tenham sido invalidadas por via de recurso.

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Sobre a autora
Helder Manuel Naife

Doutorando em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Católica de Moçambique em parceria com a Universidade Nova de Lisboa, Juiz de Direito - A no Tribunal Administrativo Provincial da Zambézia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NAIFE, Helder Manuel. O Provedor de Justiça em Moçambique. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6839, 23 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96908. Acesso em: 28 abr. 2024.

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